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Foto de Ben White em Unsplash

Começo com uma confissão: fui um aspirante a intelectual. Quase cinquenta anos se passaram. Como editor, tive o privilégio de trabalhar com vários autênticos intelectuais, muitos deles cristãos com a mais elevada dedicação ao nosso Senhor e Salvador. Tenho lido, relido, estudado e escrito a respeito das obras de muitíssimos intelectuais, em sua maioria abertamente não cristãos. Ao longo dos últimos dois anos, intensifiquei minha atenção sobre essa ambígua classe sociológica. Creio que estou pronto para outra confissão: Ser um intelectual, afinal de contas, não é nada de especial, nada que deva ser motivo de admiração ou condenação. Por quê? Porque todos os cristãos são chamados para serem intelectuais conforme a sua capacidade, e conforme o que for adequado à obra para a qual foram chamados. Ninguém é chamado para ser um pensador desleixado!

O chamado para o trabalho intelectual

Ser ou não ser um intelectual dificilmente é uma questão de volição pessoal. Ao menos, não para a maioria das pessoas. Um intelectual precisa ser razoavelmente inteligente. Não é o caso de todos. Um intelectual deve ter acesso à educação. (Não precisa ser necessariamente uma formação acadêmica — pense em Václav Havel ou Eric Hoffer[1] — mas precisa incluir a possibilidade de uma leitura ampla e profunda de uma vasta gama de disciplinas.) Muitas pessoas inteligentes não têm esse acesso. Um intelectual precisa ter uma habilidade incomum de comunicação e acesso a publicações. É um triste fato que muitas pessoas inteligentes que conseguem compreender ideias complexas não sabem como transmiti-las. Seu texto é confuso, desorganizado, insípido e obscuro, absolutamente desprovido de imaginação e, portanto, de sabor. Já muitas pessoas que sabem escrever, por uma miríade de motivos, não conseguem publicar seus textos.

Além disso, e mais especificamente, um intelectual precisa ter ou desenvolver todas ou a maioria das características que arrolei em minha definição original:

Um intelectual é alguém que ama ideias e se dedica a esclarecê-las, desenvolvê-las, criticá-las, virá-las pelo avesso, examinar cada implicação, juntá-las a outras ideias, organizá-las ou sentar-se em silêncio enquanto brotam novas ideias e as já existentes parecem se reorganizar. É alguém que gosta de brincar com elas, fazer trocadilhos com sua terminologia, rir delas, vê-las contrapor umas às outras, catar seus pedaços, recomeçar a desenvolvê-las desde o início, avaliá-las, evitar avaliá-las, alterá-las, colocá-las em contato com sua correspondente em outros sistemas de pensamento, convidá-las para jantar e divertir-se a valer com elas, mas também prepará-las para a rotina diária de trabalho.

Ninguém pode ter todas essas características apenas desejando-as ou decidindo tê-las. Aqueles que as têm começam com habilidades inscritas em sua própria natureza, sobre as quais não têm controle algum. Esses traços são fomentados ou bloqueados pelo ambiente. Ninguém tem muito controle sobre o seu ambiente e o seu desenvolvimento até a adolescência. E tentam controlá-los a partir de então!

Quando consideramos a definição de um intelectual cristão, a questão é muito diferente. Aqui temos, sim, uma grande medida de controle.[2] Somos responsáveis diante de Deus pelo que fazemos com o que nos é dado. Acima de tudo, devemos nos tornar discípulos de Cristo, seguindo-o por onde ele nos conduzir. Pode não ser onde nossas habilidades intelectuais natas seriam melhor empregadas. Evelyn Underhill observa:

Henry Martyn, o frágil e meticuloso erudito, foi forçado a sacrificar a vida intelectual, para a qual era tão perfeitamente equipado, pela vida missionária, para a qual sentia ter sido decisivamente chamado […] Coisas como essas — e elas ocorrem com frequência — paulatinamente nos convencem de que a realidade da vida que prevalece é a vontade e a escolha de um Espírito que não age de forma mecânica, mas de forma viva e pessoal; e que a vida espiritual não se resume a um mero aprimoramento individual, ou em atenção diligente à própria alma, mas em uma resposta livre e incondicional à persuasão e ao chamado desse Espírito, independentemente do preço a ser pago.[3]

Não desejo comentar a respeito dos diversos modos pelos quais a orientação de Deus está disponível a nós. Praticar a lectio divina poderá ser muito útil para ajudar cada um de nós a discernir o que Deus quer. Deus, porém, certamente pode querer que você, ou eu, sejamos cristãos que têm prazer ao pensar, que possam fazê-lo bem feito e que sejam chamados a desempenhar um papel intelectual de destaque como cristãos no cenário público.

Ainda assim, sejamos ou não chamados a desempenhar um papel público, somos todos chamados a usar nossa mente da melhor forma que pudermos. Nesse sentido, todos são chamados para serem intelectuais.

Para a glória de Deus

Para os cristãos chamados a uma vida mais rigorosa da mente, recordemos a definição:

Um cristão intelectual é tudo o que foi apresentado acima [classificação de um intelectual] para a glória de Deus.

Nessa definição está a essência para discernir a responsabilidade do intelectual cristão: para a glória de Deus.

O que traz glória a Deus? Mais que qualquer outro teólogo, Karl Barth ajudou-me a compreender a resposta: “Deus não precisa fazer estardalhaço algum acerca de sua glória”, escreve ele. “Deus é glorioso. Basta que ele se mostre como é, basta que ele se revele. É isso que ele faz no homem, sua criatura, no qual deseja ser refletido”.[4] Nós, portanto, somos aqueles em quem Deus é glorificado.

Será mesmo? Certamente não, poderíamos refutar. Isso não seria pedir demais? Não. Somos feitos à imagem de Deus: nós, portanto, glorificamos a Deus refletindo seu caráter em nosso ser — no modo que pensamos e agimos. O caráter de Deus está mais bem representado em Jesus. Jesus era inteligente: o homem mais inteligente que já viveu. Se formos inteligentes, glorificamos a Deus com nossa inteligência. Evidentemente, isso não é tudo. É claro que Jesus era sábio, logo devemos ser sábios. Jesus era bom, amoroso, gentil, misericordioso; logo devemos ser bons, amorosos, gentis, misericordiosos.

Quando não glorificamos a Deus dessa maneira, somos, como afirma Barth, “inferiores a bestas selvagens”, pois elas cumprem seu papel de glorificar a Deus simplesmente por terem sido criadas. Não cumprir nosso papel é a nossa angústia. Ouça mais uma vez o que diz Barth: “Criados para glorificar a Deus, precisamos conhecer a Deus para que seja possível e possamos glorificá-lo […] Glorificar a Deus, viver em conformidade com Deus, portanto, é um ato consciente, um ato de volição; em poucas palavras: um ato humano”.[5]

Então, como um pensador cristão “vive em conformidade com Deus”? Em outras palavras, o que se encaixa no âmbito específico da vida intelectual que traz glória a Deus? Dois aspectos fundamentais estão envolvidos: aprender a verdade e falar a verdade. Em minha opinião, esses dois temas são mais bem representados quando concatenados em uma única expressão: viver na verdade.

Viver na verdade

A expressão “viver na verdade” não vem da Bíblia ou de uma teologia propriamente cristã, mas das reflexões profundas de Václav Havel, um dos mais louváveis intelectuais do século 20.[6] Embora rejeite uma fé especificamente cristã, seus ensaios e cartas da prisão revelam uma compreensão basicamente teísta dos fundamentos transcendentes da moralidade. Se há hoje qualquer consciência moral na política internacional, ela se deve a ele e a seus escritos. Discursando perante uma sessão conjunta do Congresso dos Estados Unidos, Havel desafiou os políticos mais bem sucedidos da América a aceitarem sua responsabilidade moral:

O único cerne de todas as nossas ações — para serem consideradas morais — é a responsabilidade. Responsabilidade para com algo mais elevado do que minha família, meu país, minha empresa, meu êxito. Responsabilidade para com a ordem do ser, em que todas as nossas ações são indelevelmente registradas e em que, e somente em que, elas serão corretamente julgadas.

O conceito de Havel de ser é tão semelhante ao conceito cristão de Deus que, para todos os propósitos, essa declaração é intrinsecamente cristã.[7] A eficácia das palavras de Havel, creio eu, deveria ser avaliada pelas ações subsequentes do Congresso. Viver na verdade, contudo, não mede o êxito por sua eficácia em produzir mudanças em outras pessoas. Viver na verdade, assim como a fidelidade, é seu próprio êxito.

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Em um dos textos que contribuiu para sua prisão como dissidente político, Havel apresenta o conceito de viver na verdade ao contar a história de um verdureiro que, certo dia, deixa de exibir em sua loja o slogan entregue com suas cebolas e cenouras.[8] Não é que ele já tivesse prestado atenção alguma ao que aquele slogan e outros semelhantes diziam: “Trabalhadores do mundo, uni-vos”! Ele sabe intuitivamente que o dito está baseado em uma mentira, mas até então esteve simplesmente cumprindo as instruções do governo — que estava consciente de que não era efetivamente formado por trabalhadores, como a ideologia proclama. Como todas as ideologias, a ideologia “pós-totalitária” (termo cunhado por Havel para o regime da Tchecoslováquia da década de 1970 e de 1980) “é uma forma enganosa de relacionar-se com o mundo. Ela oferece aos seres humanos a ilusão de uma identidade, de dignidade e de moralidade, ao mesmo tempo em que facilita que se distanciem delas”.[9] Sucumbir a uma ideologia é viver no âmbito de uma mentira.

Certo dia, porém, o verdureiro simplesmente decide não exibir o mote. Também para de votar em eleições fraudadas. Decide se retirar do sistema. Por conta disso, é dispensado de seu posto de gerência e enviado para um armazém fora do olhar do público; seu salário é reduzido e seus planos de férias são cortados; a formação de seus filhos é colocada em risco. “Sua revolta é uma tentativa de viver na verdade”.[10]

Viver na verdade em um regime totalitário, ou mesmo pós-totalitário, pode custar caro. Mas tanto antes de ser eleito, enquanto padecia na prisão, quanto após a sua eleição, à medida que tem continuado a dar palestras para plateias internacionais formadas por políticos e eruditos, Havel exemplificava e tem convocado outros a corporificar essa forma de vida.

É uma das tragédias de nosso mundo haver tão poucos intelectuais como Havel. Pode-se pensar em Aleksandr Solzhenitsyn, e talvez George Orwell e Albert Camus. Mas o século 20 é predominantemente povoado por antítipos, não por anti-intelectuais, mas intelectuais que falham miseravelmente em cumprir o papel de viver na verdade.


[1] Eric Hoffer, um estivador com formação bastante elementar, tornou-se conhecido por seu livro notavelmente perceptivo, se não inquietante, The true believer, um estudo do fanatismo irracional que frequentemente acompanha aqueles que afirmam ter certeza absoluta de estarem certos (New York: New American Library, 1958; ed. orig. 1951) [publicado em português por Lidador sob o título Fanatismo e movimentos de massa].

[2] Não tenho a intenção de tratar aqui da questão da predestinação ou do livre arbítrio. Basta registrar o que é comum ao tratamento dado por qualquer cristão à responsabilidade humana.

[3] Evelyn Underhill, The spiritual life (Harrisburg: Morehouse, 1937), p. 29-30.

[4] Karl Barth, The faith of the church: a commentary on the ApostlesCreed according to Calvincatechism, tradução para o inglês de Gabriel Vahanian (New York: Meridian, 1958), p. 27.

[5] Ibidem, p. 28.

[6] Havel credita essa expressão a seu próprio mentor, o filósofo tcheco Jan Patočka.

[7] Havel reflete sobre o motivo pelo qual se sente responsável por pagar a tarifa do bonde quando não há funcionário algum o vigiando: “Quem, então, está efetivamente conversando comigo? Com certeza, alguém a quem atribuo importância mais elevada do que a comissão de transportes, do que meus melhores amigos (isso surgiria quando a voz discordasse da opinião deles) e, de certa maneira, importância mais elevada do que eu mesmo; ou seja, ‘eu’ como sujeito da minha existência no mundo e portador de meus interesses ‘existenciais’ (um dos quais seria o interesse bastante natural de poupar uma moeda). Alguém que ‘saiba tudo’ (e seja, portanto, onisciente), está em todos os lugares (e seja, portanto, onipresente) e se lembre de tudo; alguém que, embora infinitamente compreensivo, seja absolutamente incorruptível; que seja, para mim, a mais elevada, suprema e inequívoca autoridade em todas as questões morais, sendo, portanto, a Lei em si mesmo; alguém eterno, que por meio de si mesmo também me faça eterno, a ponto de não conseguir imaginar o momento em que tudo chegue ao fim, encerrando assim minha dependência dele; alguém com quem me relacione integralmente e por quem, em última análise, faça todas as coisas. Ao mesmo tempo, esse ‘alguém’ fala comigo de forma direta e pessoal (não como mais um passageiro anônimo do transporte público, como o faz a comissão de transportes)”. Não obstante, por diversas razões, Havel se recusa a identificar esse “alguém”, esse “Ser” ou “horizonte absoluto” com um Deus inteiramente pessoal, principalmente o Deus da Bíblia (veja Václav Havel, Letters to Olga: Jun. 1979-Sep. 1982, tradução para o inglês de Paul Wilson [New York: Henry Holt, 1989], p. 345-6). Analisei o conceito de Havel de responsabilidade e seu fundamento para o Ser em “An open letter to Václav Havel”, Crux (Jun. 1991): 9-14.

[8] Havel conta essa história em “The power of the powerless”, in Living in truth (London: Faber and Faber, 1986), p. 41-57.

[9] Ibidem, p. 42.

 [10] Ibidem, p. 55.

Trecho extraído e adaptado da obra “Hábitos da mente: a vida intelectual como um chamado cristão“, de James W. Sire, publicada por Vida Nova: São Paulo, 2021, pp. 237-244. Traduzido por James Reis. Publicado no site Tuporém com permissão.

James W. Sire (1933-2018) foi autor, palestrante e serviu por mais de trinta anos como editor sênior da lnterVarsity Press. É autor de mais de vinte livros e tratou de conceitos como cosmovisão e apologética cristã. Dedicou-se a aplicar a ideia de cosmovisão à integração da fé cristã com as disciplinas acadêmicas, assim como a natureza dos "sinais de transcendência" e sua relação com a vida cristã. É autor de inúmeros livros, dentre eles, "O universo ao lado", publicado por Editora Monergismo.
"Hábitos da mente" é um convite a pensar sobre a vida intelectual como um chamado cristão. Não se trata de uma obra sobre o quê o cristão deve pensar, mas, sim, sobre como o cristão pode pensar melhor - com maior precisão, maior atenção às implicações práticas na vida, maior experiência e reconhecimento da presença de Deus seja qual for a vereda que o pensamento percorra.

De modo hábil e profundo, James Sire apresenta a visão desafiadora de uma inteligência centrada na glória de Deus. A partir da teoria dos "hábitos da mente", ele oferece um caminho seguro e, ao mesmo tempo, repleto de insights poderosos que nos ajudarão na busca pela verdade.

Ora, o que explica o êxito da teoria de Sire? A centralidade no exemplo de Jesus como a pessoa mais inteligente que já viveu entre nós. Este livro é, sem dúvida, um forte encorajamento para todos os que se sentem desafiados a pensar biblicamente e da melhor maneira possível.

Publicado por Vida Nova.

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