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20/maio/2024Cheguei à idade adulta em uma geração que acreditava que o trabalho deve ser “importante”. Cresci achando que o meu trabalho tinha de ser importante e que eu devia gostar do meu emprego. Meu pai não nutria essas fantasias. Assim como a maioria das pessoas da geração dele, ele achava que trabalho é o que se faz para pôr comida na mesa. Seria bom ter uma atividade de que se gostasse, mas não obrigatoriamente. Ele preferia ter sido artista, mas passou a maior parte de sua carreira trabalhando como engenheiro gráfico para uma das principais empresas de automóveis. Seu trabalho era importante para ele, mas não sei se ele gostava dele.
O que sei é que meu pai era frustrado por jamais ter concretizado seu sonho de se realizar como artista. A decepção dele me assombrava. Prometi que não acabaria como ele. Por isso, quando estava perto dos meus trinta anos, saí do meu emprego na empresa automobilística e fui atrás do meu sonho de ser pastor, escritor e professor. Ao contrário de meu pai, eu realizei meu sonho. Contudo, para minha surpresa e preocupação, descobri que concretizar meu sonho não me deixava imune à decepção em relação ao meu trabalho. Amo o que faço, mas em muitas ocasiões o acho entediante. Acredito que é importante, mas também tem muita coisa que parece insignificante (ou pelo menos que não tem sentido visível de imediato). Quem sabe você esteja decepcionado com seu emprego e ache que ele tem pouco sentido e, às vezes, muita rotina. Sentido e decepção são ambos intrínsecos à natureza do trabalho. Fomos criados para viver por nossa vocação, mas temos de fazer isso com o suor do nosso rosto. O trabalho é a nossa vocação elevada, mas também é influenciado pela maldição (Gn 3.17-19).
Apesar do efeito do pecado sobre ele, o trabalho comum continua dando sentido a nossa vida. O trabalho se originou com Deus. Ele é o primeiro “trabalhador” mencionado na Bíblia (Gn 2.2). O trabalho de Deus vai além da criação. Jesus se referiu a seu Pai celestial como aquele que “está sempre trabalhando” (Jo 5.17). Uma vez que fomos criados à imagem de Deus, não devemos nos surpreender de saber que fomos criados para trabalhar. Depois de ter criado Adão, Deus o colocou no jardim do Éden “para cuidar dele e o cultivar” (Gn 2.15). A entrada do pecado no mundo afetou profundamente o modo que encaramos o trabalho, mas isso não lhe diminui a dignidade. O trabalho é anterior à Queda. O trabalho como vocação era parte do plano de Deus para a humanidade desde o início. Os verbos no infinitivo em Gênesis 2.15 (“cultivar” e “cuidar”) revelam propósito. Nosso Criador está sempre trabalhando, e nós igualmente fomos criados para trabalhar. O trabalho de Deus dá sentido e importância ao nosso papel de trabalhadores.
Jesus dava pouca importância ao trabalho?
Jesus ter identificado seu trabalho com o do Pai confere importância ao trabalho que realizamos, mas também exige uma pergunta O trabalho a que Jesus se refere em João 5.17 não é o ministério? É certo que Jesus é chamado de “o carpinteiro” nas Escrituras, mas apenas uma vez. Não há nenhum exemplo explícito em que ele pratique essa profissão. Em nenhum lugar os Evangelhos o retratam com ferramentas nas mãos. Nós o vemos, em vez disso, agindo como mestre e Messias. A primeira fase de sua vida é praticamente envolta no silêncio. O único breve vislumbre que temos de sua infância ressalta a capacidade dele de ensinar e seu desejo de estar na casa do Pai (Lc 2.46-50).
Além disso, quando Jesus chamou os discípulos para segui-lo, parece que os afastou do emprego comum que tinham. Pedro e André estavam trabalhando quando Jesus foi à procura deles. Enquanto “eles estavam lançando redes ao mar”, Jesus prometeu transformá-los em pescadores de homens. Mateus 4.20 registra a reação deles: “No mesmo instante eles deixaram as suas redes e o seguiram”. Do mesmo modo, Jesus chamou Tiago e João enquanto pescavam. Assim como seus colegas Pedro e André, “eles, deixando o barco e seu pai, o seguiram” (Mt 4.22). É fácil entender por que Levi abandonaria o posto de coletor de impostos quando Jesus o chamou, visto que essa profissão era sinônimo de pecado (Mt 9.10,11; 11.19; 21.31,32). Contudo, nenhum estigma se comparava à atividade de pescador. Os discípulos terem abandonado os barcos e as redes indica, ao que parece, que eles estavam entrando para uma vocação “maior” do que a que tinham antes. Além disso, Jesus reiterou esse chamado quando Pedro decidiu retomar a pescaria depois da crucificação (Jo 21.1-18)
É preciso reconhecer que o chamado de Jesus de fato resultou em mudança de prioridade vocacional para esses discípulos. Ele os convidou a abandonar o antigo trabalho e segui-lo numa espécie de aprendizado de ministério, por assim dizer. As exigências dessa nova vocação não lhes permitiriam continuar na antiga profissão. É isso que acontece na maioria das vezes quando se trata de ministério. Jesus chamou seus discípulos de “trabalhadores” e disse que eles eram “dignos” de salário (Mt 10.10; Lc 10.7). O apóstolo Paulo usou esse critério como base de sua orientação aos responsáveis por fornecer suporte financeiro aos ministros da igreja (1Tm 5.17,18).
Contudo, o convite de Jesus para que os discípulos deixassem o antigo trabalho deles não era sinal de esnobismo profissional. A alta consideração dele pelo trabalho comum é evidente em seus ensinamentos. As parábolas de Jesus são repletas de exemplos do universo do trabalho, apresentando agricultores, administradores domésticos, construtores e escravos. Além disso, Jesus não convidou os discípulos a deixar o trabalho comum deles para levarem uma vida de lazer nem mesmo de reclusão santa, mas para eles se comprometerem com um tipo de trabalho diferente. Ele usava exemplos do trabalho comum para os ajudar a entender a natureza do ministério para o qual estavam sendo chamados. Pedro, André, Tiago e João ainda continuariam sendo pescadores, mas agora se envolveriam em um tipo diferente de pescaria (Mt 4.19; Mc 1.17). Eles eram semelhantes a trabalhadores do campo (Mt 9.37,38; Lc 10.2; Jo 4.35-38). Eram responsáveis como “o servo fiel e prudente, que o senhor encarregou dos outros servos para lhes dar o alimento no devido tempo” (Mt 24.45). Nessa nova vocação, o trabalho deles seria ministério; e o deles, trabalho.
O valor espiritual do trabalho
Em um sentido isso também se aplica a todos os crentes. Pode-se dizer que apenas um pequeno número de pessoas tem como trabalho regular a profissão ministerial. Para a maioria dos crentes, a profissão normal que têm é o ministério deles. O valor espiritual do trabalho é fundamental para o conceito bíblico de vocação. É óbvio que o trabalho tem finalidade prática em nossa vida. Com ele provemos o nosso sustento e o de nossa família. Mas o trabalho corriqueiro também tem valor no reino. Em 1Tessalonicenses 4.11,12, Paulo deixa claro que o nosso trabalho é componente essencial do nosso testemunho por inteiro: “Esforcem-se para ter uma vida tranquila, cuidar dos seus próprios negócios e trabalhar com as próprias mãos, como nós os instruímos, a fim de que andem decentemente aos olhos dos que são de fora, e não dependam de ninguém”. O trabalho é o jeito usual de Deus suprir nossas necessidades e nos capacitar para suprir as necessidades de outros (Ef 4.28).
Somos tentados a separar em compartimentos diferentes a área secular da vida da área sagrada. O lugar de culto e de atividades espirituais, como leitura da Bíblia e oração, pertencem ao sagrado; o trabalho é relegado ao secular e marginalizado. Esse tipo de visão não considera que o trabalho tenha valor espiritual, mas o enxerga como um mal necessário, algo que temos de fazer para sobreviver. O trabalho é uma necessidade enfadonha da qual temos de nos desvencilhar o quanto antes. De acordo com essa perspectiva, a vida ideal é uma vida de lazer. De fato, alguns estereótipos culturais em relação ao céu menos refinados (e menos atraentes) giram em torno de fantasias exageradas no tocante ao ócio, como flutuar a esmo nas nuvens tocando harpa. Até podemos considerar nosso trabalho um obstáculo ao crescimento espiritual. Quem sabe, se passássemos menos tempo trabalhando, teríamos mais tempo para dedicar a Deus
O lado irônico desse tipo de ideia, claro, é que passamos muito mais tempo no trabalho do que na igreja. Nessa visão compartimentada, a maior parte da vida se passa em áreas normalmente consideradas seculares. Não é de admirar que Eugene Peterson chame o universo do trabalho de “o principal ambiente para a espiritualidade”.[1]
A Bíblia deixa claro que o Espírito de Deus se sente tão à vontade em nosso local de trabalho quanto na igreja. Além disso, o trabalho é um domínio em que o Espírito de Deus age.
Em nenhuma outra parte isso é mais evidente que na construção do tabernáculo. O livro de Êxodo relata que o Espírito Santo encheu Bezalel, “dando-lhe destreza, habilidade e plena capacidade artística para desenhar e executar trabalhos em ouro, prata e bronze, para talhar e esculpir pedras, para entalhar madeira e executar todo tipo de obra artesanal” (31.3-5). O Espírito também dotou Aoliabe, assistente de Bezalel, e todos os artesãos de Israel das habilidades necessárias para fabricar o tabernáculo. A aptidão para trabalhar com madeira, pedras preciosas e bordados não surgiu num piscar de olhos, mas demandou cuidadoso e intenso treinamento (Êx 35.34).
A única coisa que diferenciava esse trabalho do emprego comum deles era a finalidade a que se dedicava o seu produto. Fora isso, o empenho e a competência exigidos desses construtores, carpinteiros e bordadores eram os mesmos. O mesmo Espírito que deu a competência para a construção do tabernáculo capacitou esses trabalhadores para o seu trabalho do dia a dia. Isso faz parte da obra do Espírito Santo de conceder o que os teólogos chamaram de graça “comum”. É a graça que Deus dá para o bem comum. Esta é distinta da graça especial, que produz a salvação. A graça comum é uma dádiva universal, um reflexo da bondade de Deus, que “faz raiar o seu sol sobre maus e bons e derrama chuva sobre justos e injustos” (Mt 5.45).
Notas
[1] 1Eugene Peterson, Leap over a wall: earthy spirituality for everyday Christians (San Francisco: Harper, 1997), p. 31.
Trecho extraído e adaptado da obra “A surpreendente graça nas decepções“, de John Koessler, publicada por Vida Nova: São Paulo, 2019, p. 126-131. Traduzido por Soraya Bausells. Publicado no site Cruciforme com permissão.
John Koessler (DMin, Trinity International University) é presidente e professor do departamento de Estudos Pastorais do Moody Bible Institute. Autor de vários livros, como Stranger in the house of God e True discipleship, é também editor do Manual de pregação (Vida Nova). John e a esposa, Jane, moram no noroeste de Indiana e têm dois filhos. |
Todos alimentamos falsas expectativas em várias áreas da vida. Em relação ao nosso relacionamento com Deus, isso não é diferente. Então, quando Jesus não corresponde a essas expectativas, ficamos decepcionados. Em A surpreendente graça nas decepções, Koessler explica como essas experiências difíceis podem ser a melhor coisa que pode nos acontecer, ainda que extremamente dolorosas. Na verdade, as frustrações decorrentes da aparente falha de Jesus em realizar nossos sonhos redefinem todas as nossas expectativas. É isso que significa graça surpreendente: a certeza de que toda dor e frustração podem nos aproximar ainda mais de Jesus. Publicado por Vida Nova. |