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10/fev/2017Existem dois tipos de filmes de guerra.
Há o filme de guerra que condena a guerra, seja através da exposição do horror e do absurdo, muitas vezes até ridicularizando o processo militar, seu treinamento, seus especialistas e os superiores, generais que, de uma sala normalmente escura, assinam a morte de milhões. Esse tipo é extremamente raro. Quando um filme desses começa a produção, dificilmente tem apoio das forças armadas, quer seja com artes conceituais ou consultoria. Nascidos Para Matar, de Stanley Kubrick, é um exemplo.
O outro tipo é muito mais comum. É o tipo de filme que explora a guerra como um triunfo (ou triunfos no meio da guerra), ou ainda, que mostra a guerra como algo inevitável, às vezes natural, também usando-a como plano de fundo para algo mais pessoal e mais íntimo acontecer no foco da câmera. Desse tipo os exemplos são como um oceano. É também o tipo de filme feito como propaganda. Hollywood não cansa de perpetuar na telona o nacionalismo americano do século XX. É uma coisa difícil para o brasileiro entender. Nos EUA, há um orgulho solene proveniente das forças armadas que é quase tão natural quanto nossa paixão pelo futebol. É meio que default. Mesmo com essa bandeira, esta categoria de filme neste formato clássico está caindo em desuso. Hoje em dia, décadas depois de um Vietnã, e com a incursão de Bush Filho no Oriente Médio ainda fresca na cabeça do povo, as pessoas estão entendendo que a guerra é muito pouco gloriosa para quem não tem nada a ver com a origem dela. Em quase todas as vezes, esses são todos os soldados de todos os lados. Então começa-se a desconstruir a guerra, a figura do soldado, os motivos pelos quais ele luta (como em Guerra ao Terror), e até a santidade das ações de horror feitas em nome da guerra. De certo ponto de vista, ainda são filmes que não estão exatamente “condenando a guerra”, talvez porque esse, como disse acima, seja um assunto também já passado. A maioria, no entanto, não deixa de enaltecer a bandeira americana e seus valores.
Mel Gibson é e foi muitas coisas ao longo de sua carreira. Muitas delas não são positivas, muitas delas levaram-no à prisão. Mas uma de suas características mais icônicas, como diretor e contador de histórias, é sua confiança. Coração Valente é até hoje um filme corajoso, no mínimo por sua produção. A Paixão de Cristo é um filme de época feito todo numa língua desconhecida, sem falar das implicações religiosas. Em Apocalypto ele novamente apela para uma língua morta, atores completamente desconhecidos e violência extrema. Além disso, seus filmes têm um forte viés cristão (indispensável em Paixão de Cristo e sutil, mas presente, em Apocalypto), mesmo que não necessariamente proselitista. E, depois de 10 anos sem dirigir nada, Gibson volta com Até o Último Homem, baseado numa inacreditável história real de heroísmo e bravura na Segunda Guerra Mundial.
Andrew Garfield interpreta Desmond Doss, rapaz tímido do interior dos EUA que vê na guerra um dever irrecusável e, no ataque a Pearl Harbor, uma ofensa pessoal. O porém vem do fato de ser adventista e ter como preceito pessoal o dogma de nunca tocar numa arma. Ele precisa ir para a guerra, mas não pode matar ninguém. Apesar de o filme explicar os motivos disso com um flashback dramático e desnecessário lá pelas tantas do filme, basicamente é sua crença pessoal e religiosa que o leva a tal decisão.
Começa então os embates entre ele e seus companheiros de pelotão, seus superiores, sua família, sua namorada. Ele, é claro, não desiste, e eventualmente recebe a permissão de ir para a guerra “sem uma arma para se proteger”. É enviado para o front do Oceano Pacífico da guerra, contra os japoneses. Lá, trabalhando como médico de campo, demonstra que é mais do que isso. É quase um super-herói, que resgata mais soldados do que deveria poder, o que faz com que todos à sua volta revejam seus conceitos.
O filme, do começo ao fim, não esconde suas intenções, sua época, sua ideologia. É um filme cafona além da conta, mas é um filme que usa essa cafonice como se fosse uma armadura. Mel Gibson sabe exatamente o que quer e o que está fazendo. Até o Último Homem é para ser um filme antiquado. A gloriosa luz ilumina o paladino de maneira épica, seu corpo vai levando sobre si as amarguras da guerra, a bandeira americana vira quase um coadjuvante. Mas a destreza de Gibson e a entrega de Garfield ao papel não deixam a peteca cair.
A confiança é tanta que os clichês mais nefastos abundam. Pense em um clichê, e aqui ele estará. O tom meio piadista do começo do filme, aliado ao casting tenebroso de coadjuvantes, não ajudam a levar o filme a sério, mas este filme não tem a pretensão de ser um semi-documentário como O Resgate do Soldado Ryan. Foi feito para ser um filme estilo matinê.
O que surpreende, no final, além da violência absurda com a qual Gibson parece estar casado, e também sua proeza técnica (apesar de criar cenas de batalha pouco criativas), é mesmo a moralidade do protagonista. Isso, quem sabe, seja uma desconstrução estranha no meio desse filme tão “comum”.
A frase de efeito, que está no trailer, que a câmera segura e o ator enfatiza, “sem uma arma para se proteger”, é bem enfática, e quem sabe, irônica. Uma arma é feita para matar. É assim desde o início dos séculos. A proteção pessoal (ou de terceiros) é um subproduto de seu uso. A pegadinha semântica é que, com a frase dessa forma, é como se a função primária de uma arma fosse proteger o soldado. Nos Estados Unidos, armas são partes primárias da cultura. O direito de portar armas é um dos direitos mais intocáveis dentre todos. Um herói, representante do que há de mais valoroso entre os bravos jovens da classe média americana, que se nega a tocar numa arma por causa de Jesus Cristo, é quase um iconoclasta. Mas ele não tem a intenção de ser, ele só quer servir a seu país sem tirar uma vida sequer por isso.
Mas o esforço, a via sacra, o sacrifício em prol de seus companheiros de batalha não é o suficiente. Numa cena, embrenhado em túneis ocupados pelos japoneses, Doss salva a vida de um soldado inimigo. Cura seus ferimentos e o manda para seu lado. Ainda bem que este soldado não aparece novamente, salvando Doss ou matando alguém importante (lembra do Soldado Ryan?), pois isso destruiria o conceito aqui defendido. Doss não faz isso por recompensa, faz isso por princípio. E o filme não é um ensaio niilista sobre a guerra (nem Soldado Ryan é).
O final do filme deixa claro que isto não é uma ficção, que até as coisas mais absurdas do filme realmente aconteceram, e isso não diminui o impacto de seu formato. Até o Último Homem tenta desconstruir um dos mais sagrados pilares americanos usando uma linguagem extremamente conservadora. Um dos poucos trunfos do filme é não ser proselitista. O filme não quer te convencer que Doss está “certo” e que todos os outros estão “errados”. De forma que ele não é um filme “antiguerra”. Afinal, Doss está posicionado no lado da guerra que não venceu com a bravura dos soldados, mas que venceu com uma bomba nuclear, jogada em cima de civis. O filme não aborda isso, mas dificilmente alguém vai assistir a um filme desses e esquece desse detalhe. Ou seja, de certo ponto de vista, a cosmovisão de Doss, no final, perde. Ele mesmo considera a guerra algo necessário, quiçá positivo. O único contraponto a isso é colocado nas palavras do pai dele, interpretado por Hugo Weaving, um ex-soldado da Primeira Guerra Mundial que sabe muito bem para onde todas as guerras levam os soldados. É um contraponto que o filme nem tem interesse de desenvolver ou discutir: guerra é guerra e, se os EUA ganharem, ela é uma boa guerra. Lamentável, dolorida, cara, mas vitoriosa.
Há quem diga que Jesus não era um pacifista. Há quem diga que o diabo adora épocas de paz entre os povos. É um reversal de valores que parece servir somente ao fato de ser um reversal. Jesus talvez não tenha sido claro ao não abordar “como o cristão deve se portar quando os nazistas invadirem a Polônia e os Japoneses atacarem o Havaí”. Mas foi muito claro na hora de “amar o próximo” e “dar a outra face”. Doss recebeu várias honrarias por seu serviço à guerra, aos seus companheiros, ao seu país, e faleceu em 2006, com 87 anos. E quem sabe aí então recebeu a medalha que mais queria.
Silas Chosen é roteirista, cineasta, publicitário, ilustrador e é viciado em cinema e histórias. Escreve para sites e programas de rádio sobre cinema, cultura pop e cristianismo desde 2004. Faz parte da 4U Films, ministério de cinema independente. |