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Como sabemos qual a melhor tradução da Bíblia para ler? Para responder essa pergunta, Tony Watkins analisa as duas principais abordagens usadas no processo de tradução.

Parece que você não precisa esperar por muito tempo para que uma nova versão da Bíblia seja lançada; afinal, atualmente, existem diversas traduções disponíveis. Enquanto uma, a cada cinco pessoas – mais de 1,5 Bilhões –, não tenha em mãos uma Bíblia totalmente traduzida para o seu idioma, o popular site BibleGateway oferece mais de 90 versões só na língua inglesa.[1] Diante desse conjunto de versões, muitas pessoas têm uma tradução favorita. Isto é, com frequência, elas crescem lendo a primeira tradução que receberam; mas como a língua, ao longo do tempo, passa por mudança e os estudiosos da Bíblia buscam, a cada dia, por uma compreensão mais assertiva do texto, uma dúvida pode surgir: será que realmente estamos lendo a melhor tradução ou as novas traduções são melhores?

 

Como escolhemos uma versão da Bíblia para ler?

A variedade de versões é um recurso valioso, mas também surpreendente. Quais são as suas principais diferenças? Qual tradução devo usar? Cada tradutor ou comitê de tradução (os responsáveis pelo processo de tradução) tomam suas próprias decisões sobre como traduzir o texto original do grego e hebraico[2] Eles fazem suas escolhas tendo como base o resultado de um tipo de abordagem específica por eles adotado. Alguns, por exemplo, priorizam a transmissão do significado central de uma passagem, enquanto outros, preferem refletir sobre os padrões lexicais dos idiomas originais. O primeiro grupo se preocupa mais com a relevância que o texto terá para o público contemporâneo. Isto é, diante de um termo, como o masculino “irmão”, eles optam por mostrar que no original ele representa tanto o homem quanto a mulher. O segundo grupo, diante do mesmo termo, deixa a critério do seu leitor. Uns são mais conservadores, enquanto outros são menos.

Esta variedade não é algo ruim. A menos que saibamos ler a Bíblia no seu idioma original (hebraico e grego), precisaremos da ajuda dos especialistas da Bíblia para fazer a tradução (hebraico, grego e aramaico) em nosso lugar. Neste artigo eu explicarei brevemente duas dessas abordagens principais e depois sugerirei como podemos melhorar a nossa leitura da Bíblia.

 

Usando as palavras certas

A primeira abordagem é, até quanto for possível, traduzir o texto bíblico “palavra por palavra”. No entanto, é muito difícil ter uma correspondência exata entre o texto original e a interpretação do tradutor. Essa dificuldade se dá porque as frases compostas por palavras contêm diversas ideias culturais incorporadas. Ou seja, cada idioma é diferente uns dos outros. Cada idioma utiliza-se de expressões distintas e contêm em si diferentes maneiras de pensar um determinado termo. Se você já estudou francês e inglês, provavelmente se lembraria que mesmo diante de dois idiomas que se relacionam, existem frases que não podem ser traduzidas “palavra por palavra” (p. ex., você não agradaria o seu professor de francês traduzindo a expressão: “il fait chaud” por “faz calor”). Portanto, embora os tradutores que buscam manter-se fiéis ao sentido original defendam a tradução “palavra por palavra”, certamente hão de concordar que é crucial respeitar também o sentido gramatical tendo em vista tanto os leitores primários quanto os leitores de seu tempo.

Essa abordagem literal ou “equivalência formal”[3] entrega uma interpretação do texto original que pode parecer um tanto quanto estanha ao ser lida por um nativo de língua inglesa ou portuguesa. No entanto, mesmo diante desta dificuldade, esse método pode ser útil, no sentido de resgatar nos leitores modernos, a reflexão de que o texto bíblico foi escrito há muito tempo atrás e para uma cultura diferente. Ou seja, mesmo que não saibamos nada sobre as línguas antigas, isso não impede de percebermos que a maneira como o texto foi escrito é diferente da nossa forma de pensar. Assim, poderemos observar melhor as repetições e conexões intencionais que os autores originais incluíram em seus textos. As versões que adotaram a abordagem da “equivalência formal” foram: King James Version (KJV) e a New American Standard Bible (NASB). Outras versões populares em inglês são a English Standard Version (ESV) e a New Revised Standard Version (NRSV).

Nenhuma dessas versões são realmente traduções “palavra por palavra”. Considerando o fato de que os idiomas funcionam de maneiras diferentes, o significado das palavras pode variar conforme o seu contexto. Por exemplo, a palavra hebraica davar [דבר] possui uma variedade de significados, incluindo: palavra, coisa, discurso, declaração, ocupação, maneira, etc… Com isso, não faz muito sentido traduzi-la sempre como “palavra” por mais “literal” que você esteja tentando ser. É por isso que toda tradução – invariavelmente – é também uma interpretação. Portanto, sempre quando um tradutor estiver diante de uma palavra que representa um conjunto de significados, ele terá que tomar uma decisão interpretativa.

 

Encontrando o sentido correto

A Segunda abordagem é expressar o significado do texto original, de uma forma que, soe natural ao público do tradutor. Essa maneira de traduzir é conhecida como “equivalência funcional” ou “equivalência dinâmica”. Essas traduções tem como objetivo a clareza e se baseiam no estilo atual da língua portuguesa (que inclusive está sujeita a alterações). Conforme vimos, as traduções mais literais são mais difíceis de compreender, pois as frases normalmente não são lidas naturalmente. Porém, podemos facilmente entender o sentido de uma versão dinâmica. Isso pode ser vantajoso porque nosso foco está no sentido geral e em seu significado para nós, não apenas nas palavras específicas e em sua sintaxe. A desvantagem é que podemos perder algumas das sutilezas do original. Quando traduzimos, por exemplo, palavras repetidas no texto original, frequentemente utilizamos termos diferentes em português para a mesma palavra,[4] não porque o significado no grego ou hebraico seja diferente, mas sim por questões de estilo.

Muitas versões utilizam-se da abordagem de “equivalência dinâmica” ou “equivalência funcional”. A versão mais conhecida é a New International Version (NVI). Outras Bíblias como por exemplo: a New English Translation (NET) e a New Living Translation (NLT) buscam um equilíbrio ideal entre a “equivalência formal” e a “equivalência dinâmica”.

Algumas versões da Bíblia vão mais além da “abordagem dinâmica” e tem como objetivo comunicar o significado do texto original da forma mais natural possível.  Essas versões como, por exemplo, a The Message, são paráfrases. Isto é, os tradutores usam as expressões idiomáticas modernas para comunicar a ideia principal de uma frase. Consequentemente, inicialmente, essa abordagem pode comunicar a mensagem do texto da forma mais clara e relevante possível. No entanto, por outro lado, ela certamente obscurecerá o significado original. Por fim, é bastante claro que a abordagem de paráfrases constitui um tipo de interpretação do texto. No entanto, é importante lembrar que outras abordagens também são interpretações.

 

Uma linha tênue

Os defensores da abordagem de “equivalência formal” e de “equivalência funcional” acusam os adeptos da “abordagem de paráfrase” de obscurecerem o significado do texto sagrado. Por outro lado, os tradutores que defendem a literalidade na tradução afirmam que o “método dinâmico” moderniza demais o texto. Já os partidários do “modelo dinâmico” entendem que as traduções literais atrapalham a compreensão do texto, argumentando que muitas palavras já não fazem mais parte do contexto dos leitores contemporâneos.

Mesmo diante dessas posições contrárias, na prática, todas as traduções são resultado da combinação de ambas as abordagens. Como vimos, anteriormente, os tradutores literais acreditam que suas interpretações precisam fazer sentido em sua língua vernacular. Por consequência, às vezes, eles acabam adotando os elementos da abordagem dinâmica, pois sem esse método o resultado final ficaria inacessível aos leitores contemporâneos. Por exemplo, a ESV traduziu Gálatas 1.16 da seguinte maneira: “Não fui consultar imediatamente outras pessoas”. No grego “outras pessoas” significa “carne e sangue” (sarx kai haima). A NVI, por sua vez, optou pela tradução: “qualquer ser humano”. Por fim, a NASB, no livro de Atos 2.17, substituiu “humano” por carne (sarx). É evidente, portanto, que essas traduções não são literais. O prefácio da ESV (adepto da abordagem literal) sinaliza essa tensão (literal ou dinâmica) inevitável, dizendo: “Toda tradução é, em muitos pontos, um compromisso entre a precisão literal e a legibilidade”.[5]

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Por outro lado, as traduções dinâmicas também se esforçam para serem fiéis aos textos originais. Nesse sentido, suas interpretações não reformulam as palavras de maneira arbitrária mais buscam, em alguma medida, um critério lógico. Sendo assim, haverá ocasiões de que a tradução mais dinâmica (NVI), poderá estar mais próxima do original do que uma versão mais literal (ESV). Uma amostra disso poderá ser vista em Gênesis 50.23. No texto hebraico se lê da seguinte forma: “os filhos de Manasses nasceram sobre os joelhos de José”. Porém, esse sentido nas versões bíblicas se altera. Encontramos na NVI a ideia de: “ao nascerem, eles foram colocados sobre os joelhos de José” enquanto na ESV a optou pela tradução: “eles foram contados como os próprios de José”. Portanto, conforme vimos, a linha entre a tradução literal e a dinâmica é muito tênue.[6]

 

Combinando as abordagens

Isso nos leva de volta ao problema inicial de qual versão devemos usar. Você provavelmente perceberá, tendo em vista o que já abordei anteriormente, que não há uma reposta certa para a questão. A resposta dependerá do que você deseja em um determinado momento. No momento do meu devocional, logo pela manhã, eu busco ouvir o sentido da passagem. Para isso, eu evito lidar com frases estranhas (uma leitura mais literal). Sendo assim, uma tradução mais dinâmica é mais aceitável (atualmente, uso a versão da CSB[7]). Agora, quando eu estou preparando o sermão, preciso estar o mais próximo possível do texto original. Portanto, trabalho com uma tradução mais literal (geralmente começo os trabalhos com a ESV).

O fato é que, se queremos compreender melhor a Bíblia, devemos encontrar maneiras de ler as diversas versões disponíveis. Precisamos lê-las porque, como já disse, toda tradução é, em alguma medida, uma interpretação. A variedade de traduções não significa que estão erradas, mas evidência que alguns dos significados originais estão ocultos para nós. Se compararmos algumas versões com as diferentes abordagens de tradução, certamente perceberemos as diferenças entre elas. Com isso, em geral, conseguiremos entender melhor uma passagem e notaremos certas coisas que não tínhamos visto em leituras anteriores. Vez ou outra, isso poderia resultar num dilema, porque as traduções não são idênticas. No entanto, em momentos como este, pode ser necessário consultar algum comentário para entender quais são os argumentos do estudioso sobre essas diferentes versões.

Por fim, pode ser decepcionante saber que não há uma resposta para a questão: qual é a melhor tradução da Bíblia ou qual a tradução mais precisa. Apesar disso, você pode escolher a versão que mais lhe agradar, desde que, por meio dela você consiga conhecer bem o conteúdo (embora a leitura das traduções de paráfrases não seja indicada para uma leitura mais regular). Ao optar por uma versão, descubra qual é a sua abordagem para que, com essa informação você consiga identificar os pontos fracos e fortes dela. Porém, embora a tradução das Escrituras demande, em certos lugares, um maior esforço interpretativo, você pode ter certeza de que, na grande maioria das vezes, você estará lendo o que os autores originais pretendiam que você lesse.

 

Leituras adicionais

Eddie Arthur, ‘The Best English Language Bible.’ Kouya.net, 2021.

John Barton, ‘There are two ways to translate the Bible, and both are right.’ Church Times, 4 November 2022.

John Barton, ‌The Word: On the Translation of the Bible. Penguin, 2022.

Dave Brunn, One Bible, Many Versions: Are All Translations Created Equal? IVP Academic, 2013.

Andy Cheung, ‘Foreignising Bible Translation: Retaining Foreign Origins When Rendering Scripture.’ Tyndale Bulletin, 2012, 63 (2), pp. 257–74. Wycliffe Bible Translators FAQ.

Link: https://tyndalehouse.com/explore/articles/bible-translations/How do we choose which Bible translation to read?


Notas

[1] Para saber mais informações veja: https://wycliffe.org.uk/about/faqs

[2] Há uma pequena porção do texto original em aramaico. Por exemplo, os textos de Daniel e Esdras. Ao todo, são 250 versículos diante de mais de 23.000 versículos do Antigo Testamento.

[3] Este termo ‘equivalência funcional’, foi cunhado pelo pioneiro da tradução Eugene Nida.

[4] Por exemplo, a palavra: descrever pode ser substituída pelos verbos: expor, comentar, discorrer, dizer

[5] Preface to the English Standard Version’ (Crossway, 2001).

[6]  A Bíblia Almeida Século 21, publicada por Edições Vida Nova, oferece uma tradução que considera tanto a exatidão quanto a fluência. Sobre a exatidão os editores disseram: “Na realização desse trabalho exegético, foram utilizados as ferramentas linguísticas mais modernas, bem como os resultados da pesquisa bíblica mais atualizada. Portanto, a exatidão do texto em português, ou seja, a sua fidelidade ao texto original, foi uma das principais prioridades”. Sobre a fluência, eles disseram: ” Fluência é, pois, uma exigência, visto que o texto bíblico precisa não somente ser vertido para a língua receptora, mas também compreendido pelo leitor dentro dos parâmetros do uso normal e rotineiro de sua própria língua”. Portanto, certamente ela contribuirá para os leitores brasileiros que querem estudar a Bíblia de uma forma clara e ao mesmo tempo fiel ao idioma original. Para saber mais sobre essa versão, veja: Bíblia Sagrada Almeida do Século 21. São Paulo: Edições Vida Nova, 2013, p. VI-VII

[7] Christian Standard Bible.

 

Texto original: How do we choose which Bible translation to read? Tyndale House Cambridge. Traduzido por Gedimar Junior e publicado no site Cruciforme com permissão.
Tony Watkins é o membro de Engajamento Público na Tyndale House. Seu doutorado explorou ideias de florescimento na literatura profética e narrativas nos meios de comunicação de hoje. Tony é palestrante e escreve sobre a Bíblia e os meios de comunicação há anos. Ele trabalhou anteriormente em parceria com várias organizações, incluindo a Lausanne Media Engagement Network, Damaris Norway e IFES Graduate Impact. Foi professor adjunto na NLA University College, Noruega, e foi professor visitante em várias outras instituições acadêmicas. Tony é casado com Jane, que é Diretora de Mentoria para Crescimento de Discípulos Jovens.

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1 Comments

  1. Embora eu não seja uma autoridade referente a traduções ou versões, é fácil notar na versão NVI vários passagens que possuem a ausência de palavras das cópias dos originais. Exemplo: Lucas 4.4, ” mas de toda palavra de Deus; está frase está ausente na NVI. Este é apenas um entre tantos exemplos! Algumas versões como linguagem de hoje e NVI as tenho com certa precaução! Seja como for, embora em minha observação tenha algumas versões como espúrias, é uma escolha muito difícil. Uma coisa é certa, nem sempre a facilidade de compreender é sinônimo de fidelidade ao texto bíblico. Interpretar é um trabalho árduo que requer não apenas trabalho intelectual, mas principalmente a iluminação do Espírito Santo.

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