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A morte como o dia de celebração do novo nascimento

Devemos fixar nosso olhar em Deus, a quem o caminho da morte nos leva. A morte, para Lutero, é “o começo da porta estreita e do caminho reto para a vida (Mt 7.14)”. Apesar de a porta ser estreita, a jornada não é longa. Ele elaborou esse conceito mediante a analogia com o nascimento físico:

Da mesma forma que a criança nasce em meio ao perigo e à dor, ao sair da pequena morada do ventre de sua mãe, e entra nestes imensos céu e terra, isto é, neste mundo, assim o homem parte desta vida através do portão estreito da morte. E ainda que os céus e a terra habitados por nós no presente nos pareçam grandes e amplos, eles são, não obstante, muito mais estreitos e menores que o ventre materno em comparação com o céu vindouro. Portanto, a morte dos santos queridos é chamada de novo nascimento, e seu dia de festa é conhecido em latim por natale, isto é, o dia do seu nascimento.[1]

Assim como a criança nasce ao passar através de um canal estreito e escuro para a nova vida, também nós nascemos ao atravessar a passagem estreita e escura da morte para a nova vida. A fim de ilustrar a jornada da morte, Lutero citou as próprias palavras de Jesus em João 16.21: “A mulher, quando está para dar à luz, sente dores porque a sua hora chegou. Mas, depois de ter dado à luz a criança, já não se lembra do sofrimento, diante da alegria de ter trazido um ser humano ao mundo”. Essa via através do vale sombrio, ainda que mais repleta de dores e mais amedrontadora do que jamais poderíamos descrever em palavras, pode ser trilhada com segurança quando temos certeza do seu fim. Nossa fé não exige a negação da dor do luto e do horror da morte. Ao contrário, é a própria realidade duríssima da morte que torna a mansão celestial tão desejável e tão gloriosamente exuberante. Lutero escreveu: “Assim é que, ao morrer, devemos carregar essa angústia e saber que uma grande mansão e alegria virão a seguir (Jo 14.2)”.[2] Apenas do ponto de vista dessa imensurável alegria da nova vida celestial podemos celebrar a morte como nosso “dia de festa” (natale), o dia do nosso nascimento na vida além.

O triunvirato do mal: morte, pecado e inferno

A fim de nos beneficiarmos corretamente do poder dos sacramentos, precisamos conhecer os males por eles sobrepujados e cujos ataques (Anfechtung) enfrentamos. Lutero deu nome a três “imagens” de males dos quais todos os outros procedem. São elas as imagens terríveis da morte, a imagem multiforme do pecado e a imagem insuportável do inferno e da condenação eterna. A morte agiganta-se e se torna ainda mais aterrorizante porque nossa natureza tola e fraca tem uma fixação constante por ela. “O poder e a força da morte estão enraizados no medo natural”.[3] Além disso, o Diabo transmite incansavelmente a imagem da morte aos crentes por meio de representações de várias formas de morrer que induzem ao medo. Para Lutero, a morte, essa realidade não natural, sempre está associada à ira de Deus. O Diabo também transmite a imagem da morte ao manifestar a ira de Deus contra os pecadores de modo a lançá-los no desespero absoluto. “Dessa forma, ele [o Diabo] enche nossa tola natureza humana com o receio da morte enquanto cultivamos o amor e a preocupação com a vida, para que, sobrecarregado com esses pensamentos, o homem se esqueça de Deus, fuja da morte e a abomine e, desse modo, por fim, seja desobediente a Deus e assim permaneça”.[4] Lutero nos exortou à contemplação da morte no momento certo. A força da morte torna-se cada vez maior, e o temor dela, mais intenso, por não pensarmos na morte na hora certa. Durante nossa vida, devemos “convidar a morte para entrar em nossa presença quando ela ainda se encontra à distância, e não a caminho”. Assim, ele aconselhou os cristãos a banirem todos os pensamentos de morte na última hora e a meditarem sobre a vida nesse momento.[5]

Que fazer com a segunda imagem, a do pecado? O poder do pecado e sua culpa não podem ser aliviados pela introspecção. A imagem de pecado agiganta-se quando vem acompanhada da consciência acusadora. O Diabo aumenta essa imagem em nós ao nos fazer lembrar dos que foram condenados ao inferno por pecados menores que os nossos. Isso também nos lança no desespero absoluto, nos levando a esquecer da graça divina e a desobedecer a Deus na última hora.[6] Mais uma vez, Lutero destacou o momento adequado de contemplação dessa imagem a fim de colher os benefícios certos. Ele advertiu que a contemplação de nossos pecados deve ocorrer durante nossa vida, como ensina o texto de Salmos 51.3: “Meu pecado está sempre diante de mim”. O Diabo fecha nossos olhos e esconde a imagem do pecado durante nossa vida, quando devemos pensar nele. Depois, ele abre nossos olhos para essa realidade horrível na hora final, quando nossos olhos deveriam contemplar apenas a graça, não o pecado. Assim, ao propor a contemplação inoportuna do pecado, ele vira tudo de cabeça para baixo.[7]

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Da mesma forma, a terceira imagem, o inferno, tem seu poder aumentado pela meditação extemporânea. “Isso é aumentado extraordinariamente por nossa ignorância do conselho de Deus.”[8] De modo específico, o Diabo aumenta o peso da alma com perguntas persistentes a respeito da eleição. Ele incita a alma a ocupar-se de algo proibido — sondar o mistério da vontade oculta de Deus. Nesse empreendimento, o Diabo “pratica sua arte e poder finais, maiores e mais ardilosos”,[9] pois ele “coloca o homem acima de Deus”, para que procuremos pela segurança da eleição no lugar errado. Essa linha de inquirição lança dúvidas sobre Deus e nos faz olhar para um Deus diferente do que já conhecemos. Ao suscitar essas dúvidas sobre a eleição, o Diabo está determinado a substituir o bálsamo do amor de Deus pelas preocupações temerosas com a ira de Deus. “Quanto mais docilmente o homem segue o Diabo e aceita esses pensamentos, tanto mais em perigo sua posição se encontra.”[10] Por causa disso, Lutero advertiu sobre a procura de Deus fora de Jesus Cristo. Isso significaria incorrer no terror do Deus abscôndito, resultando em ódio e blasfêmia contra ele.[11] Ele repudiou a presunção da humanidade de saber tudo o que Deus sabe, mas insistiu em deixar Deus ser Deus. A “tentação” (Anfechtung) sobre a eleição é um ataque do inferno, como os salmos lamentam (cf. Sl 65.4; 78.67,68; 106.4,5), e superá-la significa vencer ao mesmo tempo o pecado, o inferno e a morte.[12] Nesse sentido, Lutero aconselhou, precisamos nos esforçar para não abrir a mente para quaisquer dessas imagens ou convidar o Diabo a se imiscuir em nossa vida. Se permitirmos que essas imagens nos ocupem o coração, estaremos condenados, e Deus e seu amor serão banidos por completo de nossa mente; nesse caso, nós, que de outro modo morreríamos felizes, tornamo-nos relutantes em partir desta vida. Lutero resumiu seu conselho aos que se preparam para morrer assim: “Vocês devem olhar para a morte enquanto estão vivos, e enxergar o pecado à luz da graça e o inferno à luz do céu, não permitindo que nada os desvie dessa visão”.[13] A morte torna-se, assim, mais suportável, se observarmos seu tempo e sua perspectiva.

________________

[1] LW 42, p. 99-100. O dia de festa remonta ao século 2. Originalmente, a festa homenageava um parente no dia de sua morte. Mais tarde, passou a celebrar em especial os santos e mártires. Veja LW 42, p. 100, n. 1.

[2] LW 42, p. 100. Também citado em Althaus, Theology of Martin Luther, p. 408.

[3] Veja H. Bornkamm, Luther’s world of thought, tradução para o inglês de M. H. Bertram (St. Louis: Concordia, 1958), p. 115-33. Na perspectiva de Bornkamm, a morte ocupa um lugar significativo no pensamento de Lutero.

[4] LW 42, p. 101-2.

[5] LW 42, p. 101-2.

[6] LW 42, p. 102.

[7] LW 42, p. 102.

[8] LW 42, p. 102.

[9] LW 42, p. 102.

[10] LW 42, p. 102.

[11] LW 42, p. 102.

[12] LW 42, p. 102.

[13] LW 42, p. 102.

Trecho extraído da obra “Lutero como conselheiro espiritual: a interface entre a teologia e a piedade nos escritos devocionais de Lutero“, de Dennis Ngien, publicada por Vida Nova: São Paulo, 2017, pp. 61-64. Traduzido por Rogério Portella. Publicado no site Tuporém com permissão.

Dennis Ngien é professor pesquisador de Teologia no Tyndale Theological Seminary, em Toronto, e diretor do programa de ThM dessa instituição. Publicou inúmeros artigos em periódicos sobre a história da teologia trinitária e o conceito do sofrimento de Deus. Dirige também o Centro de Mentoria e Reflexão Teológica em Toronto, o qual ele fundou, mentoriando pastores e líderes de igreja e ajudando as igrejas nas áreas de aconselhamento e ensino.
Lutero era um verdadeiro teólogo, um teólogo da cruz atuante no contexto pastoral.

Como conselheiro espiritual, Lutero ensinou, por meio de seus escritos, a meditar corretamente sobre a Paixão de Cristo, a preparar-se para enfrentar o horror da morte, a aconselhar os enfermos, a tratar corretamente do sacramento do altar, a orar da forma correta, a extrair benefícios da Oração do Senhor e a viver uma vida de discipulado sob a cruz.

Seus escritos têm formato e propósito devocional e catequético, mas estão repletos de substância teológica, fruto de rigorosas reflexões. Refletem a vocação fundamental de Lutero como pastor-teólogo e são exemplos concretos da interface entre teologia e piedade.

Publicado por Vida Nova.

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