Conversão cristã e marxismo | David F. Wells

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Karl Marx (1818-1883)

O marxismo já foi considerado por alguns uma heresia cristã. Ele tem a forma da fé, mas o conteúdo do humanismo ateu. O marxismo tem fortes semelhanças com a fé cristã e divergências importantes. A teologia cristã concorda com a análise inicial de Marx, isto é, a avaliação da discrepância fundamental do ser humano entre ser e dever ser. Ele concorda com a percepção da necessidade da mudança moral básica e constante, como de constante consciência autocrítica. A fé cristã, baseada na Bíblia, lida com essa tarefa moral socialmente relevante; ela não consiste apenas em um sistema de cosmologia ou um conjunto peculiar de costumes étnicos. Na verdade, ela insiste na centralidade da mudança moral e não permite seu desaparecimento periódico em ondas alternadas de dogmatismo e pragmatismo.

Jesus, depois de alimentar as multidões, não permitiu que o considerassem apenas um fornecedor estimado de provisões materiais (Jo 6.15). O cristianismo, também, se importa que todos tenham as necessidades da vida providas. Mas também sustenta que “nem só de pão viverá o homem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus” (Mt 4.4) – versículo algumas vezes citado por líderes marxistas, embora apenas a primeira parte! Do ponto de vista cristão, viver consiste em realizar a vontade divina, não buscar o próprio bem-estar. O materialismo inato aplica um truque sujo no marxismo nesse ponto, por meio de uma meia-verdade que muitas vezes se apresenta como a plenitude do evangelho. Na verdade, precisamos de pão, mas não podemos nos contentar quando o temos. Meios materiais não resolvem problemas morais, certamente não quando os problemas são vistos sob o domínio do ego.

Além disso, a fé cristã concorda com Marx a respeito da necessidade de mudança na vida, no trabalho e nos relacionamentos entre os seres humanos (ou seja, na aplicação individual). Embora o cristianismo contemple a necessidade de mudanças nas instruções sociais e na legislação, enfatize o indivíduo principalmente, acima das alterações apenas nos métodos, estruturas, nas leis ou nos oficiais – e que os marxistas tantas vezes parecem propagar. O cristianismo é completamente cético em relação a esquemas globais de salvação social, esquemas que os seres humanos são notoriamente incapazes de pôr em prática.

Por fim, a teologia cristã concorda com Marx que essa mudança nos seres humanos deve ocorrer no sentido de que todos se importem com as outras pessoas e com a humanidade. Marx aqui está bastante certo ao identificar o enigma da alienação moral da humanidade: a falta de consideração para com o próximo. Não pode haver lugar no cristianismo para o cinismo que finge tentar estabelecer uma sociedade mais justa e fraterna. Os problemas morais envolvidos na manutenção da vida humana e na associação humana não desaparecem se forem ignorados, mas precisam de constante atenção, não menos no Ocidente que no Oriente. Como engendrar um comportamento socialmente responsável é de fato um problema de relevância imediata em países cuja cultura é dominada pela filosofia da “geração do eu”.

Em suma, a teologia cristã apoia o conceito da conversão concreta. No entanto, a fé bíblica também chama à conversão completa no sentido de a pessoa se voltar não apenas para o próximo, mas para Deus. Isso é fundamental quanto à motivação. A menos que Deus seja o objetivo e o penhor, não há razão para a manutenção de padrões morais absolutos. Quando Deus é ignorado, e as mudanças se baseiam apenas na autoridade humana, o relativismo moral é inevitável porque o poder o poder da determinação moral é dado a indivíduos ou grupos seletos que facilmente confundem padrões morais com seus interesses. Mesmo no mais elevado dos casos, a desonestidade, pelo bem da causa, pode tornar-se desonestidade por causa de algum objetivo pessoal sem possibilidade de correção. O relativismo moral também significa o fim do discurso moral entre todos os envolvidos. Ele não pode ser contido, e acaba se voltando contra seus primeiros defensores mais bem-intencionados. Nesse ponto, o compromisso do cristianismo com a justiça logicamente exige padrões morais absolutos, e eles são impensáveis sem a autoridade de Deus.

O mesmo é verdadeiro no campo da motivação. O grupo, o coletivo, a sociedade e o Estado são fundamentalmente incapazes como motivadores do altruísmo. A vontade individual sem dúvida questiona as exigências morais alheias. Lidamos aqui com o problema da possibilidade da existência da moralidade sem a religião. Parece haver profunda sabedoria nas cláusulas do Antigo Testamento que apoiam exigências éticas na autoridade divina: “Não explorem um ao outro […]. Eu sou o Senhor, o Deus de vocês” (Lv 25.17; cf. Gn 50.9).

Outro problema é como as exigências morais objetivas podem ser subjetivadas ou internalizadas. A teologia cristã duvida da capacidade da educação, ou da mera apresentação de ideias, para produzir a mudança moral. O marxismo prossegue com esse discurso, e deve ser visto como idealista. Às vezes se tem a impressão, em países socialistas, que as fortes forças do nacionalismo são empregadas como motivadores em direção à meta moral pretendida. Mas isso, como a reintrodução periódica dos princípios capitalistas no caminho para o socialismo, parece apenas mais uma tentativa de “atravessar o rio nas costas do crocodilo”; o nacionalismo sem dúvida não cria o “homem novo” da “irmandade humana”, mas pode facilmente se tornar uma das mais potentes e desagradáveis encarnações do “velho homem”.

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“Medidas administrativas”, ou que pressionem as pessoas para que se comportem com correção, provaram-se ineficientes. A aplicação da força – onde, lembremos, busca-se a mudança moral fundamental – produz apenas hipocrisia, falta de confiança e, de maneira generalizada, reconstitui com exatidão o que se considerava o problema, no início. Educação e acompanhamento são medidas externas que não penetram no coração. É inútil pensar que o pecador pode realizar a própria conversão, ou pior, a dos outros. Não ocorrerá a conversão do próximo sem a conversão de Deus. A redescoberta do próximo sem a redescoberta de Deus e vã; o ateísmo marxista causa estragos com suas próprias metas elevadas.

Por isso o jovem Marx, depois de ter esboçado o problema do homem como o único ser na criação que não cumpre seu objetivo, continuou a afirmar que o cristianismo é necessário para o desenvolvimento moral completo. O cristianismo, acima de tudo, ressalta a questão da internalização do bem, de modo que ele se torne uma expressão espontânea do crente. Onde as pessoas encontraram Jesus, a mudança moral (como na história de Zaqueu, o cobrador de impostos) não surgiu como consequência de uma ordem, mas apareceu de modo espontâneo, a evolução de uma necessidade, não de coerção. Também por isso Agostinho, Bernardo e Calvino se referem ao “testemunho interno” do Espírito de Deus, que autoriza a mensagem objetiva anunciada e se torna a propriedade mais íntima da pessoa. Isso efetua a mudança no “coração”, no centro de motivação, e ultrapassa a mudança moral como postulado. Fala do amor como dom divino, derramado em nosso coração (Rm 5.5). Sem ele, procuraremos em vão pela mudança moral que combine autocrítica e a dedicação inabalável aos padrões absolutos do que é certo.

O idealismo dos marxistas muitas vezes é admirável, mas a sua visão e programa são fatalmente falhos pela avaliação do egoísmo e da injustiça, e do perdão e da mudança. No entanto, por mais triste que a história da fé cristã às vezes seja, ela gerou no mundo homens e mulheres criativos e de coragem que mudaram profundamente o curso da vida. E isso pode acontecer de novo! Pois o mesmo Deus que sustenta a vida, governa nosso mundo, regula a ordem moral e dirige o curso da história ainda está chamando pessoas, da mesma maneira, por meio do mesmo evangelho, na mesma vida baseada na ressurreição de Jesus para servi-lo e preservar o que é bom, reto e honroso no mundo. As ondas de materialismo, prático ou teórico, parecem montanhas imponentes, com enorme poder e apelo irresistível, mas sempre elas, também, batem contra a dura realidade da vida. Homens e mulheres foram feitos por Deus. Apesar do alardeado idealismo, de um lado, e dos artigos de consumo e Porsches, de outro, o coração humano está sempre inquieto, até encontrar seu descanso em Deus.

Trecho extraído da obra “Volte-se para Deus – A conversão cristã como única, necessária e sobrenatural“, de David F. Wells, publicado por Shedd Publicações: São Paulo, 2016, p. 182-187. Traduzido por Vivian do Amaral Nunes. Publicado com permissão.

^E67481153BF6B54F3495021949F2DA50FDA4091F2547043832^pimgpsh_fullsize_distrDavid F. Wells é professor de Teologia Sistemática no Gordon Conwell Theological Seminary. É autor de vários livros, incluindo "No Place for Truth" a ser publicado por Shedd Publicações.
volte-se-para-deusVolte-se para Deus explora questões fundamentais sobre regeneração e conversão, distinguindo o cristianismo das outras religiões, demonstrando o caráter único, sobrenatural e necessário da conversão ao cristianismo para a salvação. Dr. Wells apresenta uma discussão clara, bem embasada e equilibrada da experiência cristã da conversão, sua história, controvérsias e base bíblica.

Todos os que se maravilharam com o mistério de como e por que nos voltamos para Deus, além dos céticos a respeito da conversão religiosa, serão desafiados e encorajados pelo tratamento minucioso de um dos alicerces da fé cristã.

Publicado por Shedd Publicações.

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