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04/out/2017Literalmente nada é possível sem o poder ordenador, criativo de Deus.
O filósofo alemão Martin Heidegger disse que a questão básica abordada em metafísica é “Por que existe algo ao invés de nada?”. Por definição, disse ele, a ideia de uma metafísica cristã é um “ferro de madeira”, uma contradição em termos. Por quê? Porque o cristão já sabe a resposta à questão. Sabemos que existe algo ao invés de nada porque Deus fez o mundo.
O que quer que achemos da definição de metafísica dada por Heidegger, podemos concordar que ele estava certo sobre uma coisa. É fundamental para todo pensamento cristão a crença de que Deus criou o mundo, que a realidade é criação num sentido fundamental.
Isso é uma confissão cristã ecumênica. Mas provavelmente não há outra tradição cristã em que o ensinamento sobre a criação desempenha um papel tão crucial quanto naquela linha que vai da Escritura, passando por Irineu, Agostinho, Calvino e Kuyper até a Comment Magazine. Nesta vertente da tradição cristã, a criação é concebida de uma forma particularmente abrangente, e mesmo a salvação é em larga medida entendida como uma recuperação da criação como Deus tinha originalmente intencionado. A criação é fundamental para tudo. Ademais, a criação é boa num sentido profundo e primordial, tão profundo, na verdade, que a bondade da criação continua a se manifestar mesmo no meio de uma perversão terrível.
Diferentemente de outros entendimentos do cristianismo ortodoxo, esta vertente da tradição não vê a redenção como algo posto contra a criação (como na teologia dialética), ou como suplementando e a cumprindo (como em alguns entendimentos do tomismo) ou como ficando ao lado dela sem uma conexão intrínseca (como em várias teorias de dois reinos), mas na realidade como a renovando e restaurando. Assim, a criação, incorporando a intenção de Deus desde o princípio, é o próprio objetivo da salvação em Cristo. A questão crucial na redenção é restaurar a vida e o mundo à maneira que foram feitos para ser desde o princípio. A salvação quer dizer recriação; a graça restaura a natureza.
Contudo, a fim de entendermos isso apropriadamente, precisamos ter uma visão da criação que é bem mais abrangente e diversificada do que é comum no uso cristão comum. A primeira coisa que a maioria das pessoas pensa como se referindo à criação é o assim chamado “mundo natural”, isto é, o mundo físico e biológico. Pensamos nas estrelas e galáxias bem como nas moléculas e nos átomos, nas árvores e nas flores bem como nos pássaros e nos animais. Mas isso é uma visão limitada demais da criação. Na visão bíblica, a criação é tudo que Deus ordenou existir, o que ele fez parte de sua obra criativa. Com certeza, isso inclui a grande variedade de entidades e processos físicos e a enorme diversidade da flora e da fauna que Deus criou “segundo as suas espécies”, mas também abrange muito mais. A criação inclui realidades humanas como famílias e outras instituições sociais, a presença da beleza no mundo, a habilidade de apreciar essa beleza, os fenômenos de candura e de humor, a capacidade de conceitualizar e raciocinar, a experiência de alegria e o senso de justiça. Uma variedade quase inimaginável de objetos, instituições, relacionamentos e fenômenos são parte da rica textura da criação de Deus.
É um fato impressionante que a religião bíblica não seja singular nesse ponto. Embora exista um sentido em que a ideia de criação, entendida como um arranjo contingente e ordenado da realidade realizado por um Deus transcendente, seja singular ao pensamento bíblico – certamente os gregos nunca conceberam isso –, a ideia geral de uma ordem cósmica sancionada divinamente que abrange tanto o mundo natural quanto a vida e sociedade humana é bem disseminada. Já foi apontado, por exemplo, que a noção de “criação” em outras nações do Oriente Próximo (na Mesopotâmia e no Egito e em áreas vizinhas) se referia primariamente à forma com que a noção de sociedade humana foi organizada. Os vários “mitos criacionais”, embora não excluíssem o mundo físico e biológico, foram feitos primariamente para explicar o mundo humano com sua cultura e sociedade, suas instituições como a realeza e o sacerdócio. A obra de Richard Clifford sobre esses antigos mitos criacionais é particularmente esclarecedora nesse aspecto.
Todavia, essa noção de uma ordem mundial divina todo-abrangente vai muito além do Antigo Oriente Próximo. Praticamente todas as culturas possuem religiões que pressupõem tal ordem e que relacionam essa ordem em primeiro lugar aos arranjos da sociedade humana. A religião comparada e a antropologia cultural encontram essa ideia de uma ordem universal, na qual a humanidade e todas as manifestações culturais se encaixam facilmente como o bebê e o ventre em praticamente todas as sociedades humanas. As grandes exceções são sociedades moldadas pela ramificação dominante das filosofias e ideologias seculares do Ocidente desde a Renascença europeia. Essas sociedades criaram um divórcio entre os mundos natural e o humano, de forma que os padrões de vida e cultura humana não são mais buscados numa ordem externa dada que possui autoridade divina, mas no próprio sujeito humano, que produz sua própria ordem por sua própria autoridade.
Tudo isso quer dizer que a ideia bíblica da criação abrangendo muito mais do que o mundo natural não é tão peculiar de uma perspectiva de história mundial. O que é peculiar sobre o conceito bíblico na verdade é o Criador transcendente e soberano que faz tudo acontecer e que o Criador faça a sua obra sem partir de qualquer material preexistente. A criação bíblica é uma creatio ex nihilo, criação a partir do “nada”, o que quer dizer, é claro, uma criação sem qualquer coisa prévia, sem qualquer matéria bruta. Deus simplesmente falou e assim se fez.
Consequentemente, de um ponto de vista amplamente cultural e histórico, não causa surpresa que a Bíblia inclua a ordem política ou a instituição do casamento como coisas criadas por Deus, como partes do que ele ordenou desde o princípio. Nem deveríamos concluir dos textos bíblicos que mencionam a ordem política e o casamento (eu estou pensando especialmente em Rm 13.1, 1Pe 2.13 e 1Tm 4.3-4) como se fossem apenas instituições sociais ou realidades culturais que pertencem ao arranjo de coisas ordenado por Deus. Elas são simplesmente ilustrações incidentais da grande verdade presumida por toda a Escritura de que literalmente nada é possível sem o poder ordenador, criativo de Deus, o qual determina a lei às criaturas e aos relacionamentos criados e aos fenômenos em toda sua vasta variedade.
É especialmente a ideia da lei criacional que clarifica a concepção bíblica de criação. Como um rei soberano, Deus outorga as suas leis (seus decretos, seus estatutos, suas ordenanças, suas palavras) para tudo que existe. A realidade é constituída por sua palavra de ordem criativa. Do mesmo modo, tudo é criacional no sentido de que é tanto constituído quanto normatizado pelo “faça-se” (fiat) divino. Isso se aplica tanto ao instinto do passarinho de construir ninhos quanto aos princípios da ciência jurídica ou pensamento lógico. É claro, no caso das dimensões tipicamente humanas da criação, as normas e padrões que Deus estabelece também requerem implementação humana responsável e, assim, irão variar em seu desenvolvimento em tempos e lugares diferentes.
É difícil, impossível, na verdade, falar como cristão sobre a criação abstraindo-a de outras duas categorias fundamentais na história bíblica: pecado e salvação. O pecado significa a distorção da criação e a salvação, a sua recuperação em Cristo. Isso quer dizer que a criação retorna com uma vingança (por assim dizer) na vida cristã redimida. É na glória ricamente matizada da vida humana criada, em que mães cantam canções de ninar a seus bebês e crianças correm pela simples alegria da rapidez, que Deus quer ser glorificado pelo nosso serviço e testemunho a ele; de modo que todo o mundo pode ver como é a verdadeira vida humana criada a despeito das cicatrizes e mazelas do pecado e da morte. Isso se aplica a quando vamos ao cinema e a quando fazemos cinema, às nossas festas e ao nosso filosofar, à nossa imaginação e à nossa determinação.
A criação constitui o bê-á-bá de nossas vidas ordinárias, e em Cristo isso é glorioso. Individual e comunitariamente, somos pôsteres do reino, a criação recuperada de Jesus Cristo. Quando o apóstolo Paulo diz que a igreja é “coluna e baluarte da verdade” (1Timóteo 3.15), ele certamente não quer dizer que nós como povo de Deus de alguma forma seguramos ou sustentamos a verdade de Deus. Na verdade, o que a sua imagem quer dizer é que nós, como povo de Deus, somos coletivamente como as paredes e suportes que continham o grafite do mundo antigo, enviando mensagens a todos que por ali passavam. Devemos ser outdoors do evangelho na ordinariedade extraordinária das nossas vidas diárias – extraordinárias por causa do poder renovador do Espírito Santo, ordinárias por causa da coisa criada comum de nossa existência diária. É nesse sentido profundamente comum e terreno que a criação, para usar a frase arrebatadora de Calvino, é o teatro da glória de Deus.
Traduzido por Guilherme Cordeiro e revisado por Jonathan Silveira.
Texto original: Creation. Comment Magazine. Este artigo foi publicado em 1 de março de 2010 na revista “Comment”, uma publicação da CARDUS: www.cardus.ca.
Albert M. Wolters é professor emérito de religião, teologia e línguas clássicas na Redeemer University College. Serviu como membro sênior no Institute for Christian Studies em Toronto no período de 1974-1984, obteve seu doutorado em filosofia da Free University of Amsterdam em 1972, e é autor do livro “A Criação Restaurada: Base Bíblica para uma Cosmovisão Reformada”. |
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Veja também os demais artigos da série:
- Criação – Albert M. Wolters
- Queda – David K. Naugle
- Redenção – James K. A. Smith