Deus não é apenas onisciente, é oniperspectivista | John Frame

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A perspectiva de Deus

Deus foi aquele que criou este mundo vasto e belamente complexo. Cada árvore mostra essa vasta sabedoria. Jesus disse que Deus vê cada pardal que cai (Mt 10.29) e sabe o número de fios de cabelo em nossa cabeça (Mt 10.30). Sem dúvida, ele também conhece cada folha da árvore, cada raiz, cada pedaço de sua casca.

Para entender melhor a vastidão do conhecimento de Deus, podemos compará-lo com o nosso, mas também com o de animais. Ao longo da vida, tive três cães da raça welsh corgi pembroke, e eles eram os cachorros mais inteligentes do mundo. Ensinei-os não apenas a sentar, vir quando eu chamava, ficar em pé e rolar, mas também a virar para a direita ou para a esquerda. Treinei um deles para reagir quando visse cães e gatos na televisão (uma lição da qual me arrependi mais tarde). Tenho certeza de que, em um mundo pós-apocalíptico, um welsh corgi seria capaz de encontrar alimento para minha esposa e para mim com mais facilidade que eu. No entanto, meus cães sempre tiveram um nível evidente de ignorância: não faziam ideia do que eu estava escrevendo em meus livros. Não conseguiam ler nem mesmo o primeiro parágrafo das introduções. Por certo, a comparação entre o conhecimento de meus cães e o meu é semelhante à diferença entre meu conhecimento e o de Deus. Há itens de conhecimento extremamente básicos para Deus a respeito dos quais não faço ideia. Usar o raciocínio para tentar entender a coerência dos atributos de Deus e a razão pela qual Deus criou o mal seria como meu cão tentar compreender plenamente a primeira frase de minha Teologia Sistemática. Para imenso crédito do cão, ele nunca fez essa tentativa.

Teólogos dizem que, pelo fato de Deus ter criado todas as coisas e de se lembrar daquilo que criou, ele é onisciente. No entanto, seu conhecimento não abrange apenas fatos básicos sobre árvores, cabelos e pardais. Ele vê todas essas coisas de todas as perspectivas possíveis. Ele vê a parte posterior da cabeça do pardal e a parte anterior, com sua face. E ele vê meus fios de cabelo desde seus folículos, com cada vez menos pigmentos. Ele os vê de sua perspectiva divina onisciente, mas também entende como minha esposa, com seus sentidos, percebe meus cabelos. E ele é capaz de vê-los como qualquer pessoa os vê, de todos os ângulos possíveis. Ele sabe como um pardal se parece para outro pardal, ou para o gavião que voa acima dele. Ele vê meus fios de cabelo pela perspectiva da mosca na parede de meu escritório. Ele conhece até perspectivas que são meramente possíveis: ele sabe como meus cabelos se pareceriam da perspectiva de uma mosca na parede, mesmo quando não há nenhuma mosca na parede. Portanto, Deus é não apenas onisciente, mas oniperspectivista.

A incorporação de outras perspectivas humanas

Sentado na cadeira em meu escritório, posso olhar pela janela, da qual tenho uma bela vista do estacionamento do seminário. Em outras palavras, a janela me dá acesso a uma perspectiva do estacionamento que chega a mim especialmente por meio de meus olhos. Se eu fosse para fora, essa perspectiva seria enriquecida por sons, cheiros e coisas que posso tocar, tudo isso acompanhado das reflexões intelectuais de meu cérebro. Todos esses elementos fazem parte de uma perspectiva, minha perspectiva, à qual tenho acesso por meio de meu corpo. Em certo sentido, tenho apenas essa perspectiva do mundo. Tudo o que sei é acessível para mim por meio de meu corpo. E não tenho como sair dele.

Contudo, o aprendizado nunca termina em minha experiência imediata. Vejo George no estacionamento, e pergunto se seu filho de 5 anos se recuperou do resfriado. Ele responde que sim, e acrescento esse fato a meu conhecimento do mundo. Não vejo a criança, e sua saúde não faz parte de minha experiência imediata. Mas George faz parte dessa experiência, e confio nos relatos de George sobre a experiência imediata dele. Portanto, o conhecimento de George enriquece o meu. Minha perspectiva se amplia pela incorporação da perspectiva de George. Logo, embora eu não tenha como sair de meu corpo, posso, de certa maneira, acrescentar a perspectiva de outros à minha. Claro que não confio em todo mundo da mesma forma que confio em George. E, quanto a algumas questões, talvez nem confie plenamente em George. A expansão de minha perspectiva é uma tarefa crítica. Tenho de avaliar se as perspectivas de outros são confiáveis e até que ponto o são; também tenho de avaliar até que ponto seus testemunhos de suas experiências são verdadeiros. Meus pensamentos críticos, porém, fazem parte de minha perspectiva do mundo.

Como faço essas avaliações? Qual é o processo que me permite discernir até que ponto a perspectiva de outra pessoa é verdadeira? Em grande medida, nossa avaliação dessas questões começa com a intuição. Alguns testemunhos, como o de George sobre seu filho, parecem obviamente verdadeiros. George é uma pessoa como eu. No passado, ele mostrou que estava certo. Não sei de nenhuma ocasião em que ele tenha me enganado ou tenha se equivocado a respeito de algo em sua experiência imediata. Não há problemas com sua percepção. E aquilo que ele diz tem um “ar de veracidade”. Corresponde a avaliações que faço sobre outros aspectos de minha experiência. Esses fatores se unem harmoniosamente. São “intuitivos”. Simplesmente sabemos, pois conhecemos o “ar” que a verdade tem.

Em outros casos, porém, há perguntas cujas respostas não são tão óbvias. Sabrina é democrata, e ela diz que poderíamos oferecer ensino superior gratuito para todos se cobrássemos de milionários e bilionários impostos correspondentes a noventa por cento de sua renda. Essa informação me parece duvidosa, pois, de acordo com outros, mesmo que o governo confiscasse cem por cento dos bens dos ricos, não chegaria nem perto do valor necessário. E mesmo que essa política funcionasse, seria justo cobrar noventa por cento de imposto sobre a renda de alguns?

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Nesse caso, não posso simplesmente confiar em Sabrina como confio em George. Não basta aceitar sua perspectiva e acrescentá-la à minha, como fiz com George. Sabrina não é apenas um conjunto de órgãos do sentido que posso acrescentar aos meus. Antes, ela refletiu em certa medida sobre a realidade a partir de sua perspectiva, e acrescentou essa reflexão ao que ela considera conhecimento acumulado. Não posso, contudo, simplesmente aceitar seu testemunho de modo indiscriminado. Preciso fazer minha própria avaliação.

Se quero investigar essa questão, portanto, tenho de pesquisar a seu respeito ou, pelo menos, consultar mais autoridades nesse assunto para entender se o governo pode oferecer ensino para todos ao cobrar mais impostos dos ricos. Mas também preciso perguntar: que autoridades são confiáveis? Se as ideias de Sabrina nem sempre são confiáveis, onde posso encontrar a verdade? Posso ler jornais, livros e conteúdo online, mas como avaliar, em cada caso, se o testemunho é confiável?

Devo usar minha intuição? Em certo sentido, sim. As avaliações que fazemos são nossas. Também nesse caso, não podemos sair de dentro de nós mesmos. Entretanto, sabemos que cometemos erros com frequência. Se eu considerar que a capacidade de avaliação de Sabrina não é confiável, preciso reconhecer que talvez ela tenha a mesma opinião a respeito de minha capacidade de avaliação. Claro que tanto ela quanto eu temos de “fazer nossas próprias avaliações”. Mas essa é uma tautologia. Significa apenas que pensamos o que pensamos. Não serve de base para afirmar que o conteúdo de nossa mente é infalível, ou mesmo melhor do que o conteúdo da mente de outra pessoa. Não é raro mudarmos de ideia em deferência à opinião de alguém que parece ter uma perspectiva melhor que a perspectiva que tínhamos até o momento. Não usamos nossa mente como parâmetro estático que rejeita todas as ideias que não correspondem às nossas. Pelo menos não é o que devemos fazer. Devemos ser flexíveis o suficiente para que, por vezes, possamos aprender algo novo e, pelo menos ocasionalmente, possamos deixar de lado velhas ideias e aceitar ideias novas e até mesmo parâmetros melhores.

Conhecer o mundo é, portanto, um processo complicado e em constante mudança. É uma questão de interagir com nosso grande número de perspectivas e com as perspectivas de outros e lidar com ambiguidades.

Pode parecer que não temos nenhum rumo. Somos como grãos de pó levados de um lado para o outro pelo vento, “jogados de lá para cá pelas ondas […] levados de um lado para outro por todo vento de doutrina” (Ef 4.14). Não existe um mapa que nos diga aonde ir? Não existe um método para fazer escolhas acertadas?

Acesso à perspectiva de Deus

A Bíblia ensina que Deus nos concedeu algum acesso à perspectiva dele, a oniperspectiva, a perspectiva que abrange e corrige todas as outras perspectivas. Digo “algum” acesso, não acesso total. Se tivéssemos acesso total, significaria que nossa mente é idêntica à de Deus, o que não é possível. Deus é o Criador, nós somos as criaturas. A discrepância não é apenas quantitativa, de que Deus conhece todos os fatos e nós, apenas alguns. Antes, é qualitativa, pois o conhecimento por Deus de cada fato é diferente de nosso conhecimento do mesmo fato. Deus sabe, por exemplo, que os pintarroxos voam para o sul no inverno; nós também sabemos. Mas o conhecimento de Deus é original, enquanto o nosso é derivado. Deus criou os pintarroxos e os formou para que ajam dessa maneira. A proposição “os pintarroxos voam para o sul” é uma proposição que Deus criou para que fosse verdadeira. Quando digo que pintarroxos voam para o sul, estou declarando algo que Deus criou para que fosse verdadeiro.

O conhecimento de Deus é, portanto, o critério do nosso conhecimento. Nossas crenças são verdadeiras à proporção que correspondem às de Deus. No entanto, as crenças de Deus sempre são verdadeiras. Ele é seu próprio critério, o teste supremo de seus pensamentos. Nossos pensamentos, contudo, não podem ser seu próprio critério. Em outras palavras, não são autônomos.

Mesmo tendo em conta, porém, a diferença qualitativa entre os pensamentos de Deus e os nossos, Deus nos capacita para que obtenhamos parte de seu conhecimento, para que declaremos as mesmas verdades que ele declara. E, ao fazê-lo, incorporamos, em certa medida, a perspectiva de Deus à nossa.


Trecho extraído da obra “Teologia em três dimensões: um guia para o triperspectivismo”, de John Frame, publicada por Vida Nova: São Paulo, 2023, p. 26-32. Traduzido por Susana Klassen. Publicado no site Cruciforme com permissão.

John Frame é um filósofo e teólogo calvinista, especialmente conhecido por seu trabalho nas áreas de epistemologia e apologética pressuposicionalista, teologia sistemática e ética. É considerado como um dos principais estudiosos das obras de Cornelius Van Til.
John Frame nos oferece uma introdução clara e acessível do estudo “triperspectivista” em que temas da teologia são considerados de modo proveitoso a partir de várias perspectivas sem prejudicar sua unidade e veracidade.

Publicado por Vida Nova.

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