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Paisagem com oliveiras, 1889 (Van Gogh)

É impossível, em uma única frase, parágrafo, capítulo, ou mesmo em um livro inteiro, fazer justiça à maravilha da história sem igual da criação do universo e de tudo que nele existe. Para fazer qualquer coisa que seja, você e eu temos de trabalhar duro. Mesmo quando compramos um móvel do tipo “faça você mesmo”, que vem com todas as suas partes devidamente confeccionadas e um manual de montagem, somos levados ao limite de nossa sanidade tentando seguir as instruções e montar algo que se pareça com aquilo que pensamos ter comprado. Todos os nossos projetos do tipo “faça você mesmo” exigem foco mental, destreza física e perseverança. Lutamos para fazer coisas, embora sempre tenhamos matérias-primas como ponto de partida, sempre sigamos instruções e sempre tenhamos à disposição as ferramentas apropriadas. Mas você e eu nunca criamos coisa alguma; não criamos algo a partir do nada. C. S. Lewis apresenta a questão desta forma: “Esse ato [o da criação], como é para Deus, deve sempre permanecer totalmente inconcebível para o homem. Pois nós —mesmo nossos poetas, músicos e inventores — nunca, em última análise, criamos. Nós apenas construímos. Sempre partimos de materiais para construir”.[1]

A verdade da criação deve nos fazer parar no meio do caminho, nos encher de admiração e maravilhamento, nos humilhar e nos deixar de joelhos. Deus trouxe o universo à existência com nada além de sua vontade e sua palavra — literalmente falando e sem exageros. Pense nas imensas galáxias e nas minúsculas formigas. Pense nos corpos hídricos que fluem e nos veios de granito que se solidificaram. Pense no corpo de um elefante e nas criaturas translúcidas que nadam nos fossos mais profundos e abissais dos oceanos. Pense nas árvores altíssimas e nos organismos microscópicos. Pense na tecnologia do olho humano e no design intrincado da sua mão. Pense nas ondas sonoras e nas reações químicas. Não leia Gênesis 1 e 2 com uma atitude de monotonia mental. Não deixe que a glória surpreendente do que está sendo descrito lhe escape. Gênesis 1 e 2 foram concebidos para nos tirar o fôlego, e, se não tiram, é porque não os estamos tratando da forma adequada. O texto de Gênesis 1 e 2 deve nos colocar em nosso devido lugar e posicionar Deus no lugar que lhe cabe em nosso coração e em nossa vida. Não há nada abstrato, impessoal ou distante de nossa vida nas palavras “No princípio, Deus criou os céus e a terra”. Essas palavras definem e explicam tudo. Elas nos dão identidade e dignidade. Definem o sentido e o propósito da vida. Aqui, em Gênesis 1 e 2, temos nossa introdução para tudo. A narrativa bíblica começa com Deus, no centro do palco, fazendo algo tão alucinante que passaremos o resto da eternidade desvendando e tentando absorver por completo a vastidão de sua glória.

Dizer que Deus criou este universo e tudo que nele há é simplesmente dizer que Deus é Deus. Ele não tem rivais. Nada nem ninguém se compara a ele. Ninguém pode reivindicar seu poder e sua autoridade. Ninguém tem uma mente que possa abarcar esse tipo de sabedoria e de conhecimento. E, caso alguém fosse capaz de pensar em criar um mundo, essa pessoa jamais teria poder para fazer o que pensou. Gênesis 1 e 2 é um divisor de águas. Se Deus criou o mundo, então, tudo é definido por essa realidade, e ele é digno de nossa constante admiração, submissão e obediência.

Contudo, a maioria de nós sofre de um problema. Receio que a doutrina da criação tenha se tornado tão familiar para nós, que já não nos comove da maneira como deveria e um dia já comoveu. A familiaridade com qualquer aspecto da verdade de Deus é algo maravilhoso. Significa que a graça nos encontrou e abriu nosso coração e nossa mente para verdades que Deus usa para nos resgatar, redimir e transformar. Mas é importante entender que essa familiaridade com a verdade bíblica também pode ser perigosa. Quando nos deparamos com algo com que já estamos familiarizados, nossa mente tende a parar de pensar, nossos olhos tendem a parar de contemplar e nosso coração deixa de reagir àquilo. É triste quando refletir sobre algo como a doutrina da criação torna-se um mero exercício intelectual e não mais nos enche a mente de admiração e encanto nem o coração de adoração. Como é possível ver as mãos de Deus operando, formando o mundo, colocando as coisas em seu devido lugar, e ainda assim passar por tudo isso despercebido e impassível? Temos aqui o centro da nossa realidade, o foco da nossa espiritualidade e a essência da nossa humanidade. Não poderia haver nada mais importante do que aquilo que está escrito em Gênesis 1 e 2. Minimizar o significado e a maravilha disso é um terreno propício para idolatrias de todo tipo. Se compreendido como se deve, o que está escrito nesses dois capítulos nos levará a Deus, a nós mesmos e, por fim, à cruz do Filho.

Abra os olhos e o coração para a glória que está em toda parte ao seu redor. Cada coisa gloriosa criada foi projetada por Deus para ser um indicativo que aponta para a glória dele. Precisamos orar por graça para que sempre vejamos aquele que é glorioso e que está por trás da gloriosa coisa física que estamos vendo, ouvindo, provando ou tocando. Como podemos ferver água, amassar batatas ou fazer ovos mexidos sem ver a glória de Deus? Como podemos segurar uma criança nos braços sem ficarmos maravilhados com aquele que é seu Criador? Como poderiam os matizes variados e em constante mutação de um pôr do sol não gerarem em nós o temor de Deus? Como poderiam os girinos nas águas de um riacho não nos fazerem sorrir em adoração? Como poderia o assovio do vento entre as folhas das árvores não se tornar um hino de louvor a Deus em nosso coração? Se formos capazes de olhar à nossa volta, para essa exibição de glória que está à nossa disposição, todos os dias, e ainda assim não vermos a Deus, somos seres humanos profundamente desprovidos e desesperadamente necessitados do resgate da graça de Deus, que nos abre os olhos e nos anima o coração.

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Se você é cristão, esse é o epicentro de tudo aquilo em que diz crer. Se Deus não criou este mundo e tudo que nele há, então cada fragmento da teologia e da história bíblica caem por terra. E, portanto, Deus não é Deus, o mundo não é o que ele disse que era, você não é quem ele disse que era, e tudo o que você pensava ser verdade agora se revela como outra coisa qualquer que não a verdade. Se Deus não é o que ele disse ser, então o que dizer de sua lei, de suas promessas, de seu evangelho, da esperança da eternidade e da confiabilidade de sua graça? A doutrina da criação é fundamental, é um alicerce; remova-a, e o edifício todo da teologia bíblica desmorona. E, se isso acontecer, você não saberá quem é Deus, quem é você, o que é o mundo ou o que é a vida. Você se verá perdido em um universo que não tem um centro. Um universo com forças irracionais e impessoais interagiriam entre si e com você. E coisas como sentido e propósito, bom ou mau, moral ou imoral não existiriam.

A boa teologia bíblica é teologia criacional. É uma teologia que coloca Deus no princípio e no centro. É uma teologia mais movida por admiração e adoração do que por uma sistematização de verdades. “No princípio, Deus criou os céus e a terra” é uma afirmação que molda nossa postura quando lidamos com todas as demais verdades que se desdobram na narrativa bíblica. A teologia criacional é teologia humilde; estamos lidando com as coisas de Deus, e o fazemos em adoração, maravilhados ante a graça que nos permite lidar com o que é sagrado.

Gênesis 1 e 2 não pretendem ser uma descrição científica do processo da criação. Fica claro que não temos uma descrição detalhada de tudo o que aconteceu enquanto Deus estava criando seu mundo e colocando cada coisa em seu lugar. Gênesis 1 e 2 por certo registram para nós fatos históricos fundamentais, mas o fazem de forma seletiva e poética. Observe que não há um registro só da criação; há dois. Gênesis 1 coloca Deus no centro da criação desse enorme cosmos. Gênesis 2 apresenta Deus como o Criador de Adão e Eva, seres únicos entre toda a criação, pois são portadores da imagem de Deus. Em vez de ser uma peça de literatura científica repleta de detalhes, Gênesis 1 e 2 contêm detalhes breves e vagos. São textos mais teológicos em estilo do que científicos. Eles apresentam a centralidade, o poder e a autoridade de Deus sobre a criação, e apontam a natureza e o propósito dos seres humanos feitos à sua imagem. Deus concebeu Gênesis 1 e 2 de modo a colocar o foco do leitor não no processo da criação, mas no próprio Deus. Ambos os capítulos se destinam a acender em nós a chama do divino em tudo o que pensamos sobre a vida, o mundo e nós mesmos. Em Gênesis 1 e 2, Deus define a realidade desta maneira: ele se coloca no centro de tudo e nos coloca em uma conexão única com ele. Tudo o que entendemos sobre a vida deve começar por esse ponto.

Então, o que devemos extrair da doutrina da criação, afinal? Qual é o significado mais profundo dessa peça de tirar o fôlego da teologia cristã?


[1] C. S. Lewis, Letters to Malcolm: chiefly on prayer (1963; New York: HarperOne, 2017), p. 97 [publicado em português por Vida sob o título Oração: cartas a Malcolm].

Trecho extraído da obra “Você acredita? 12 doutrinas históricas para mudar sua vida cotidiana”, de Paul David Tripp, publicada por Vida Nova: São Paulo, 2023, p. 193-197. Traduzido por Marisa K. A. Siqueira. Publicado no site Cruciforme com permissão.

Paul Tripp (DMin Westminster Theological Seminary) é pastor, autor premiado e palestrante internacional. Já escreveu vários livros, entre eles o best-seller "New Morning Mercies". Seu ministério, por meio de uma organização sem fins lucrativos, existe com a finalidade de conectar o poder transformador de Jesus Cristo à vida cotidiana. Ele tem quatro filhos já adultos e vive na Filadélfia com sua esposa Luella.
Compreender as doutrinas bíblicas não só nos ajuda a aprender mais sobre Deus, elas mudam radicalmente nosso coração. Contudo, ao olhar de forma bem realista, existe uma lacuna entre aquilo em que dizemos crer e o modo como agimos em nosso dia a dia, podendo nos levar a pecar e nos deixar desencorajados.

Nesta obra, o autor de grandes best-sellers Paul David Tripp examina doze doutrinas centrais que todo cristão deve conhecer. Ao aprender a colocar as doutrinas em prática tornando-as um estilo de vida — não meras ideologias — acabamos com essa lacuna entre o que cremos e como vivemos e agimos. É dessa forma que o evangelho molda a nós e as escolhas que fazemos no dia a dia.

Publicado por Vida Nova.

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