O fato de Deus revelar a si mesmo de forma progressiva ao longo da história é amplamente aceito entre os acadêmicos. Edmund Clowney escreve:
A Bíblia registra revelação concedida com o passar da história. Essa revelação não foi outorgada em um ponto, nem sob a forma de um dicionário teológico. Ela foi dada em caráter progressivo, pois o processo da revelação acompanha o processo da redenção.[1]
Não nos confundamos com seu significado. A revelação progressiva não significa que a revelação anterior é inferior à posterior, ou que a revelação posterior torna a anterior obsoleta. Em vez disso, significa que a revelação posterior se baseia na revelação anterior. A revelação posterior esclarece, refina e cumpre a anterior.
Pregar Cristo a partir do Antigo Testamento depende da revelação progressiva. Imagine se os dois Testamentos estivessem desarticulados e contassem dois relatos desconexos. Ou imagine se o Novo Testamento invalidasse o Antigo Testamento. Se qualquer um desses casos fosse verdadeiro, não haveria base para proclamar Jesus a partir do Antigo Testamento. Entretanto, felizmente, o oposto é verdadeiro! O Antigo e o Novo Testamentos estão organicamente conectados pelo desdobramento da revelação divina. Assim, pregar Cristo desde o Antigo Testamento não é apenas possível, mas razoável e até obrigatório.
A frase introdutória do livro de Hebreus atesta a revelação progressiva da Escritura: “Muito tempo atrás, muitas vezes e de muitas maneiras, Deus falou aos nossos pais por meio dos profetas, porém nestes últimos dias nos falou mediante seu Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas, por meio de quem também criou o mundo” (Hb 1.1,2). Quando os compositores desejam que o músico aumente o volume, eles colocam um símbolo na música chamado crescendo. Na Escritura, o volume aumenta em todos os profetas, atingindo o auge do crescendo na vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo.
Gosto muito de como William Lane apreende esse sentido. Ao comentar Hebreus 1.1,2, Lane escreve a respeito de Jesus como Filho:
Por meio de quem Deus falou sua palavra final e decisiva. […] A revelação divina de si mesmo encontrou a expressão máxima na revelação por intermédio do Filho. […] O testemunho do AT de fato usou como sombra a expressão da palavra decisiva e culminante de Deus. […] O ministério dos profetas marcou a fase preparatória dessa história. […] A fala de Deus por meio do Filho esclareceu a intenção da palavra anunciada aos antepassados. Sob essa perspectiva, a revelação mais recente no Filho é considerada o cumprimento.[2]
Que gloriosa sequência de adjetivos! Jesus é a palavra pronunciada por Deus em caráter final, decisivo e culminante. Ele é a expressão máxima da revelação. Ele é o Filho para quem os profetas prepararam o caminho e por meio de quem Deus esclareceu as promessas feitas aos patriarcas. Ele é o cumprimento de toda a corrente da história da redenção.
A implicação teológica aqui é grande. Se Cristo é a palavra final de Deus, então todas as palavras anteriores conduzem a ele. Pregar essas palavras anteriores — as palavras do Antigo Testamento — sem segui-las até seu cumprimento equivale a contar uma história inacabada. O Antigo Testamento não está completo em si mesmo. Em vez disso, ele foi projetado por Deus para terminar como um suspense que faz as pessoas roerem as unhas, e o Novo Testamento é a conclusão para aliviar a tensão.
Façamos um pequeno exercício. Responda a pergunta a seguir depois de preencher o espaço em branco com os tópicos abaixo:
Como ___________________ foi cumprido(a)/foram cumpridas em Cristo?
Explicar uma promessa feita aos patriarcas ou a aliança da circuncisão; exultar na redenção provida por Deus no Êxodo ou na criação do tabernáculo; compreender as leis alimentares ou o sistema sacrificial; expor a sucessão dos reis ou os pronunciamentos dos profetas; exaltar a necessidade de sabedoria — pregar sobre qualquer um desses tópicos sem explicar como Cristo os cumpre significa dizer à congregação apenas parte da história. É como parar um filme antes do ápice. Não faça isso! Nenhum texto do Antigo Testamento é a palavra final porque Jesus Cristo é a palavra final. A verdade da revelação progressiva deve levar o pregador a proclamar todos os textos do Antigo Testamento à luz da palavra final que Deus anunciou.
Uma razão teológica ainda mais forte para proclamar a Cristo a partir do Antigo Testamento reside no estabelecimento divino da nova aliança. Todo pregador deve compreender o significado do que Deus realiza por meio das alianças. Caso isso se perca, todo sermão será distorcido. O Antigo Testamento não pode ser anunciado de forma correta sem interpretá-lo à luz da nova aliança. Deixe-me justificar essa afirmação mediante a resposta a quatro perguntas.
Primeira, o que é uma aliança? Para simplificar: a aliança é um acordo que detalha como duas partes se relacionarão. Normalmente, o acordo envolve obrigações entre uma ou ambas as partes. No Antigo Testamento, vemos Deus dar início graciosamente a alianças com Adão, Noé, Abraão, Israel e Davi. Outras alianças são descritas, mas essas se destacam por ter um significado redentor significativo.
Segunda, como se relacionam as maiores alianças na Bíblia? Se a história da redenção fosse como um rio, as alianças seriam suas margens. A obra redentora da parte de Deus flui através da história ao longo do canal das alianças. Ou seja: as alianças formam a estrutura do enredo de toda a história bíblica. Elas são, como Peter Gentry e Stephen Wellum afirmaram, “a espinha dorsal da narrativa bíblica”.[3]
Terceira, que história se desdobra nas alianças de Deus e por meio delas? A história da aliança é o relato do reino de Deus na terra. Ele começa pela bondade da criação, sobre a qual Adão e Eva são colocados para governar como vice-regentes de Deus. De forma trágica, no entanto, Adão e Eva pecam contra Deus, trazendo a maldição divina sobre o mundo. No entanto, Deus promete, por mera graça, destruir o mal e redimir o cosmo caído. Deus enviará um novo governante ao mundo por meio da descendência da mulher.
O restante do relato flui dessa promessa inicial de redenção. Por meio da aliança com Noé, Deus promete não destruir a terra, criando um ambiente estável para o cumprimento de sua promessa de redenção. Deus então inicia a aliança com Abraão — promete criar um povo para si mesmo, dar a ele um lugar para morar sob seu governo e abençoar por meio desse povo todas as nações do mundo. Deus cumpre essas promessas com o surgimento de Israel e, mais tarde, por meio da redenção desse povo da escravidão no Egito. No Sinai, o povo de Deus é formalmente constituído mediante a aliança de Deus com Israel, e a promessa de residir em uma terra sob a bênção divina é renovada com a estipulação de que Israel deve viver com fidelidade sob o governo de Deus. Deus então estabelece uma aliança com o rei Davi para colocar um governante no trono dele para sempre. E, por fim, devido à infidelidade de Israel, Deus, por pura graça, promete estabelecer uma nova aliança em que o povo de Deus receberá o perdão de seus pecados e um novo coração para honrar a Deus.
O ápice do relato das alianças — o cumprimento de todas as promessas divinas — não ocorre durante o Antigo Testamento, mas no Novo. Durante uma refeição pascal no quarto de uma casa, Lucas nos informa:
[Jesus] pegou o pão, e, quando deu graças, ele o partiu e o deu a eles dizendo: “Isto é o meu corpo, dado por vocês. Façam isto em memória de mim”. E, do mesmo modo, [deu] o cálice após eles terem comido, ao dizer: “Este cálice vertido por vocês é a nova aliança no meu sangue” (Lc 22.19,20).
Em Cristo, a nova aliança finalmente chegou! Jesus é o descendente prometido à mulher, da descendência de Abraão, o verdadeiro Israel, o Filho de Davi, aquele por meio de quem o coração de todos nós é renovado. Em suma, Jesus é o Rei Redentor prometido que o Antigo Testamento nos ensinou a esperar com ansiedade. Por meio de sua vida, morte, ressurreição e ascensão, todas as promessas divinas encontram o sim nele. Desse modo, pronunciamos nosso “amém” a Deus para lhe render glória (2Co 1.20). O reino aguardado havia muito tempo despontou com Cristo.
Quarta, qual a influência da nova aliança sobre a pregação do Antigo Testamento? Espero que a resposta seja óbvia. O pregador não deve desconsiderar o cumprimento do reino de Deus na nova aliança. Pregar a partir do Antigo Testamento como se não houvesse sido inaugurada a nova aliança significa cometer um grave erro hermenêutico. Não há época da aliança — não há texto do Antigo Testamento — que não tenha dado lugar à realidade do nosso relacionamento promovido pela nova aliança com Deus por meio de seu Filho. Simplesmente não há outra forma de se relacionar com Deus a não ser por meio da nova aliança. Portanto, a única maneira de interpretar com precisão o Antigo Testamento é lê-lo à luz de seu cumprimento.
O autor de Hebreus declara: “Ao falar a respeito de uma nova aliança, [Deus] torna a primeira obsoleta. E o que se torna obsoleto e envelhece está a ponto de desaparecer” (Hb 8.13). É preciso ser cuidadoso para distinguir entre a totalidade do Antigo Testamento e a antiga aliança divina com Israel. Dizer que a antiga aliança está obsoleta não significa que o Antigo Testamento esteja obsoleto (Mt 5.17-20; 2Tm 3.15-17). Em vez disso, o argumento de Hebreus consiste no fato de a nova aliança em Cristo tornar obsoleta a antiga aliança. A aliança de Deus com Israel não é mais útil; ela já se encontra ultrapassada.[4]
Assim, todo pregador que ensina a partir do Antigo Testamento como se a antiga aliança ainda fosse um sistema em vigor do relacionamento com Deus comete um erro interpretativo fatal. Sem dúvida, a Lei do Antigo Testamento estipula a obediência à antiga aliança de Israel; os profetas do Antigo Testamento elogiam ou condenam Israel com base em sua fidelidade à Lei; e os Escritos do Antigo Testamento tratam da fé e da sabedoria no contexto da antiga aliança. Entretanto, a antiga aliança está agora obsoleta.
De acordo com o apóstolo Paulo, a única esperança de interpretar com precisão uma antiga aliança consiste em lê-la à luz da nova. Ao contrastar os crentes com o Israel incrédulo, Paulo escreve:
Visto que temos tal esperança, tornamo-nos muito ousados; não somos como Moisés, que cobria o rosto com um véu para que os israelitas não vissem o resultado do que estava chegando ao fim. Contudo, a mente deles estava endurecida. Pois até hoje, quando eles leem a antiga aliança, o mesmo véu permanece sem ser erguido, pois só por meio de Cristo ele é retirado. Sim, até o dia de hoje, quando Moisés é lido, um véu permanece sobre o coração deles. Mas, quando alguém se converte ao Senhor, o véu é retirado (2Co 3.12-16).
O Israel incrédulo, por não ter se voltado para Cristo com fé, não consegue perceber como a glória do evangelho lança luz sobre a antiga aliança. Israel permanece cego para o testemunho da antiga aliança sobre Jesus. Já os crentes estiveram cegos, mas agora enxergam. Eles contemplam a antiga aliança com o véu erguido e percebem seu testemunho de Jesus. Paulo não poderia ser mais claro: só em Cristo e sua nova aliança é possível compreender a antiga aliança.
A nova aliança apresenta uma garantia teológica convincente para expor todas as facetas do Antigo Testamento à luz de Jesus e de seu evangelho. Como alguém disse uma vez: “O brilho da lua pode ser entendido apenas em termos do brilho do sol”.[5] Pregar a partir do Antigo Testamento sem perceber sua iluminação pelo Novo significa pregar na escuridão.
[1] Edmund P. Clowney, Preaching and biblical theology (Grand Rapids: Eerdmans, 1961), p. 15.
[2] William L. Lane, Hebrews 1—8, Word Bible Commentary (Dallas: Word, 1991), vol. 47a, p. 10-1.
[3] Peter J. Gentry; Stephen J. Wellum, Kingdom through Covenant (Wheaton: Crossway, 2012), p. 138 [publicado em português por Vida Nova sob o título O reino de Deus através das alianças de Deus]. A tabela intitulada “As margens do rio da história da redenção” foi adaptada da tabela 4.1 da p. 135 da obra de Gentry e Wellum.
[4] George H. Guthrie, Hebrews, NIV Application Commentary (Grand Rapids: Zondervan, 1998), p. 282.
[5] Philip Edgcumbe Hughes, Paul’s Second Epistle to the Corinthians, New International Commentary on the New Testament (Grand Rapids: Eerdmans, 1962), p. 112.
Trecho extraído da obra “O seu sermão no Antigo Testamento precisa ser salvo: um manual para proclamar Jesus a partir do AT”, de David M. King, publicada por Vida Nova: São Paulo, 2023, p. 42-51. Traduzido por Rogério Portella. Publicado no site Cruciforme com permissão.
David M. King nasceu em Chattanooga (Tennessee, EUA). Depois de concluir a graduação no Carson-Newman College e o mestrado na Beeson Divinity School, o Senhor o conduziu de volta à sua cidade natal, onde ele tem servido como pastor sênior da Concord Baptist Church pelos últimos vinte anos. Ele e Natalie, sua esposa, têm três filhos. David é doutor em pregação pelo Southern Baptist Theological Seminary, onde começou a dar forma à sua abordagem interpretativa a respeito da pregação sobre Cristo a partir do Antigo Testamento. |
Todo pregador sabe que o Antigo Testamento aponta para Cristo. Mas será que realmente diz respeito a ele? Será que é de fato completamente cristocêntrico e não só o apresenta de maneira vaga e temática? Mais que um prenúncio do Salvador, o Antigo Testamento é um livro que o anuncia em cada página? O pastor David King crê em uma resposta positiva, e também que seus sermões serão enriquecidos quando você começar a pregar Cristo de forma plena a partir dos dois Testamentos. Este livro é um manual prático para ajudar pastores e professores de Bíblia a discernir o evangelho no Antigo Testamento e anunciá-lo ao povo de Deus. Você obterá um método interpretativo para encontrar verdades cristocêntricas que preencherão seus sermões com percepções profundas e com poder para transformar vidas. Comece a pregar o Antigo Testamento do modo intencionado por Deus: como a história de seu Filho desde o Éden até a Ascensão. Publicado por Vida Nova. |