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15/abr/2020Ética, tecnologia e a existência de Deus
Com o anúncio da morte de Deus, Nietzsche apontava a perda de fundamento divino nas éticas humanas, fazendo-se necessário algum princípio capaz de substituir a velha ética judaico-cristã. Entretanto, como muitos autores apontam, a ética do übermensch produziu movimentos eugenísticos que relativizavam a natureza humana (STONE, 2002). Na filosofia do século XX se debateu continuamente sobre necessidade ou não de Deus para a ética. O fato é que, seguindo MACINTYRE (2007), o mundo atual possui uma dissonância em relação à linguagem moral; esse mundo que herdou muitos elementos da tradição cristã está confuso e procura criar novas linguagens desconectadas da religião. Isso causou inúmeros equívocos que podem ser vistos nas áreas da medicina, biologia e física. Seria necessário voltar à ética prescrita e pressuposta no cristianismo? Ou a ciência e a tecnologia por si só seriam capazes de fornecer valores éticos?
Parto da ideia de que a existência de Deus sustenta a ética tecnológica e que sua negação torna a ética não sustentável ontologicamente. Uma ética teologicamente embasada proporciona uma fundamentação que permite um melhor desenvolvimento tecnológico. Conceitos cristãos como criação, queda e falibilidade humana e redenção, podem levar a tecnologias que levem em conta as limitações humanas e ambientais, pressupondo o agir com responsabilidade. Há uma persistência do transcendente (McGRATH, 2019).
Pode-se afirmar que muitas linhas éticas naturalistas defendem esses pontos em maior ou menor grau (KURTZ, 2009), mas devemos discutir se o ser humano é totalmente capaz de fazer ações puramente autônomas desligadas de um panorama moral de fundo, o que podemos pensar em termos de cosmovisões ou imaginação moral.
C. S. Lewis se questionava acerca do poder crescente do homem sobre a natureza e sobre outros homens, procurando defender que a desconsideração para com valores objetivos levaria à “A abolição do homem”; a tecnologia e a ciência sem preocupações com valores transcendentais continuaria redundando em experimentos nazistas e em movimentos eugenistas que desconsideram o valor humano em prol de uma ética utilitarista (LEWIS, 2017). Hans Jonas, partiu da obra de Lewis para apontar suas preocupações para com as implicações de ausência de ética em muitos segmentos da biologia moderna (JONAS, 2013). Para ambos, as caraterísticas de muitos dos projetos tecnológicos do século XX estavam ancorados nos seguintes elementos: baconiano, prometeico, faustiano, gnóstico e niilista. Muitas vezes esses elementos aparecem juntos em uma corrente ou pensador específico, outras vezes, há a predominância de um ou outro fator.
Expandindo, brevemente, cada um desses elementos: baconiano remete à busca pelo controle total da natureza, seja ela humana ou ambiental; a visão prometeica vê a técnica como um poder divino, logo cabe ao homem ter domínio, o que prescreve uma moral utilitária e otimista com relação aos empreendimentos humanos; a concepção faustiana percebe a técnica como um pacto com o diabo, que traz alívio imediato, mas que também carrega efeitos colaterais; o elemento gnóstico se refere à visão de que o corpo e a matéria são ruins e que se deve aperfeiçoá-lo ou se libertar dele, em benefício da alma, como movimentos transumanistas pretendem; e, por sua vez, niilista porque não percebe sentido nas ações humanas e nega o mundo (ver OLIVEIRA, 2018; DOMINGUES, 2012; MARTINS, 2012).
Esses elementos estão presentes, em maior ou menor grau, por exemplo, no moderno movimento transumanista. Este movimento pressupõe que se pode ajudar na evolução humana, procurando utilizar as inovações tecnológicas e científicas para aperfeiçoamento humano. Apesar de muitos dos proponentes desse movimento se afastarem da religião, ainda há uma ressonância de vários elementos religiosos, como a busca por imortalidade e rompimento das limitações humanas.
As semelhanças com a religião cristã e esse gnosticismo tecnológico, qual seja a negação da matéria como algo ruim e que precisa ser expurgada pela tecnologia, acaba apontando para uma outra origem antiga e religiosa. A modernidade procurou “secularizar/imanentizar” o gnosticismo, buscando limpar as arestas religiosas desse movimento, mas mantendo suas bases (VOEGELIN, 1982, cap. gnosticismo, a natureza da modernidade, (MARTINS, 2012, p. 154, nota 26).
O temor da limitação e finitude humana levou os transumanistas à conclusão de que o corpo é o grande inimigo e deve-se fazer de tudo para se ver livre dele, uma vez que se trata apenas de um invólucro para a mente.
Mesmo assim, os movimentos da biologia contemporânea possuem uma imagem objetivista e mecanicista (TIBON-CORNILLOT) do ser humano e da natureza e uma ética utilitarista; eles negam valores objetivos e o valor intrínseco do ser humano. E uma ética da prudência e de responsabilidade (JONAS) não é suficiente para se ter uma boa tecnologia se se negar o transcendental.
O que queremos demonstrar é que a existência de Deus pressupõe uma boa ética tecnológica; sem a existência de Deus estamos em terreno pantanoso ao defender o valor intrínseco do ser humano, perceber sua finitude e falibilidade, agir de maneira responsável para com o outro e com o ambiente, e conseguir compreender plenamente o ser humano, como composto por corpo, mente e alma (MURPHY, 2006, GOLDBERG, 2016).
Queremos afirmar que a existência de Deus permite uma ética na tecnologia mais robusta e que sua negação produz uma tecnologia com consequências sérias para a humanidade e para o meio ambiente. Sem um elemento transcendental, não há bases firmes para assegurar a natureza humana; tudo seria permitido, toda espécie de testes e experimentos, uma vez que o valor utilitário de salvar algumas vidas compensaria qualquer atrocidade. Não se trata de apresentar provas irrefutáveis da existência de Deus, nem que sem Deus seja impossível fazer boa tecnologia. Mas, sim, que, há “ressonância” com o que podemos observar na natureza e na humanidade que faz sentido com a revelação cristã, e que esta traz uma melhor explicação de como se comporta o mundo e as pessoas (McGRATH, 2019).
Para aprofundar a análise de ética tecnológica que pressupõe como ponto de partida a existência de Deus, seria pertinente explorar a visão cristã e os campos de discussão da filosofia da tecnologia, da filosofia da mente e da filosofia da biologia.
Deus após o coronavírus
Como essa ética tecnológica, teologicamente embasada, nos ajudaria a compreender a sociedade pós-coronavírus?
Nossa busca baconiana compreende procurar controlar o vírus, o que em si não é ruim, mas pressupõe que não precisamos mudar toda uma forma de vida, de alimentação, de cuidado ambiental, de circulação de bens; basta unicamente inventarmos uma vacina. Mas, agindo assim, nada impede que um próximo vírus mais poderoso surja. Não estou falando que pesquisas para controlar o vírus não devam ser feitas; estou somente argumentando que elas são, por si só, insuficientes.
A visão prometeica em relação ao coronavírus vê nos artefatos tecnológicos algo salvífico: é uma visão tecnocrática otimista, que enxerga que a tecnologia pode trazer um paraíso livre de vírus. Sabemos que biologicamente isso é impossível. Mas confiamos na tecnologia. Apostamos todas as nossas fichas na ciência e na tecnologia porque é a nossa única tábua de salvação em um mundo destituído de graça.
Assim, logo fazemos uma aposta faustiana, que é essa tecnocracia que acabei de mencionar. Lidemos com as consequências que o tecnopólio trará depois: talvez mais controle, perda de privacidade e vigilância sobre todos os nossos atos. Mas, agora, precisamos sobreviver a todo custo. E quem sou eu para culpar a busca por sobrevivência? Isto está inserido em nós. Não queremos morrer. Mas a questão é: como queremos viver? Nesses momentos de crises, não pensamos muito como tudo vai ser após tudo isso passar.
No momento, estamos pensando unicamente nos problemas do nosso corpo, na carne, biblicamente falando. A luta é pela sobrevivência do corpo. Talvez por nossa fraca teologia, ainda bebendo leite, estejamos discutindo se o culto online é correto ou não. Devíamos estar discutindo como fica a alma em todo esse contexto de coronavírus. Para mim, o debate sobre culto presencial e culto online somente arranha a superfície da nossa espiritualidade porque somos fundamentalmente gnósticos. As preocupações corporais são mais fortes do que as espirituais. Devemos lembrar que somos corpo e espírito, logo deveríamos nos preocupar em como esse ser integral participa de um culto e como ele reage em face a um mundo dominado pelo coronavírus. (Espero no futuro fazer uma reflexão sobre a ceia levando em consideração esses insights).
Por fim, e o que conseguimos perceber de falas nas redes sociais, é a ausência de sentido nesse mundo. Tudo vai perecer mesmo, então tudo o que fazemos e sofremos nesse mundo, inclusive sendo afetados pelo vírus, é ilógico e irracional. Não nos faltam niilistas, que acabam se tornando depressivos porque não conseguem encontrar algo por que viver (não fazer ligação com diversas formas de depressão causadas por inúmeros outros elementos como isolamento, solidão e até de química do cérebro). O que se vê é uma negação de procurar um sentido nesta vida, que mesmo em caos, sobreviverá. A não ser que Jesus volte, o mundo continuará a girar e se o indivíduo se concentrar nos problemas materiais desse mundo (economia, saúde, política etc.) ele irá enlouquecer. Porque o mundo não possui sentido em si. A verdade é transcendental.
A verdade presente nos Evangelhos não é baconiana, prometeica, fáustica, gnóstica e nillista. O cristão não deve buscar controlar a natureza, ver na tecnologia sua salvação, aceitando o total controle tecnológico sobre nossa vida, sobre nossos corpos e mentes, nos esquecendo da alma e achando que este mundo não possui significado.
Estudiosos materialistas possuem interpretações incompletas, que inclusive destoam do senso comum. Algo do que eles falam não parece coincidir com nossa experiência imediata. Muito mais ainda se colocarmos face a um panorama maior, levando em consideração uma visão mais completa. Autores como Yuval Harari, David Harvey, Jared Diamond e Slavoj Zizek utilizam suas teorias de cunho materialista para examinar o coronavírus e produzem análises incompletas. O ser humano não é somente um ser material, econômico, biológico. Qualquer análise que não leve em consideração questões transcendentais está fadada a ser incompleta, trazendo uma visão parcial da natureza humana.
O cristão deve se pautar por uma visão de mordomia em relação à natureza, cuidado da terra como um jardim. A tecnologia é uma ferramenta, que deve estar ancorada em princípios bíblicos. Não é colocar nossa fé na tecnologia, mas, antes, usá-la para a glória de Deus. Nossa salvação deve estar em primeiro lugar. Nesse mundo cheio de significados, encantado no sentido de ver tudo como criação de Deus, somos seres integrais; o corpo importa, assim como a alma. Em vista de tudo isso, devemos refletir como um cristão deve agir e reagir em tempos de coronavírus e como nossas tecnologias podem ser melhores concebidas e utilizadas dentro da cosmovisão cristã.
A existência de Deus informa uma tecnologia, na maneira em que leva em consideração conceitos de bem e mal, falibilidade humana e a relação corpo e alma. São todos conceitos amplos demais para explorar num artigo somente, mas são elementos importantes de serem levados em consideração para uma produção cientifica e tecnológica consonantes com uma boa vida na terra.
(Este texto, com modificações, faz parte de um projeto que será desenvolvido no futuro.)
Bibliografia:
DOMINGUES, Ivan. Biotechnologies and the human condition. Belo Horizonte, UFMG 2012.
JONAS, H. O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Rio de Janeiro, RJ: Contraponto, 2006.
JONAS, H. Técnica Medicina e Ética: sobre a prática do princípio responsabilidade. São Paulo, SP: Paulus, 2013.
KURTZ, Paul. Ethics without God, Paul Kurtz. IN: KING, Nathan L., GARCIA, Robert K. (Orgs.). Is goodness without God good enough? Rowman & Littlefield Publishers. 2009.
LEWIS, C. S. A abolição do homem. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2017. MACINTYRE, Alasdair. After virtue: a study in moral theory. University of Notre Dame Press, 2007.
McGRATH, Alister. Teologia natural: uma nova abordagem. São Paulo: Vida Nova, 2019.
MARTINS, Hermínio. Experimentum Humanum. Civilização tecnológica e condição humana. Belo Horizonte: Traço Fino, 2012
MURPHY, Nancy. Bodies & souls or spirited bodies. Cambridge: Cambridge University Press, 2006.
OLIVEIRA, Jelson. Negação e poder. Do desafio do niilismo ao perigo da tecnologia. Caxias do sul: Educs, 2018.
GOLDBERG, Sanford. The brain in a vat. Cambridge: Cambridge University Press, 2016.
STONE, Dan, Breeding superman: Nietzsche, race and eugenics in Edwardian and Interwar Britain. Liverpool University Press, 2002.
TIBON-CORNILLOT. Os corpos transfigurados. Instituto Piaget, 1997.
VOEGELIN, E. A nova ciência da política. Brasilia: UNB, 1982.
Luiz Adriano Borges é professor de história na UTFPR-Toledo, lecionando sobre história da técnica, tecnologia e sociedade, filosofia, sociedade e política. Sua área de pesquisa centra-se na História e Filosofia da Tecnologia e da Ciência. Seus projetos mais recentes são: “A visão cristã da tecnologia” e “Esperança em Tempos de guerra. Ciência, tecnologia e sociedade em Tolkien, Huxley, Lewis e Orwell (1892-1973)". |
1 Comments
É impressionante a insistência do homem em continuar a saga de Adão e Eva em “conhecer” o bem e o mal, ou seja, de determiná-los. Acho que estamos em pleno avanço da apostasia. O mundo que foi iluminado com o Evangelho (mesmo com as deformidades e incoerências que todos sabemos existir) declara abertamente: “Não queremos este Deus, nem Sua “gratuita” salvação, muito menos Sua ética “castradora.” Ao excluir a essência do valor da dignidade humana, tão evidenciada nas Escrituras, restará apenas o sentido utilitarista nas relações humanas. Os mesmos que gritam hoje “Black lives matter”são os mais entusiastas pelo aborto (de qualquer cor). Nestas horas é que paro e respiro fundo…já sei o final da história e o Cordeiro vence.
Shalom!