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18/set/2017*CONTÉM SPOILERS DO FILME*
Stephen King é, dos grandes autores de sucesso, o mais prolífico. Escreveu mais de cinquenta livros e mais de duzentos contos, muitos dos quais foram transportados para o cinema. Grandes filmes, reconhecidos como marcos do cinema, como Carrie – A Estranha, O Iluminado e Um Sonho de Liberdade nasceram em suas páginas. Também criou muitas histórias que viraram filmes bem ruins, chegando a dirigir um deles em pessoa. E apesar dos temas e gêneros de suas histórias variarem, ele sempre está tecendo algum tipo de horror. São sagas épicas de fantasia, pequenos contos de terror psicológico, histórias de viagem no tempo, alienígenas, monstros horrorosos e demônios espreitando humanos e seus sofrimentos.
O horror de Stephen King é muito influenciado pelo terror gótico e intimista de Edgar Allan Poe e pelos contos de horror cósmico de H. P. Lovecraft. Desse segundo, King tirou a inspiração do mal inominável. Pouquíssimas vezes, nas histórias de King, o mal sobrenatural tem uma explicação clara e direta, usando o desentendimento do público como ferramenta para o medo. O próprio Lovecraft dizia que o mais antigo poderoso medo que a humanidade enfrenta é o medo do desconhecido. Então os demônios, zumbis, monstros, aliens, psicopatas e eventos transdimensionais de King não se explicam, principalmente porque não precisam ser explicados.
King é mais perspicaz do que muitos de seus detratores percebem. Ele sempre quer fazer uma analogia, essa sim, bem clara, entre seus males ocultos e os males perfeitamente visíveis pero no mucho com os quais pessoas normais vivem.
O Iluminado é uma história sobre um hotel mal-assombrado, quer seja por fantasmas, quer seja por uma força demoníaca oculta. Mas também é uma história sobre a autodestruição da identidade de um homem como artista, como ser humano, como pai e marido em razão do alcoolismo (isso no livro – o filme é um animal completamente diferente). Carrie – A Estranha é uma história sobre uma menina descobrindo os horrores da telecinese descontrolada, ao mesmo tempo que é uma história sobre o medo da puberdade e a irresponsabilidade da intolerância do fundamentalismo religioso. O Cemitério (adaptado ao cinema como Cemitério Maldito) é sobre um cemitério indígena que ressuscita qualquer um enterrado lá, mas devolve a pessoa com um “algo a mais” demoníaco. E também fala sobre o poder devastador do luto, da perda e da culpa.
No começo de IT – A COISA, segunda adaptação para as telas do romance de Stephen King de 1986, presenciamos a relação de amor e amizade sincera e pura entre dois irmãos (Jaeden Lieberher e Jackson Robert Scott). O menor deles sai para brincar na chuva e acaba encontrando um dos monstros inomináveis de King: uma criatura capaz de projetar os piores medos de cada um de volta contra eles (Bill Skarsgård, desaparecendo no papel). Uma criatura que assume a forma de um palhaço sinistro chamado Pennywise, e que não perde tempo em desmembrar o garoto e devorá-lo.
O filme então parte para contar o drama do irmão dele e seus amigos, tentando desvendar o mistério desse e de outros desaparecimentos, acontecimentos que parecem ser tão antigos quanto a própria cidade em que vivem, Derry, no Maine. Eles notam, de diversas formas possíveis, o quanto a cidade de Derry sempre foi muito estranha. Muito mais violenta. Muito mais problemática. Muito mais opressora. E encontram no demônio-palhaço uma explicação.
Acontece que, tirando alguns exageros (eu pelo menos nunca ouvi falar de um bully que MARCA A PELE DE OUTRAS CRIANÇAS COM UMA FACA), a opressão vivida pelas crianças, quer seja de ordem de uma neurose familiar, racial, sexual, é realidade. E não precisa ter um palhaço doppleganger para torná-la real.
Tanto o racismo quanto o amadurecimento são assuntos muito comuns aos livros de Stephen King. O filme foca menos no conflito racial, concentrado em Mike (Chosen Jacobs), somente mencionando o passado da cidade com grupos que nem a Ku Kux Klan, e mais no pavor da puberdade, com Bev (Sophia Lillis). Ela também não precisa de um palhaço assassino para viver um pesadelo, já que seu pai (Stephen Boagert) cuida desse assunto, tendo um interesse bizarro e desnatural pelo florescimento sexual da filha. Outros personagens também sofrem outros tipos de abuso, material de sobra para Pennywise atormentar as crianças com ilusões medonhas e balões.
IT é o segundo filme Hollywoodiano do diretor Andy Muschetti, que se mostra confortável dirigindo um elenco infantil quase impecável. Todos os atores mirins estão excelentes, com destaque especial para Finn Wolfhard, de Stranger Things, que faz o papel do “cara desbocado engraçadão”, e para Jack Dylan Grazer, que faz o hipocondríaco do grupo. A maior vitória do filme é fazer esse lado das crianças, que só querem ser crianças e têm que enfrentar muitos problemas de gente grande, funcionar tão bem. Não que a parte mais “horror tradicional”, com o palhaço escolhendo maneiras mais perturbadoras de provocar as crianças não funcione. Mas é tão difícil ver um elenco tão bem coordenado, e mais, é difícil ver um filme que tenha a maturidade de perceber que é esse o lado do filme que precisa de mais tempo, mais esforço e mais qualidade para o filme funcionar como um todo.
Os aspectos técnicos do filme são impressionantes. Os efeitos são menos convincentes quando vão para a computação gráfica, mas os efeitos práticos são de tirar o fôlego. As transformações finais de Pennywise, que misturam todas as técnicas ao mesmo tempo, são dinâmicas e realistas o suficiente para sustentar o clímax.
O jeitão de Stranger Things não se dá só pela presença do protagonista da série. Stranger Things também deve muito a Stephen King, pois se baseia muito em filmes e contos oitentistas como Conta Comigo, também de autoria dele. E esse clima de verão, de inocência, de infância e porque não, de nostalgia, é evocado com sucesso aqui. Junto com o clima de horror, quer seja ele real ou não.
A pior coisa de Derry não é que a maioria de seus habitantes façam parte dos tentáculos maléficos do palhaço. A pior coisa é que seus habitantes simplesmente ignoram as próprias monstruosidades. E para uma sociedade que está acostumada a normalizar corrupção, racismo, estupro e abuso, esse filme é um alerta. Nós somos profissionais em ignorar o que é feio, ao invés de ter a coragem de enfrentar o que assusta. Preferimos empurrar para dentro do bueiro tudo o que não encaixa no paradigma de que “tudo está bem, e vai continuar bem”. Maquiamos pecados horrorosos como se fossem coisas normais para aplacar nossa gana por normalidade.
Derry, no final, são os Estados Unidos. Derry é o mundo. E em Derry, eu tenho medo de quem tem cara limpa.
Silas Chosen é roteirista, cineasta, publicitário, ilustrador e é viciado em cinema e histórias. Escreve para sites e programas de rádio sobre cinema, cultura pop e cristianismo desde 2004. Faz parte da 4U Films, ministério de cinema independente. |