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31/ago/2020Este artigo foi publicado em 19 de julho de 2013 na revista “Comment”, uma publicação da CARDUS: www.cardus.ca. Texto original aqui.
“Futurofóbico” ou mal compreendido? Conheça o pensador apocalíptico que intencionalmente expôs as verdades por trás de impérios
No começo do século XIX, grupos de trabalhadores britânicos da indústria têxtil destruíram os novos e poderosos teares e outros maquinários em protesto contra as condições de trabalho daqueles dias. Esse movimento de protestos de trabalhadores se uniu sob a liderança mítica do Rei Ludd, personagem inspirado pela história de Ned Ludd, um homem do século XVIII que, ao que parece, destruiu duas máquinas de tecer meias em um ataque de fúria. Desde então, aqueles que se opõem à tecnologia ou ao chamado “progresso” tecnológico são chamados de “ludditas”. Tenham os revolucionários ludditas da história sido mal compreendidos ou não, hoje “luddita” se tornou um termo que usamos para designar um indivíduo que tem um medo irracional das novas tecnologias ou é exageradamente reacionário em relação a elas.
Dentre os pensadores do século XX que se ocuparam do tema da tecnologia, o intelectual francês Jacques Ellul (1912-1994) – autor do famoso livro The Technological Society (“A Sociedade Tecnológica) (1954) – parece ser um óbvio candidato ao título de “luddita”. Seu obituário no New York Times cita Alvin Toffler, autor de “Choque do Futuro” (Future Shock), o qual descreveu Ellul como “um dos mais extremos” de “uma geração de ‘futurofóbicos’ e tecnófobos”. O próprio Ellul não fazia questão de evitar essa caracterização. Perto do final de seu livro “A sociedade tecnológica”, de maneira enfática, ele diz:
“Fechado em sua criação artificial, o homem descobre que não há saída; descobre que ele não pode atravessar a casca da tecnologia novamente para encontrar o antigo meio no qual ele foi adaptado por centenas de milhares de anos… Em nossas cidades não há mais dia ou noite, calor ou frio. Mas há superpopulação, escravidão à imprensa e à televisão, total ausência de propósito. Todos os homens são limitados por meios externos a eles, para fins igualmente externos. Quanto mais se desenvolve o mecanismo técnico que nos permite escapar da necessidade natural, mais nós somos sujeitados às necessidades técnicas artificiais.”
É, então, um tanto irônico que Jeffrey Greenman, Read Mercer Schuchardt e Noah Toly iniciem seu livro “Entendendo Jacques Ellul” com esses versos da poetisa Edna St. Vincent Millay:
“Sob essa era privilegiada, em sua hora negra,
Cai do céu uma chuva meteórica
De fatos… eles permanecem não questionados, não associados
Sabedoria suficiente para sugar de nosso mal
São diariamente enrolados, mas não há tear
Para tecê-los.”
E depois discretamente comentem: “Jacques Ellul é um dos teares dos últimos cem anos”. Com esse sutil aceno ao leitor, Greenman, Schuchardt e Toly sinalizam uma tese central em seu livro: Jacques Ellul tem sido mal compreendido. Ellul não era um luddita que buscava simplesmente destruir os “teares da sociedade”. Antes, era um pensador com interesse em amplas áreas do conhecimento cujas crenças e convicções cristãs levaram-no a pensar acerca da tecnologia (além de mídia, governo, economia, cidades, bem como outras instituições sociais importantes) de maneiras novas e complexas que desafiam o entendimento e a categorização fácil. De acordo com os autores, nós só entenderemos a crítica de Ellul à sociedade da modernidade tardia se apreciarmos as maneiras pelas quais seu comprometimento com a fé cristã informou e moldou o método e o conteúdo de sua vida e de seu trabalho acadêmico.
Como eles ressaltam na visão geral biográfica introdutória do livro, Ellul era, em vários aspectos, um forasteiro. Diferentemente de outros intelectuais, ele veio de família pobre. Era das províncias da França, não de Paris. Embora tenha escrito apenas em francês, seu trabalho era – e é – mais popular nos Estados Unidos. Quando jovem, experimentou os dois maiores pontos de viragem de sua vida: a leitura de Karl Marx, cujos métodos abrangentes de análise e crítica social o impactariam profundamente, e a sua conversão ao cristianismo. Mesmo como cristão, Ellul parecia manter seu status de forasteiro. Em um país historicamente católico romano, ele se juntou à pequena Igreja Reformada Protestante e, mesmo na tradição reformada, era crítico de João Calvino e influenciado por Karl Barth.
Sua produção intelectual ao longo da vida é impressionante; escreveu mais de cinquenta livros e mil artigos sobre uma ampla gama de assuntos, indo de um comentário de Eclesiastes de trezentas páginas, até um estudo sociológico sobre propaganda passando por uma análise do sentido e importância da cidade. Ainda assim, Ellul não era apenas um observador e comentarista da sociedade atual e histórica, mas estava distintivamente envolvido com ela. Durante a Segunda Guerra Mundial, fez parte da Resistência Francesa à ocupação nazista e ajudou judeus a fugirem do Holocausto. Depois da guerra, serviu como administrador da cidade de Bordeaux por um breve período, foi presidente de uma organização que defendia e trabalhava com a juventude marginalizada e participou de uma organização ambiental que buscava proteger a região da Aquitânia, na costa francesa. Também assumiu como pastor leigo de uma pequena igreja protestante que havia perdido a sua liderança e serviu como membro no Concílio Nacional da Igreja Reformada Francesa. Como observam os autores, embora Ellul seja frequentemente enfático em seus escritos sobre a condição caída da sociedade atual e da futilidade dos esforços estritamente humanos para a obtenção da salvação, ele ainda assim defendia e ocupava aquela curiosa posição cristã de “estar no mundo, mas não pertencer a ele”.
De fato, uma convicção crucial e tema central em seus escritos é que os cristãos devem servir como testemunhas fiéis de Jesus Cristo na sociedade atual. Sua ênfase em ser uma testemunha fiel, em vez de uma testemunha bem-sucedida, é importante, como notam Greenman, Schuchardt e Toly:
“Para Ellul, os cristãos são chamados à fidelidade, não ao sucesso. A tarefa da igreja não é trazer o reino de Deus… O reino de Deus marcha ao nosso encontro, nós não marchamos ao encontro dele. Enquanto esperamos o reino vindouro, nossa tarefa é fielmente simbolizar e mostrar como o reino de Deus é. (…) Um compromisso abrangente com o sucesso compromete a fidelidade, pois envolve a presunção de que nós sabemos perfeitamente o que devemos ser e que devemos criar essas condições, custe o que custar.”
Além de demonstrar uma distinta postura de humildade no chamado de Ellul à ação, o livro Understanding Jacques Ellul revela um pensador cristão que frequentemente pensava e escrevia em um tom apocalíptico. Aqui, “apocalíptico”, não tem a intenção de sugerir o sentido de “previsões do fim do mundo”, mas sim o sentido de literatura apocalíptica da Bíblia descrito por James K. A. Smith, em seu livro “Desejando o Reino”, como “um gênero da Escritura que tenta fazer com que vejamos os impérios que estão em nosso entorno (ou o que está por trás deles), a fim de que possamos discernir o que de fato são.” Como um escritor e pensador apocalíptico, Ellul buscava revelar as mais profundas verdades por trás e em meio à existência do dia a dia e, portanto, um esforço central em seu trabalho é expor ou revelar as falsas promessas de paz e satisfação que a tecnologia e outras forças sociais importantes nos oferecem. Mas ele não desconstruiu os sistemas de organização social de uma maneira ad-hoc, antes se orientou pelo reino futuro de Deus revelado na Escritura e feito presente na encarnação de Jesus Cristo. Entretanto, isso nem sempre fica explícito.
Os autores notam que existem duas categorias principais na substancial produção intelectual de Jacques Ellul: seu trabalho em teoria social (como em The Technological Society, Propaganda, The Political Illusion e The Humiliation of the Word) e suas obras teológicas (como em The Meaning of the City, Money and Power, The Ethics of Freedom). Enquanto suas obras teológicas explicitamente apelam para a fé e estruturas de análise cristãs (como, por exemplo, idolatria, justificação, dentre outras), suas obras de teoria social fazem pouco ou nenhum apelo explícito ao cristianismo. Ler apenas suas obras teológicas ou apenas suas obras de teoria social provavelmente deixará o leitor com uma perspectiva distorcida sobre ele. O fato de Understanding Jacques Ellul oferecer aos leitores um amplo panorama de seus escritos é, assim, um ponto forte do livro. Cada capítulo aborda um tema diferente e importante: tecnologia, comunicação, a cidade e o urbanismo – um capítulo especialmente claro e perspicaz – política e economia, Escritura e ética, e examina como suas várias obras se relacionam com os respectivos temas. Assim, os autores podem chamar a atenção para a discussão mais ampla que Ellul traz ao longo de seus escritos, acerca da diferença que a fé cristã faz na vida e no entendimento da sociedade atual.
Por exemplo: em um dos seus trabalhos sociológicos, The Techonological Society, Ellul caracteriza as tecnologias e seus padrões de organização (o que ele chama de “técnicas”) como uma força massiva atropelando a existência humana. Deixada assim, sua análise da sociedade tecnológica moderna é desoladora e desanimadora. Entretanto, Ellul nunca quis que seus trabalhos em teoria social fossem completamente separados dos seus trabalhos em teologia. Em um insight fascinante, Greenman, Schuchardt, e Toly afirmam que “para Ellul, a esperança é o lugar onde os dois aspectos de seu trabalho se encontram. Seu trabalho em teoria social não oferece genuína esperança, criando uma crise para o leitor, enquanto seu trabalho em teologia oferece esperança na nova criação de Deus”. Nesse padrão, vemos a estratégia de um pensador apocalíptico que intencionalmente expõe os impérios que compõem nosso ambiente a fim de revelar as mais profundas verdades que moldam a realidade presente. Curiosamente, porém, ele não faz isso em apenas um livro, mas sim ao longo de vários.
No nível prático, como enfatizam os autores em seu excelente capítulo final, isso significa que o leitor precisará, pacientemente, ler várias obras de Ellul para ter um vislumbre da dialética que se revela especialmente entre a sua obra em teoria social e sua obra em teologia. De fato, citam o próprio Ellul: “na verdade, eu não tenho escrito uma ampla variedade de livros, mas sim um único livro longo no qual cada ‘livro individual’ constitui um capítulo. É uma aposta – e um pouco de insanidade – acreditar que alguns leitores serão pacientes o suficiente para ver como minhas obras (…) se encaixam”. A breve introdução à obra de Ellul que o livro oferece deve fornecer aos leitores algumas das ferramentas necessárias para a leitura do próprio Ellul, e ainda mais para quem quer ver como as ideias “se encaixam”.
Pensando um pouco em termos mais amplos, porém, também podemos observar que, ao apresentar suas ideias ao longo de vários livros, Ellul segue os passos de outros pensadores proeminentes, incluindo Sócrates e Platão, Jesus e Kierkegaard, os quais, de diferentes maneiras, reconheceram que a busca pela verdade frequentemente requer uma certa obliquidade na abordagem. E aqui vislumbramos uma importante estratégia para ao se fazer teologia pública na sociedade tecnológica atual.
De acordo com Ellul, a tecnologia/técnica se autopropaga pela criação de condições cada vez mais favoráveis para a sua contínua adoção e desenvolvimento. Ellul concentrou-se, em particular, no modo pelo qual a propaganda perpetrada por meio da moderna mídia de massa serve como uma ferramenta tecnológica específica pela qual, nos termos colocados pelos autores de Understanding Jacques Ellul, “integram humanos em um mundo desumanizado para adaptá-los à sociedade tecnológica”. Um exemplo atual disso é o modo pelo qual a Apple é capaz de criar uma enorme e favorável atenção da mídia acerca do futuro lançamento de um dispositivo eletrônico ou de um sistema operacional e, a partir daí, induzir consumidores a ansiar e desejar um produto que eles ainda não sabiam que precisavam. Esse padrão é pervasivo e os desejos, esperanças, objetivos e práticas humanos são implacavelmente sujeitos às possibilidades e limitações das novas tecnologias. Em um provocativo argumento, embora pouco desenvolvido, Greenman, Schuchardt e Toly ressaltam a grande ideia de Ellul, de que os cristãos, na luta para serem fiéis testemunhas do ministério de Cristo e do reino de Deus, devem ser perspicazes para que seu testemunho não seja cooptado pelas possibilidades, tendências e limitações dos sistemas tecnológicos, como a propaganda, por exemplo. Assim, ao buscar uma estratégia de resistência, podemos (ao abordar a verdade das coisas de um ângulo ou medida inesperados), como faz Ellul, ser capazes de desfazer as possibilidades calorosamente esperadas, as tendências desgastadas, as sutis limitações da existência tecnológica diária e lutar para manter um autêntico testemunho cristão.
Evidentemente, isso levanta algumas questões cruciais: como desenvolvemos a habilidade de buscar a verdade de maneira acurada, mas de um ângulo ou medida ligeiramente diferente? Mais especificamente (considerando que muitos de vocês estão lendo essa resenha em formato eletrônico, publicada em um site transmitido por um servidor remoto que é parte da vasta rede de servidores que possibilitam o sistema tecnológico imensamente complexo e poderoso que é a internet), como aprendemos a fazer isso enquanto ao mesmo tempo em que estamos conscientes de que já estamos completamente envolvidos e moldados pela sociedade tecnológica atual?
Ler Jacques Ellul de maneira exaustiva pode ser importante não apenas para compreender o significado do que ele estava tentando transmitir, mas a prática efetiva de ler porções substanciais de sua obra pode servir como uma habilidade crucial para aprender a viver e a pensar fora dos padrões e tendências dominantes da sociedade tecnológica moderna e, assim, manter uma margem de manobra para buscar e apresentar a verdade das coisas de uma medida ou ângulo inesperado. Ou seja, a prática de ler um pensador singular como Jacques Ellul, de maneira profunda e durante um longo período de tempo, oferece uma resposta poderosa às tendências contrárias na sociedade que nos encorajam a consumir uma quantidade cada vez maior de informações fragmentadas e efêmeras. Especificamente, a paciência necessária para ler um pensador como ele é uma virtude que está decididamente em desacordo com a virtude da rapidez que é vendida e imposta nas redes sociais de hoje. Com um arsenal crescente de telas digitais e conectividade constante, acabamos nos encontrando sempre meio ausentes do momento e local presentes, vagando com um dedo ou olho entre textos, alertas, notificações, e-mails, ligações ou sites, indo e voltando à conversa com nossos amigos, parentes ou cônjuges à mesa de jantar. Mas a paciência cultivada ao ler um pensador abrangente como Ellul, que exige nossa atenção e reflexão crítica, proporciona uma postura diferente; não mais nos inclinamos para trás e nos distanciamos, sempre prontos para a próxima tela. Em vez disso, aprendemos a nos inclinar para a profundidade da pessoa vislumbrada no texto, que se esforça para estabelecer um diálogo conosco pelo pensamento construído no espaço de parágrafos, com pausas marcadas por vírgulas e silêncio marcado pela pontuação. Ao que parece, e precisamente por causa dessa postura ligeiramente estranha de se inclinar para uma pessoa quando todos os outros estão se inclinando para longe, é que estamos mais bem posicionados para ver as verdades que existem além do mundo dos fatos brutos. Ou seja, podemos estar mais bem posicionados para pensar em tom apocalíptico, que notavelmente se parece com a postura tradicional da oração.
Traduzido por Luiz Fernando Marendaz e revisado por Jonathan Silveira.
Texto original: Apocalyptic Reading in a Technological World: Why We Need Jacques Ellul Today.
Bryan Kibbe obteve seu PhD em Filosofia pela Loyola University Chicago. Sua área de pesquisa inclui ética e ética aplicada, bem como a filosofia da tecnologia e conhecimento situacional. Quando não está lendo artigos e livros de filosofia, Bryan é um amante incansável de filmes, estando atualmente apaixonado pela obra de Terrence Malick. |