“Solitário” – A solidão, a existência e a graça | Marcelo Pantoja

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Dentro dos vários aspectos da formação humana, uma expressiva marca da existência é definida por histórias. A história pode ser entendida como um conjunto de situações, experiências e demais vivências que perpassam a formação, o desenvolvimento e as mais singulares características pelas quais cada ser humano é moldado. E por isso, o próprio processo de conhecer ao outro acaba por envolver uma assimilação de aspectos da sua história, assim como, para que seja possível conhecer o mundo e compreender a realidade de modo a alcançar níveis de sentido para a vida, é preciso experienciar em categorias de significado as histórias acumuladas (BARTHOLOMEW & GOHEEN, 2017).

Para além de uma composição identitária entendida enquanto parte fundamental do que é ser humano, a história é formada por aspectos que perpassam a necessidade. A vida humana é uma busca por sentido e por saciedade, e nesta busca, torna-se fundamental a presença do outro (HOEKEMA, 2018). Tanto pelo anseio por vínculo que caracteriza a existência, como também pela necessidade de ter no outro a completude de sentido para o que se projeta enquanto marca da existência na realidade. As obras de arte ilustram tais aspectos, visto que, o artista projeta em sua obra algo que, em grande medida, cresce com o olhar do outro e forma-se a partir do conjunto das experiências do artista na esfera do real.

Dentro das inúmeras possibilidades de reflexão acerca da existência, é possível para o cristão se apropriar de diversas abordagens no campo da arte, seja na literatura, no cinema ou nas canções. Porém, embora seja um formato há muito menosprezado, neste texto o olhar para a formação humana será conduzido através de uma história em quadrinhos, a belíssima Solitário, do francês Christophe Chabouté. Como obra de arte, os quadrinhos podem ser formas de expressão que extrapolam as letras e encontram sentidos múltiplos nos traços que compõe cada desenho, enquadramento e cenário. Para além das já popularizadas HQ’s de super-heróis, há nos quadrinhos uma expressão artística de notável beleza (VALLE, 2019), com temáticas maduras e contemplativas, obras como Maus, de Art Spiegelman, primeiro quadrinho a receber o prêmio Pulitzer, entraram para a história da arte com seu formato único e sensibilidade narrativa.

Conhecido por suas obras emblemáticas que representam o ápice que é possível alcançar através da narrativa sequencial, Chabouté se destaca pelo domínio estético dos seus desenhos em P&B que, mesmo sem a força das cores, expressam sentimentos através de traços característicos, belíssimos enquadramentos e uma clara percepção da potência do minimalismo.

Para além dos aspectos técnicos envoltos em sua arte, Solitário é uma obra sobre a necessidade que impulsiona o compartilhar da vida. Um homem nascido em um farol, passa os cinquenta primeiros anos da sua vida nesse espaço. Por conta de uma deformidade física, o protagonista da obra segue as instruções de seus pais e permanece isolado de qualquer contato com o mundo exterior. Antes de falecer, o pai deixa suas economias sob os cuidados de um marinheiro que fica encarregado de levar os mantimentos necessários para a sobrevivência do pobre homem solitário. Contudo, o marinheiro cumpre sua responsabilidade de deixar a caixa de suprimentos semanalmente do lado de fora do farol, sem nunca ter sequer visto o isolado morador. Mas o cenário muda completamente quando surge a presença de um tripulante ajudante do marinheiro que, por sua curiosidade, busca se comunicar com o solitário do farol. Através de cartas deixadas nas encomendas semanais de suprimentos, o tripulante oferece ao solitário um vislumbre do mundo externo e, com esse vislumbre, permanecer no farol se torna uma tarefa cada vez mais difícil.

Além da óbvia alusão ao mito da caverna, de Platão, há em solitário alguns tons que podem conduzir o leitor para os mais variados temas. O pobre homem solitário passa seus dias escolhendo palavras aleatórias em um dicionário e imaginando, conforme a descrição de cada definição, como seriam os objetos, as funções, ou os conceitos por ele selecionados. Em momentos chave, o solitário homem e seu dicionário explicitam que a imaginação desconectada da realidade permanece ativa, porém, restrita. Como um exemplo, o solitário já viu uma imagem de um violino e, por isso, todos os demais instrumentos musicais que ele imagina são apenas derivações do violino que, de forma clara, é seu único modelo imaginativo basilar. É inerente ao ser a necessidade de vincular sua existência através das práticas relacionais e sensoriais, por isso, a imaginação humana é nutrida pelas experiências e vinculada aos limites dos seus autores. E, para o cristão, há imediatamente a conexão com a forma pela qual o evangelho concede ao mundo novos modelos de base para compreensão e projeção das experiências humanas. O cristão encontra no evangelho uma notícia que indica o sentido da vida nas variadas formas da graça, e de tal maneira é transformado, que já não há um centímetro do universo que não se conecte ao sentido amplo da realidade da existência do criador, Uno e Trino, relacional desde a passada eternidade.

Como criaturas desejosas, o Antigo Testamento utiliza o termo néfesh para descrever o ser humano, termo este cujo o significado nada mais é do que necessidade – garganta, no original (WOLFF, 2014). E esse ser que deseja possui a razão como parte vívida da sua composição, o que leva a pergunta: “e se nossa ação for impulsionada e gerada não tanto pelo que pensamos, mas pelo o que amamos?” (SMITH, 2019, p. 53). James Smith argumenta uma prioridade dos desejos, ou amores, na formação do indivíduo. Há, obviamente, uma forte presença da razão, mas o desejar possui um motor que impulsiona ações, em muitos casos, passando inclusive por cima dos conceitos assimilados pela razão. Mas aqui o importante é notar que, tal como o solitário homem no farol foi por amores conduzido para fora, cada cristão um dia se percebeu atravessado por um agente externo que não simplesmente orientou a razão, mas tocou as mais profundas afeições do coração e inspirou um novo desejar.

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Em Solitário, o homem que vive só em um farol isolado, cuja única companhia é sua própria imaginação, parece já resignado ao seu destino. Porém, a figura do novo marinheiro é decisiva para mudança, justamente por tocar as esferas afetivas do triste homem solitário. Os dois passam a se comunicar através de cartas, e quando o solitário é perguntado sobre o que deseja, ele responde que gostaria de imagens do mundo. As imagens do mundo despertam uma nova e inquietante disposição. Há agora todo um novo universo diante do homem que, por medo da sua aparência, precisa escolher entre desbravar o novo mundo, abraçando os desafios misteriosos e assustadores do desconhecido, ou permanecer estático, sobrevivendo uma vida sem gosto, sem cor e sem laços. Em uma emblemática cena, com duros contrastes de luz e sombras, Chabouté entrega em finos traços o solitário homem em profunda angústia, pois agora que o conceito de prisão surgiu em seu prisma, com uma corda em suas mãos, uma terrível decisão parece estar prestes a ser tomada. Pausa. A dúvida surge ao leitor que, passando por páginas com serenas ilustrações de paisagens, é então levado ao barco dos marinheiros, e através deles, o olhar é conduzido para o solitário que, pela primeira vez não veste preto, mas branco. A corda da decisiva cena surge como laços ao redor da mala com a bagagem do homem que decide dar fim à vida de solidão, e que se dispõe a viver uma vida com todos os sabores da existência, pois com o medo e com o sofrimento cotidiano que virão das suas limitações, também virão as cores da realidade. O solitário escolheu por completar sua história com o outro, conhecendo e se permitindo conhecer. Com medo e dessabores, sim, mas com a oportunidade de enxergar a vida para além das letras, com as cores.

Solitário é uma advertência àqueles que optam por restringir as histórias da existência às simples coisas dessa Terra. Quantos hoje não optam pelo vazio de uma vida cuja finalidade das coisas são as coisas em si? Quantos não “respiram a praga de amar as coisas mais do que ao seu criador?” (MUMFORD&SONS, 2010). A solidão em um farol não possui menos limites do que uma vida cuja existência só conhece o caminho da natureza. O caminho da graça é para o ser humano a única forma que permite o abandono do cultivo da solidão, possibilitando um extrapolar dos limites da imaginação. Isso, porque há na história revelada pelo Deus Trino, criador e sustentador da criação, o derramar da sua graça comum, que é o veículo da beleza que há no mundo, e também a entrega de uma graça especial aos seus, que, conforme indica Agostinho, é o único poder capaz de atravessar o pecado, dar um novo sentido à existência e saciar a necessidade inerente ao ser:

Aterrado pelos meus pecados e pelo peso de minhas misérias, cultivei e meditei em meu coração uma fuga para a solidão, mas tu me detiveste e me confortaste dizendo: Cristo morreu por todos a fim de que aqueles que vivem não vivam mais para si, mas para aquele que morreu por eles. Eis, Senhor, descarrego em ti minha aflição, para viver e considerar as maravilhas de tua lei. Tu sabes minha ignorância e minha fraqueza: ensina-me e cura-me. Teu Filho único, no qual se acham escondidos todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento, me redimiu com seu sangue. Não me caluniem os soberbos, porque eu penso meu resgate e o como e bebo e distribuo e, pobre, desejo ser saciado entre aqueles que comem e são saciados: e louvarão a Deus aqueles que o procuram. (AGOSTINHO, 2017, p. 305)

Referências bibliográficas

AGOSTINHO. Confissões. 1ª ed, São Paulo: PenguinClassics Companhia das Letras, 2017.

BARTHOLOMEW, C. GOHEEN, M. O drama das escrituras. 1ª. ed. São Paulo: Vida Nova, 2017.

CHABOUTÉ, C. Solitário. 1ª ed. São Paulo: Pipoca & Nanquim, 2019.

HOEKEMA, A. Criados à imagem de Deus. 3ª. ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2018

MUMFORD & SONS. Holdon to what you believe, 2009. Música disponível no Single Winter Winds.

SMITH, J. Imaginando o Reino. 1ª. ed. São Paulo: Vida Nova, 2019.

VALLE, A. história em quadrinhos e história da arte: diálogos temáticos e metodológicos. Revista Art Cultura. Uberlândia, 2019

WOLFF, H. Antropologia do Antigo Testamento. 1ª. ed. São Paulo: Editora Hagnos, 2014.

Marcelo Pantoja é aluno do Seminário Martin Bucer e graduando em Ciências Econômicas pela Universidade Federal de Ouro Preto. Apaixonado por cinema, quadrinhos e literatura ficcional.
Escreveu alguns ensaios para o Site Folkdaworld. Serve como seminarista na Igreja Batista Histórica, em Conselheiro Lafaiete - MG.

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