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Ódio

 “Então, lhe disse o SENHOR: Por que andas irado, e por que descaiu o teu semblante?” (Gn 4:6)[1].

Ódio não é um termo que se possa empacotar com facilidade em uma breve definição. Gabriel Liiceanu, filósofo romeno, identifica dois tipos principais de ódio: ódio de partida e ódio de reação (LIICEANU, 2014). O ódio de partida não depende de quaisquer atos precedentes por parte do odiado, como o ódio de classe, de raça, de gênero, o étnico, o ideológico e o religioso.  Ódio de reação, por sua vez, resulta de um mal ou dano suportado anteriormente, e o que odeia por reação entende-se justificado em seu ódio.

As Sagradas Escrituras apresentam vários termos, traduzidos em diversos vocábulos, que designam alguma qualidade e faceta do ódio. O termo hebraico[2] אף, por exemplo, é utilizado 276 vezes no Antigo Testamento, geralmente designando a ira do Senhor (Ex 4:14). As palavras חמה (calor, veneno, irritação, ira) e כעס (aborrecimento, irritação, ira) constam em versículos como Números 25.11, Daniel 11.44 e Deuteronômio 4.25. Outra palavra, significativa, o verbo שנא (odiar) se apresenta em versículos como Salmos 97.10, Salmos 119.104, Isaías 1.14, Amós 5.21 e Malaquias 1.3.

Em relação ao Novo Testamento, a palavra que designa odiar, considerar alguém com má vontade ou más intenções, detestar, abominar, não ter amor ou estima é μισεω[3] . O termo é utilizado em Lucas 14.26, João 7.7, João 15.18-19, 23-25, Romanos 9.12-13 com outras 37 ocasiões. Cita-se, ainda, os vocábulos οργιζω (impulso, raiva, indignação, ira) e παροργισμος (provocar, incitar, instigar, irritar), ambos presentes em Efésios 4.26: “Irai-vos e não pequeis; não se ponha o sol sobre a vossa ira”.

Em que ela [a ira] difere da irascibilidade fica evidente: como o ébrio difere de quem está embriagado, e o medroso de quem está com medo. O irado pode não ser iracundo; o iracundo pode por vezes não estar irado […]; umas não vão além de queixas e abominações, outras são graves, profundas e concentradas; mil outras espécies existem desse múltiplo mal (SÊNECA, 2014, p. 95).

Quando a indignação justa se torna amargura e ressentimento, descontrolando emoções e raciocínio, a face abjeta da ira se faz presente. E sua presença pode conduzir a rompantes e ao ódio como inclinação do coração, donde brotam ideologias, obsessões, idolatrias e perversidade. Esse ódio é o que se quer destacar para considerações.

Aquele que entroniza o ódio em seu coração, quem a ele se devota e nutre desejos de punir ou extirpar, tenha havido ou não provocação “só reconhece em si e a seu redor o contágio moral que ele mesmo propaga como uma lei única e universal” (GLUCKSMANN, 2007, p. 31).

Moby Dick: Ahab

“Infelizmente, é principalmente com Ahab que ele [Ismael] aprende o poder brutal do ódio destrutivo e da vingança incessante” (EVANS, 2010, p.156).

Grandes livros como Moby Dick permitem amplas interpretações, e essas podem ser não apenas diversas, mas antagônicas. Admite-se, então, para a presente análise a ideia de arquétipos temáticos (MELETÍNSKI, 2019), porém evitando-se a superinterpretação (ECO, 1997).

O livro Moby Dick, e não só por suas mais de 500 páginas, é uma obra tão imensa e mergulha tão fundo quanto o cachalote que lhe dá o título. O escritor franco-argelino Albert Camus analisando a literatura produzida por Herman Melville sentencia que:

Seus admiráveis livros, que não podemos ler de modo diverso, são dessas obras excepcionais, ao mesmo tempo evidentes e misteriosas, obscuras como a plenitude do sol e, entretanto, límpidas como as águas profundas. A criança e o sábio encontram igualmente nelas seu alimento (CAMUS, 2020, p. 26).

O capitão Ahab (Acab/Acabe), cuja perna havia sido amputada em consequência de sua primeira caçada ao cachalote branco, é o mais complexo personagem desse opus magnum de Melville. Nele se prenunciam as fundações da luta do ser humano contra Deus, seja por não admitir sua condição diante dos atos e desígnios divinos ou por não ver nesses atos e desígnios o enfrentamento, mitigação e banimento do mal. Em Ahab encontra-se consistente representação da disposição de, a pretexto de combater um mal, não apenas abandonar a fé e o bem, mas de objetivamente praticar o mal (Ec 8.11).

A história do capitão Ahab […], pode sem dúvida ser lida como a paixão funesta de uma personagem enlouquecida pela dor e pela solidão. Mas também podemos pensar nela como um dos mitos mais perturbadores que já se imaginou sobre o combate do homem contra o mal e sobre a lógica irresistível que acaba por armar o homem justo primeiramente contra a criação e o criador, depois contra seus semelhantes e contra si mesmo (CAMUS, 2020, p. 26).

O ódio e desejo irrefreável de vingança contra a baleia branca leva Ahab a se lançar inconsequentemente na caçada assassina, incluindo-se a ausência de restrições em enlaçar sua tripulação no mesmo fogo insaciável de ódio. “Para cumprir seu objetivo, Acab tinha de usar instrumentos; e de todos os instrumentos usados sob a vaga lua os homens são os mais aptos a desarranjar-se” (MELVILLE, 2002, p. 205).

Era preciso incutir ódio, violência e vingança como propósito e meio existencial na tripulação do navio Pequod, formada por marinheiros de tantas etnias e religiões que bem representam a humanidade, tão irmanada em sua inclinação pelos mesmos desvios.

Como é que eles tão abundantemente correspondiam à ira do velho — por que negra magia suas almas estavam possuídas, a ponto de por vezes a raiva de Acab quase parecer deles o Cachalote Branco inimigo tão intolerável de um como de todos — como isso veio a ocorrer, o que o Cachalote Branco significava para eles, ou como, a seu juízo inconsciente, Moby Dick também poderia parecer, de algum modo obscuro e insuspeitado, o grande demônio deslizante dos mares da vida […] (MELVILLE, 2002, p. 184).

Alguém tomado por tal condição de ira ardente e perene, de ódio que domina o coração de maneira que seu mundo se define por essa religião profana, já abandonou toda forma natural e verdadeira de amor. O objetivo de destruir o ser odiado vale a destruição de si e de qualquer um.

Nesse furor insaciável, opor-se a Deus e blasfemar entram na composição da liturgia do ódio. Ao ordenar que fosse forjado um arpão, o capitão Ahab rejeitou que a respectiva farpa fosse temperada em água, pediu e obteve o sangue de seus três arpoadores pagãos e sob estas palavras mergulhou o ferro incandescente em sangue: “Ego non baptizo te in nomine Patris, sed in nomine diaboli![4] (MELVILLE, 2002, p. 460).

O fim de Ahab é notório. Morre o destemido capitão ao ser enrolado nas cordas do arpão arremessado contra Moby Dick, ficando preso ao corpo do odiado Cachalote Branco. As amarras do ódio como vocação se mostram tristemente na figura do corpo do velho capitão feito um bizarro enfeite a ser arrastado pelo gigante marinho. Acorrentado com elos tão fortes ao ódio não lhe era possível escapar.

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Moby Dick: Padre Mapple

“Deparou o Senhor um grande peixe, para que tragasse a Jonas” (Jn 1.17)

O impactante personagem e seu impressionante sermão surgem na parte inicial da obra. Entretanto, sua importância para o desenvolvimento do enredo e para o contraste com o capitão Ahab são fundamentais.

Padre Mapple, como era chamado por sua comunidade, ministrava aos marinheiros e famílias na Capela dos Baleeiros, cujo púlpito era uma réplica da proa de um navio. Ismael, único personagem a sobreviver à Moby Dick e, portanto, narrador dos acontecimentos, nos diz que o capelão havia sido um trabalhador do mar, um arpoador. Alguém, portanto, que vivenciou todas as agruras e tragédias da caça às baleias, como Ahab.

Um homem simples e reverente, no “vigoroso inverno de uma velhice sadia” (MELVILLE, 2002, p. 58). Padre Mapple é apresentado como um pregador disposto a se julgar, e a se deixar julgar, por seus pares e por Deus, diferente do monomaníaco e arrogante Ahab (EVANS, 2010). O texto escolhido para o sermão foi aquele último versículo do primeiro capítulo do Livro de Jonas. E o  ponto central do sermão foi logo dado à congregação:

Como se dá com todos os pecadores entre os homens, o pecado desse filho de Amitai residia em sua voluntária desobediência à ordem de Deus — pouco importa qual haja sido essa ordem, ou como transmitida —, ordem que ele achou difícil. Mas todas as coisas que Deus quer que façamos são difíceis para nós — lembrai-vos disso —, e daí Ele ordenar-nos mais frequentemente do que tentar persuadir-nos. E se obedecemos a Deus, devemos desobedecer a nós mesmos; e nessa desobediência a nós mesmos é que consiste a dificuldade de obedecer a Deus (MELVILLE, 2002, p. 61).

Ao tentar fugir de Deus, considerava o profeta que o povo ímpio e cruel de Nínive deveria ser odiado e castigado por seus pecados, e jamais chamado ao arrependimento? (vide BAKER; ALEXANDER; STURZ, 2001). Padre Mapple aventa que Jonas poderia estar apavorado com a hostilidade que receberia da perversa Nínive, mas sua preocupação não é conjecturar, mas denunciar o pecado da desobediência a Deus e de indicar arrependimento, fé e altruísmo.

Podem-se contrastar as escolhas de Ahab, que, tomado pelo ódio, se dispôs a sacrificar sem remorsos toda sua tripulação para consumar a vingança, com o profeta Jonas, que ao reconhecer seu pecado e castigo durante a tormenta que levava a pique o navio, clama por ser lançado ao mar, e com a postura dos marinheiros que “com dó, se afastam dele, e procuram salvar o navio por outros meios” (MELVILLE, 2002, p. 65).

Padre Mapple encerra o estupendo sermão indicando que ao final Jonas cumpriu a ordem do Senhor — “E qual era essa ordem, companheiros? Pregar a Verdade em face do Embuste!” (MELVILLE, 2002, p. 66) — e afirmando que

A estibordo de cada aflição é certo que existe um regozijo; e é mais alto o ápice desse regozijo, do que baixo o fundo da aflição […] O regozijo destina-se àquele que, tendo a verdade, não dá quartel, e mata, queima e destrói todo pecado […] O regozijo — um mastaréu de regozijo destina-se àquele que não reconhece lei ou senhor, a não ser o Senhor seu Deus, e só é patriota com referência ao paraíso (MELVILLE, 2002, p. 66).

Considerações finais

No ventre do grande peixe, Jonas ora e Deus ordena seu livramento (Jn 2.10): “[…] a baleia subiu rabeando rumo ao sol quente e agradável, e a todas as delícias do ar e da terra, e vomitou Jonas na terra enxuta” (MELVILLE, 2002, p. 66).  Ahab, por sua vez, assumindo a vocação de seu ódio, deixa-se aniquilar. “Em direção a ti eu rolo, a ti, baleia que tudo destróis, mas que nada conquistas; até o fim eu luto contigo; do coração do inferno eu te firo; de puro ódio cuspo em ti meu último alento” (MELVILLE, 2002, p. 535).

Um tem parte da perna engolida pelo monstro marinho, outro é engolido por completo. O profeta apenas adora ao seu Senhor e não apela de seu castigo. O capitão, por seu fracasso e mutilação, faz do ódio seu senhor e a ele se consagra.

Moby Dick é um épico, mas é possível que a maior aventura ali narrada não seja a caça à baleia e sim os embates da fé. A fé não livra os homens de dores e tragédias. Por ela, porém, como insiste o Padre Mapple, pode-se confiar, ter esperança e regozijo em Deus, resistindo à incredulidade, à desobediência e rebeldia que ao final torna o ódio um deus que faz seus adoradores se sentirem fortes no odiar, mas que, em realidade, escraviza, corrompe e destrói.

Bibliografia

BAKER, D. W.; ALEXANDER, T. D.; STURZ, R. J. Obadias, Jonas, Miquéias, Naum, Habacuque e Sofonias. Introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova, 2001. v. 23.

CAMUS, Albert. A inteligência e o cadafalso. 5a ed. Rio de Janeiro: Record, 2020.

ECO, Umberto. Interpretación y sobreinterpretación. 2. ed. Madrid: Cambridge University Press, 1997.

EVANS, R. Sin and Redemption in Melville’s Moby Dick: The Humaneness of Father Mapple. In: Sin and Redemption. Bloom’s Literary Themes. New York: Blooms Literary Criticism, 2010. p. 147–156.

GLUCKSMANN, André. O discurso do ódio. Rio de Janeiro: Difel, 2007.

LIICEANU, Gabriel. Do ódio. Campinas-SP: Vide Editorial, 2014.

MELETÍNSKI, E.M. Os arquétipos literários. 3ª ed. Cotia: Ateliê Editorial, 2019.

MELVILLE, Herman. Moby Dick. São Paulo: Nova Cultural, 2002.

SÊNECA. Sobre a ira. Sobre a tranquilidade da alma. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

Notas

[1] Todas as citações bíblicas foram extraídas de Bíblia Sagrada. Traduzida em português por João Ferreira de Almeida. Revista e Atualizada no Brasil. 2ª ed. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 2008.

[2] Todos os termos do hebraico foram consultados em KIRST, Nelson, et. alii. Dicionário Hebraico-Português & Aramaico. 22ª ed, São Paulo: Vozes; Sinodal.

[3] Os termos gregos foram consultados em MOULTON, Harold K. Léxico Grego Analítico. São Paulo: Cultura Cristã, 2007.

[4] Eu não te batizo em nome do Pai e sim do diabo.

Francisco Genciano é graduado em Teologia pela Universidade Metodista de São Paulo e mestre em Ciências da Religião pela mesma instituição. Atuou como presbítero/co-pastor durante 12 anos na “igreja dos Irmãos” (independente/indenominacional) em Santo André. Atualmente serve a Deus na Igreja Batista Reformada de São Bernardo do Campo.

2 Comments

  1. Pedro H. Lima disse:

    Texto muito bem amarrado. Que contraste entre o começo e o fim do livro! Fiquei com vontade de ler, aqui já deu pra ver que não é à toa que virou um clássico.
    Que Deus nos dê graça para sermos Jonas arrependidos e não Acabes devotos ao ódio!

  2. Jessé Salvino Cardoso disse:

    Gostei de sua colocação , em especial o seu texto está bem fundamentado , gostei do uso e ao mesmo tempo da compreensão realizada para cada situação, em especial ficou exposto uma possível interpretação teológica sobre a Moby Dick

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