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© 2021 Disney/Pixar.

Luca é uma animação da Pixar/Disney que conta a história de um menino de uma espécie de criaturas marinhas que se transforma em humano quando sai da água. Em uma de suas explorações ele encontra Alberto, que se tornará seu melhor amigo. Alberto encoraja Luca a ir para além do oceano, para visitar a vila dos humanos. Mas a conexão ocorre quando os dois encontram um sonho em comum: construir uma Vespa. No processo de fazer e pilotar sua própria criação, a amizade se desenvolve. Quando os pais de Luca descobrem sobre sua amizade e intentos e planejam enviá-lo para longe, ele decide fugir para encontrar uma Vespa e viajar o mundo. Juntos, os dois amigos visitam a cidade de Portorosso, uma vila fictícia na Riviera italiana, onde encontram Giulia, uma menina excluída das amizades por ser diferente e estranha. Os três, então, desenvolvem uma amizade e se juntam na busca por vencer um campeonato de triátlon que lhes daria a possibilidade de comprar uma Vespa.

Apesar de podermos discutir alguns pontos do filme, tais como o exemplo negativo na questão de fugir de casa e se rebelar contra os pais, a noção da amizade é o elemento chave do filme.

A amizade, segundo C. S. Lewis, é a menos natural dos amores. Ele diz que “Sem o Eros, nenhum de nós teria sido procriado e, sem a Afeição, nenhum de nós seria criado; no entanto, podemos viver e procriar sem a Amizade. Biologicamente falando, a espécie humana não tem necessidade dela” (“Os quatro amores”, p. 84). Isso explica porque a amizade, outrora valorizada e exaltada, se tornou algo menos importante em nosso tempo — ainda mais com a pandemia que dificultou os encontros pessoais.

Como nos conta Lewis, “a Amizade brota do mero companheirismo quando dois ou mais dos companheiros descobrem ter em comum alguma perspectiva ou interesse, ou até gosto, que os outros não compartilham e que, até o momento, cada um acreditava ser seu próprio tesouro (ou fardo) singular” (“Os quatro amores”, p. 92). Luca, Alberto e Giulia são diferentes dos outros, têm dificuldades de se encaixar, mas têm seus objetivos convergidos. Inclusive, cada um com suas habilidades diferentes é essencial para complementar um ao outro na busca por seu objetivo. O encontro dos amigos ocorre quando se descobrem alguns interesses em comum, por mais estranhos que sejam. Você pode ser um nerd, alguém que gosta muito de livros, de certo tipo de música, tem passatempos incomuns, mas, quando encontra semelhantes, a conexão é quase imediata.

É exatamente como diz Lewis: “A expressão típica de começo de Amizade seria algo como: ‘O quê? Você também? Eu pensava que era o único!’” (“Os quatro amores”, p. 92). Essa descoberta aquece o coração e nos anima no viver diário. Quando descobrimos amigos, percebemos pessoas que compreendem a mesma verdade que nós, que buscam responder às mesmas questões, ainda que possam discordar da resposta. Eles são diferentes de amantes porque os amantes estão voltados um para o outro, “mas Amigos estarão lado a lado; seus olhos voltados para frente” (“Os quatro amores”, p. 94).

© 2021 Disney/Pixar.

O próprio Lewis encontrou grandes amigos em sua vida que trafegaram em torno do grupo literário oxfordiano chamado “Inklings”. Aliás, a importância da amizade para Lewis e seu grande amigo Tolkien é imensa. Os dois foram fundamentais um para o outro. Lewis se converteu graças a conversas entre eles — uma em especial, ao caminharem pelo Addison’s Walk nas proximidades do Magdalen College de Oxford, foi vital. Tolkien recebeu diversos incentivos do amigo para escrever suas obras. O tema da amizade é constante nas obras dos dois, desde a relação Sam-Frodo até as diversas relações em Nárnia. Colin Duriez chegou a escrever uma obra sobre os dois com o subtítulo: “O dom da amizade”. Todos tivemos amigos que foram marcantes em algum momento da nossa vida.

Como nos diz Provérbios 27.17: “Como o ferro afia o ferro, assim um amigo afia o outro”. Descobrimos essa verdade ao longo de nossas vidas quando amigos com temperamentos e personalidades diferentes nos ajudam a crescer e, ainda mais quando cristãos, nos ajudam a olhar para Cristo e nos aproximar mais do relacionamento com Deus. Apontam nossas falhas em amor e, juntos, podemos tornar a caminhada neste mundo mais plena.

Biblicamente, nos vem à mente a amizade entre Jônatas e Davi que encontramos em 1Samuel, a partir do capítulo 20. A amizade entre os dois é um exemplo de lealdade e sacrifício pessoal. O autor de Provérbios nos lembra que “em todo tempo ama o amigo, e na angústia nasce o irmão” (Pv 17:17). Como mais uma vez nos lembra Lewis, apesar de aparentemente a amizade “não [ter] nenhum valor para a sobrevivência, é uma dessas coisas que dão valor à sobrevivência” (“Os Quatro amores”, p. 100).

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Agora, caro leitor, quero falar sobre um tema que transpareceu nos debates sobre o filme “Luca”: a questão da homossexualidade. Pelo fato de a amizade entre Luca e Alberto ser bem próxima e se falar em um filme que procurar tratar de questões de inclusão, se aventou a teoria de que se trata de um filme sobre essa questão sexual. Não se poderia estar mais errado.

O próprio Lewis alertou acerca da falsa implicação de que uma amizade profunda entre pessoas do mesmo sexo beiraria a homossexualidade. Segundo ele, aqueles que concebem a Amizade como “um disfarce ou elaboração do Eros [o amor sexual], deixam transparecer que nunca tiveram um amigo” (“Os quatro amores”, p. 87). Segundo o autor oxfordiano:

“embora possamos ter amor erótico e amizade pela mesma pessoa, ainda assim, de alguma maneira, nada é mais parecido com a Amizade do que um caso amoroso. Amantes estão sempre dizendo um ao outro algo sobre seu amor; Amigos quase nunca falam acerca de sua Amizade. Amantes estão, normalmente, face a face, envolvidos um com o outro; Amigos estão lado a lado, envolvidos com algum interesse comum” (“Os quatro amores”, pp. 87-88).

Amigos estão como Luca, Alberto e Giulia olhando para frente em busca de ganhar a competição para conseguir comprar a sonhada Vespa.

© 2021 Disney/Pixar.

Mas a deturpação de amizades profundas em algo como relacionado à sexualidade não é novidade. A amizade de Jônatas e Davi já foi (e é) instrumentalizada como um relacionamento homossexual!

Não que devemos estar desarmados com as mensagens da indústria da cultura (uma delas seria a normalização da homossexualidade, inclusive para crianças), mas também não precisamos tentar forçar interpretações onde não há a intenção real. E, inclusive, vermos homossexualidade na amizade de Luca e Alberto e de Jônatas e Davi mostra como nossa mentalidade está deturpada em relação à sexualidade, uma vez que enxergamos o que não foi a intenção autoral. Claro que é justificado o cuidado de pais quando vivemos em uma época que celebra a identidade sexual como o fator predominante na vida de uma pessoa. Mas também devemos ser equilibrados. Devemos celebrar o dom da amizade e, este filme, ainda que imperfeito, nos ajuda a refletir sobre o papel da amizade em nossas vidas.

Estejamos atentos às amizades que Deus coloca nas nossas vidas, lembrando que, para um cristão, não existem coincidências. Lewis afirma que, no encontro de duas ou mais pessoas que vão se tornar amigas, “um mestre de cerimônias secreto está a trabalhar. Cristo, que disse a seus discípulos ‘Vocês não me escolheram, eu os escolhi’, pode verdadeiramente dizer a cada grupo de amigos cristãos: ‘Vocês não escolheram uns aos outros, eu escolhi vocês uns para os outros’.” Achamos que tudo depende de nós, mas devemos nos deixar relaxar, que Deus proverá as amizades que mais necessitamos.

Lewis diz:

“a Amizade não é uma recompensa para nosso discernimento e bom gosto em achar um ao outro. É o instrumento pelo qual Deus revela a cada um as virtudes de todos os outros. Elas não são maiores que as virtudes de outras mil pessoas. Pela Amizade, Deus abre nossos olhos a elas. Como as demais virtudes, são derivadas de Deus e, então, numa boa Amizade, são por ele aumentadas, de modo que sejam instrumentos para criar tanto quanto para revelar” (“Os quatro amores”, pp. 123-124).

Os amigos nos ajudam a aperfeiçoar nossas arestas, nossas falhas, e nisso somos mutuamente engrandecidos, nos tornando indivíduos melhores. Na amizade entre Luca, Alberto e Giulia, cada um descobriu, despertou e ajudou a conquistar o potencial individual. Nossos amigos nos ajudam em nossas imperfeições.

Em um mundo sofrido com pandemia, isolamento, perdas de vidas e “rompimentos de sociedades” (capítulo 10 de “A sociedade do Anel”), ainda assim ansiamos por amizades. É só ver a constante procura por redes sociais. A necessidade de amizade é algo intrínseco ao ser humano. Mas oremos a Deus para que fiquemos sensíveis às pessoas que ele nos enviar. “Nesse banquete [que é a Amizade], é ele quem põe a mesa e é ele que escolhe os convidados. E ousamos imaginar que é ele mesmo que algumas vezes preside (e que sempre deveria fazê-lo). Que sempre o tenhamos como nosso Convidado” (“Os quatro amores”, p. 124).

Luiz Adriano Borges é professor de história na UTFPR-Toledo, lecionando sobre história da técnica, tecnologia e sociedade, filosofia, sociedade e política. Sua área de pesquisa centra-se na História e Filosofia da Tecnologia e da Ciência. Seus projetos mais recentes são: “A visão cristã da tecnologia” e “Esperança em Tempos de guerra. Ciência, tecnologia e sociedade em Tolkien, Huxley, Lewis e Orwell (1892-1973)".

4 Comments

  1. Victória disse:

    Eu amei!!! por favor façam isso com mais filmes de animação, de história que parecem “bobinhas” olhos dos que cresceram podemos tirar grandes lições!!

  2. Anthony disse:

    WOW….TOP

  3. Márcia Macedo d'Haese disse:

    Que Deus conceda, a mim e a você, no presente, amizades profundas e edificantes, apesar de perdas tão significativas. Cristo põe a mesa e escolhe os convidados, e um dia estaremos juntos nesse banquete, celebrando a amizade, a eternidade, o reencontro.
    Gostei do texto q vc escreveu! Feliz dia do amigo!!!!

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