Mulher-Maravilha – Mundo dos homens, vitória das mulheres | Silas Chosen

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Gal Gadot como Mulher-Maravilha

Depois de assistirmos Homem-Formiga, minha esposa declarou que boicotaria todos os filmes de super-heróis. Não era por causa da qualidade deles, mas por causa da mesmice e da perda de tempo que é ver sempre o mesmo filme, só com cores e atores diferentes. Convenhamos, a Disney/Marvel está repetindo-se há uma década, com algumas pérolas no meio do caminho.

Ela só abriu o boicote para dois filmes. Um foi Logan, que ela não achou tudo isso (eu achei), e o outro era questão de honra para ela assistir. Ela não se decepcionou, e nem eu.

Mulher-Maravilha é o quarto filme da franquia expandida que a Warner/DC Comics está lançando nos cinemas. Faz parte do universo de Homem de Aço, Batman V Superman e Esquadrão Suicida. Ou seja, o filme tinha uma tarefa dura pela frente. Não só ser o primeiro filme de super-herói dessa era protagonizado por uma mulher, como tentar reverter a média de qualidade e apreciação dos filmes da DC. A segunda parte parecia impossível. E a primeira ia ser uma experiência inovadora. No final, Mulher-Maravilha é um filme tradicional de super-heróis, mas tem detalhes que aprofundam a obra tanto em si própria quanto no que ela significa para o cinema pop em geral.

Conhecemos Diana, papel da israelense Gal Gadot. Ela é a princesa das amazonas, uma nação de mulheres que vivem numa ilha escondida. Elas são o que restam no mundo das divindades gregas, detentoras de poderes e mistérios. Imortais, vivem pacificamente, aguardando o momento em que deverão proteger a humanidade do deus grego da guerra, Ares. O que quebra a rotina é a queda do piloto americano Steve Trevor, papel de Chris Pine, que encontra a ilha por acidente. Ele é um espião da primeira-guerra mundial, que, ao fugir dos alemães, atravessa o escudo mágico que protege a ilha.

Diana então não só descobre o que é um homem, mas o que é guerra, e o que “o mundo dos homens” pode trazer à sua ilha. Suspeitando que Ares está por trás da guerra, vai com Trevor para a Europa. Encontra um lugar devastado pela luta e pela morte e começa a busca pelo vilão para impedir que o conflito destrua o mundo. Até as cores da Europa em guerra, cinzenta e escura, são completamente contrastantes com o seu mundo nativo, vivo e colorido.

A primeira coisa a notar, olhando o filme como um todo, é que ele cumpre aquelas duas missões com louvor. É, de longe, muito longe, o melhor filme da nova safra Warner/DC. (Poxa, é melhor até que muita coisa da concorrência!) Além disso, consegue colocar em Diana um protagonismo feminino muito bem-vindo. Gal Gadot tinha muito peso nos ombros, e está excelente no filme. Como foi dito em diversos lugares, consegue trazer uma pureza e inocência à personagem que faz você lembrar de Christopher Reeve no papel do Superman. O conflito gerado pelo choque entre a potência moral de Diana e os horrores da guerra é a maior força do filme. A já lendária cena da Terra de Ninguém, que se inicia com um trocadilho (em inglês, No-Man’s Land, “A Terra de Nenhum Homem”, que ela diz poder invadir, já que não é homem), eleva o simbolismo e a ação num momento chave do filme. É a primeira vez que vemos Diana se tornar a heroína capaz de bater de frente com o último filho de Krypton.

Chris Pine traz carisma aos baldes ao seu personagem. Ele é ao mesmo tempo um instrutor, um interesse romântico e um contraponto à heroína, muitas vezes para corrigi-la e muitas vezes para ter sua visão de mundo e seu conservadorismo corrigido por ela. Se o filme tem trunfos na direção segura de Patty Jenkins, que realiza cenas de ação cheias de fôlego, e no elenco principal, tem seus elos fracos em outros pontos. A edição da primeira parte do filme é estranha, desnecessariamente robusta. E o elenco de apoio varia entre não fazer mais do que a obrigação e estar caricato além da conta. Numa cena, um dos vilões, papel de Danny Huston, dá uma risada maléfica que parece até um erro de gravação. Sem falar que esse filme merecia um clímax muito melhor do que a luta de raios estilo Dragon Ball e um vilão Scooby-Doo aparecendo no final.

Mas nada disso diminui as maiores vitórias do filme, o protagonismo de Gal Gadot, unido ao olhar da diretora. E é nisso que Mulher-Maravilha, até aqui um filme de ação bacana, bem feito, com uma mensagem pacifista muito atual e necessária e personagens principais cativantes, se torna um verdadeiro marco na cultura pop.

Na saída do cinema, eu comentava com a minha esposa o fato do filme não sexualizar nem por um instante a Mulher-Maravilha. Muito pelo contrário, numa cena cômica ele sexualiza a figura de Steve Trevor, mais para fazer chacota do que para de fato atrair o olhar do público (afinal, é uma mulher dirigindo o filme). Um comentário na internet até dizia “Tenho certeza que Gal Gadot tem um traseiro lindo, só estou satisfeita de não ter que vê-lo.” Minha esposa comenta então como esse é um dos poucos filmes de super-heróis onde ela não sente nojo.

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Este é um filme onde a personagem principal passa 80% do tempo ouvindo que não pode fazer algo (quase sempre por ser mulher) e ignorando a ordem ou o conselho e indo fazer seus heroísmos. Há uma menção às sufragistas, o movimento feminista no início do século XX que queria igualdade de votos para as mulheres britânicas. De várias formas, um feminismo saudável está amarrado à essência da maioria das representações da Mulher-Maravilha, especialmente este filme. Mas, além disso, ter uma mulher dirigindo o filme – e não só fazendo um bom trabalho, mas colocando a câmera apontada para o que realmente importa – é estranhamente original.

Conversava com um amigo meu sobre o filme e perguntei-lhe se ele lembrava de alguma cena do Homem-Aranha original, de 2001. Naturalmente, como qualquer rapaz cuja adolescência foi marcada por aquela fase no cinema, lembrou da famosa cena do beijo entre Peter Parker e Mary Jane. É claro, não pelo romantismo, mas pela maneira do filme mostrar a garota na cena. Se você não lembra, procure algum vídeo da cena na internet. Isso, a maneira de sexualizar a figura da mulher, está no cinema desde que o cinema começou. Quando minha esposa comentou que filmes de super-heróis dão nojo nela, me surpreendeu o termo. Especialmente porque eu nunca tinha pensado nisso. Mulheres, 50% da população do mundo, quando vão ao cinema (ou aos quadrinhos, ou aos games), quase sempre se enxergam retratadas de maneiras depreciativas. Isso é tanto no visual e na narrativa: mulheres normalmente são “o prêmio”, “a vítima”, ou “o erro”, a “tentação”, e qualquer estudo um pouco mais aprofundado sobre o assunto vai revelar isso.

Esse mesmo amigo me contou sobre um treinamento missionário que fez em sua igreja e a treinadora queria falar sobre o assunto, sobre mulheres e feminismo. Cerca de 62% das mulheres que sofrem violência doméstica estão em igrejas evangélicas, no Brasil. Essa treinadora visita igrejas de todos os lados do espectro protestante e nunca saiu de uma igreja sem ser abordada por duas ou mais mulheres com alguma história de terror sobre abuso que sofreram nas mãos dos maridos, pais ou pastores. E sobre como hoje a cultura geral está moldando homens que se preocupam com isso. E como isso é uma novidade dessa geração. Duas gerações atrás, a situação era outra, é impossível negar. De certa forma, estamos vivendo o legado daquelas mulheres que começaram aqueles movimentos há quase um século.

E, de acordo com a fantasia do filme, uma dessas mulheres vence o vilão e termina a Primeira-Guerra mundial. Durante o filme todo, vários personagens mencionam o quanto o mundo não merece a salvação que a Diana, parte deusa, parte humana, pode trazer. E ela realiza o sacrifício mesmo assim, para um mundo de homens que ela tem certeza que não a merece. Derrotando um vilão que queria influenciar a humanidade de longe, sussurrando no ouvido dos homens. É um pequeno detalhe do filme que faz uma referência a outro tipo de revolução, uma muito mais abrangente e importante do que o feminismo e que, como o feminismo, traz frutos ao “mundo dos homens” que ninguém pode ignorar.

Mulher-Maravilha é um grande filme porque não se pode ficar indiferente aos assuntos que aborda, direta ou subliminarmente. Quando a cultura pop consegue mesclar o humano, o necessário e o importante à fantasia, ação, humor e colorido é quando ela se torna essencial. A “Mulher-Maravilha como um símbolo sexual” não fez falta nenhuma. Agora que o filme está quebrando recordes de bilheteria, Hollywood tem suas funestas razões para finalmente tratar a mulher como a mulher deve ser tratada. E talvez mais cineastas mulheres possam sonhar com o dia em que falarão de igual para igual, deixando este “mundo dos homens” um pouco menos cinzento.

Silas Chosen é roteirista, cineasta, publicitário, ilustrador e é viciado em cinema e histórias. Escreve para sites e programas de rádio sobre cinema, cultura pop e cristianismo desde 2004. Faz parte da 4U Films, ministério de cinema independente.

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