Alain de Botton e a pobreza do secularismo | André Venâncio
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06/nov/2017Já vimos que o amor é um hábito. Isso significa que nosso amor é como uma segunda natureza: ele nos direciona e estimula, muitas vezes sob o radar da percepção consciente, como respirar e piscar. Isso também significa que nosso amor obtém direcionamento e orientação porque somos imersos, ao longo do tempo, em práticas e rituais — os quais denominamos “liturgias” — que de forma efetiva e visceral treinam nossos desejos. Portanto, assim como nossos hábitos são inconscientes — operando de forma subjacente —, o mesmo vale para o processo de habituação, podendo ser inconsciente e velado. Isso é especialmente verdadeiro quando não reconhecemos as práticas culturais como liturgias — quando deixamos de perceber que não são apenas coisas que fazemos, mas coisas que fazem algo a nós.
Mais uma vez, nossa maneira de pensar sobre o discipulado depende de como compreendemos a natureza da pessoa humana. Também poderíamos dizer que cada abordagem ao discipulado inclui implicitamente um conjunto de suposições sobre como o comportamento humano é gerado. Se presumirmos que os seres humanos são coisas pensantes sempre “ligadas”, que ponderam sobre cada ação e tomam decisões conscientes antes de fazer qualquer coisa, então o discipulado se concentrará em mudar nosso modo de pensar. Nosso objetivo principal será informar o intelecto para que ele possa conduzir nosso comportamento. “Penso, logo existo” se traduz em uma filosofia de atuação que presume: “Pondero, então faço”.
O problema é que essa é uma visão bastante atrofiada da pessoa humana, que gera uma compreensão simplista de nossas ações e uma abordagem reducionista do discipulado. É uma abordagem que involuntariamente superestima a influência do pensamento e da ponderação consciente e, assim, tende a ignorar e a subestimar o poder e a força de todos os tipos de processos inconscientes ou subconscientes que orientam nossa existência no mundo. De forma resumida, ela despreza o poder do hábito. A verdade é que, de modo geral, conduzimo-nos no mundo por meio de intuições e sintonias despercebidas, um tipo de conhecimento que carregamos em nossos ossos. Como amantes — como criaturas com desejos e animais litúrgicos — nosso principal direcionamento no mundo é visceral, não cerebral. Nesse aspecto, a sabedoria antiga sobre as disciplinas espirituais se cruzam com as percepções psicológicas contemporâneas da consciência. O resultado é uma imagem que deveria nos levar a apreciar o importante papel do inconsciente em nossos atos e comportamentos.
Ora, quando falarmos sobre o inconsciente, tentemos esquecer tudo o que já ouvimos a respeito de Freud. Não estamos falando de impulsos freudianos ou de mitos psicanalíticos enigmáticos sobre sua mãe. Estamos falando sobre o que os psicólogos de hoje descreveriam como “inconsciente adaptativo”. Timothy Wilson, um psicólogo da Virginia University, descreve isso em seu importante livro Strangers to ourselves [Estranhos a nós mesmos] (um título bastante agostiniano!). Ao longo dos últimos vinte anos, a psicologia passou a reconhecer a impressionante influência de operações “não conscientes” ou “automáticas” que moldam nosso comportamento, o que confirma de muitas formas a sabedoria antiga de filósofos como Aristóteles e Tomás de Aquino.[1]
Aristóteles percebia que não temos como chegar a novos hábitos por meio do pensamento:
Por conseguinte, as ações são chamadas justas e temperadas quando praticadas da mesma maneira que o homem justo ou temperado as praticaria; mas não é o homem que pratica essas ações que é justo e temperado, e sim aquele que também as pratica da forma em que são praticadas por justos e temperados. É justo dizer, portanto, que pela prática de atos justos é gerado o homem justo, e pela prática de atos temperados, o homem temperado. Sem tais práticas, ninguém teria sequer a possibilidade de tornar-se bom. A maioria das pessoas, contudo, não procede assim, mas busca refúgio na teoria. Pensam que estão sendo filósofas e que se tornarão boas dessa maneira, comportando-se, de certo modo, como um paciente que escuta atentamente o médico, mas não faz nada do que lhe é prescrito. Assim como a saúde de alguém não pode ser recuperada com tal tratamento, a alma dessas pessoas não se aprimorará com tal filosofia.
Aristotle, Nicomachean ethics, in: The basic works of Aristotle, tradução para o inglês de Richard McKeon (New York: Modern Library, 2001), 2.4 [edição em português: Aristóteles, Ética a Nicômano, tradução de Leonel Vallandro; Gerd Bornheim (São Paulo: Nova Cultural, 1991)].
Destacando os problemas com o conceito idiossincrático de inconsciência enunciado por Freud, Wilson enfatiza especialmente nossa deficiência em reconhecer a amplitude da influência que o inconsciente tem sobre nosso comportamento:
Quando [Freud] diz […] que a consciência é a ponta do iceberg mental, ele não estava nem perto da verdade. Seria mais como uma bola de neve no topo daquele iceberg. A mente opera com maior eficiência relegando uma boa parte do raciocínio sofisticado e de alto nível para o inconsciente, assim como um avião intercontinental é capaz de voar no piloto automático, com pouca ou nenhuma intervenção do piloto humano, “consciente”. O inconsciente adaptativo faz um excelente trabalho de avaliação do mundo, alertando as pessoas dos perigos, definindo metas e tomando iniciativas de uma forma sofisticada e eficiente.[2]
A certa altura, Wilson calcula que somente cerca de 5% do que fazemos em um dado dia é resultado de escolhas conscientes e ponderadas feitas por nós, processadas por aquela bola de neve na ponta do iceberg que é a consciência humana. O restante de nossas ações e comportamentos é administrado abaixo da superfície, por todos os tipos de formas aprendidas, mas no momento inconscientes, de como fazer sentido do mundo e nele navegar. Os psicólogos se referem a tais hábitos inconscientes adquiridos como “automatismos”, pela mesma razão que Aristóteles os chamava de “segunda natureza”: porque trata-se de modos de nos movermos no mundo sem pensar a respeito. O uso do termo automatismo não visa a reduzir-nos a máquinas ou robôs; a intenção é descrever como adquirimos formas de navegar pelo mundo que, por assim dizer, passam a fazer parte de nós.
Tomemos um exemplo mais simples: aprender a dirigir. Como pai que ensinou quatro adolescentes a dirigir (e vivi para contar a história!), posso dizer que a observação de Wilson parece verdadeira. Quando um jovem está aprendendo a dirigir, cada aspecto dessa complexa atividade é administrado e executado por “dicas” conscientes e ponderadas da consciência. O jovem motorista tem de pensar sobre cada aspecto: “Preciso verificar o retrovisor”; “Vou pressionar o pedal à direita para andar”; “O controle da seta está no lado esquerdo”; “Tenho de lembrar de verificar meu ponto cego”; “Vou pressionar o pedal à esquerda para parar — com o pé direito!” Adicione uma embreagem à mistura e você pode imaginar o quão rapidamente aquela bola de neve da ponderação consciente fica sobrecarregada.
Agora compare isso a um motorista experiente. Digamos que você já dirija há anos, desde que tirou sua habilitação aos 18 anos de idade. É quinta-feira à tarde. Você acaba de sair de uma reunião decepcionante no trabalho, um modo terrível de encerrar o dia. Você vai direto para o estacionamento, relembrando cada cena enlouquecedora da reunião. Seu sangue começa a ferver quando você se lembra de como aquele colega o deixou frustrado, como o outro colega praticamente o apunhalou pelas costas e como o gerente parecia alheio a toda essa dinâmica. Você começa a ranger os dentes, pensando em todas as coisas que devia ter dito e, pasme, você está na frente de sua garagem. Você não se lembra de ter dirigido até sua casa! Como isso é possível? Porque, com o tempo, os hábitos necessários à condução de um automóvel –– navegar pelo mundo –– foram tantas vezes repetidos, que penetraram seu inconsciente e se transformaram em automatismos. Agora você pode dirigir praticamente sem pensar a respeito. O complexo conjunto de movimentos necessários para dirigir é agora administrado pelo aspecto inconsciente e subjacente de quem você é.
O tipo de operações que Wilson afirma serem delegadas ao inconsciente — definir metas, avaliar uma situação, tomar iniciativa — inclui as “operações” do desejo, as “manobras do coração”, como coloca o Livro de oração comum. Isso ocorre porque o caráter e as virtudes também ficam “localizadas” nesse registro inconsciente. Os hábitos que adquirimos moldam nossa percepção do mundo, o que por sua vez nos dispõe a agir de determinadas formas. David Brooks capta essa dinâmica em The social animal: “A pessoa com bom caráter ensinou a si mesma ou foi ensinada por aqueles que a cercam a enxergar as situações do modo certo. Quando ela vê algo da maneira correta, conseguiu programar o jogo. Ela colocou em funcionamento toda uma rede de discernimentos e respostas inconscientes em sua mente que a induzem a agir de certa forma”.[3] É nesse sentido que “o caráter do homem é seu destino”: seu caráter é a rede de inclinações que você adquiriu (virtudes e vícios) e que funciona como automatismos, induzindo você a agir de determinada maneira.
Seu amor ou desejo — voltado para uma visão da boa vida que molda como você vê o mundo, ao mesmo tempo em que também o move e motiva — produz amplo efeito em um nível inconsciente. Seu amor é um tipo de automatismo. Por isso precisamos estar atentos sobre como ele é adquirido. Como observam os psicólogos John Bargh e Tanya Chartrand, alguns automatismos são adquiridos intencionalmente por meio de “pareamento frequente e constante”.[4] Em outras palavras, escolhemos adquirir alguns automatismos. E o modo como os gravamos em nosso inconsciente é ao escolher praticá-los. Qualquer pessoa que consiga lembrar-se de quando aprendeu a tocar piano, digitar ou dirigir recordará ter escolhido dedicar-se a uma prática repetitiva inúmeras vezes exatamente para que os ritmos pudessem se tornar hábitos.
Bargh e Chartrand, contudo, também ressaltam que podemos adquirir automatismos sem intenção; ou seja, inclinações e hábitos podem ser gravados em nosso inconsciente se regularmente repetirmos rotinas e rituais que não reconhecemos como “práticas” formadoras. Podemos então ter em ação todos os tipos de automatismos que não escolhemos e dos quais não temos consciência, mas que ainda assim ocorrem porque estamos regularmente imersos em ambientes carregados de tais rituais de formação. Eles destacam um exemplo poderoso: estereótipos. Estereótipos são exatamente esse tipo de modo habitual e inconsciente de perceber o mundo e agir de acordo. Ninguém “aceita” crer em estereótipos preconceituosos. Em vez disso, eles se infiltram em nós dissimuladamente, são adquiridos involuntariamente e, ainda assim, com o tempo, tornam-se hábitos de percepção — automatismos — que comandam e orientam nosso comportamento.[5]
Agora pense nas implicações disso em relação ao que você ama. Se você pensa em práticas que moldam o amor como “liturgias”, isso significa que você pode estar adorando outros deuses sem nem ao menos saber. Isso porque tais liturgias culturais não são apenas eventos isolados dos quais você participa sem perceber; a importância delas é que são práticas formadoras que fazem algo a você. De forma inconsciente, mas eficaz, harmonizam seu coração com os cânticos da Babilônia, e não com os cânticos de Sião (Sl 137). Algumas práticas culturais de fato treinarão seus amores, automatizando um tipo de orientação para o mundo que se infiltra em sua forma inconsciente de ser. Por essa razão você pode não amar aquilo que pensa amar; é possível que você não ame aquilo que a bola de neve de raciocínio na ponta do iceberg lhe diz que ama.
Você pode aprender a amar um telos inconscientemente em dois sentidos. Por um lado, como seus amores são hábitos, sua ação é maior de forma subjacente, abaixo da superfície. Assim, seus amores são inconscientes, apesar de serem aprendidos. Por outro lado, você também pode aprender inconscientemente — ou seja, o treino, a orientação e o direcionamento de seus amores pode estar ocorrendo sem que você perceba precisamente porque não reconhece o que está em jogo em sua imersão cultural. Em resumo, aprendemos inconscientemente a amar reinos rivais por não percebermos que estamos participando em liturgias rivais. Isso em parte se deve à falta de compreensão da dinâmica da pessoa por completo, à falha em identificar todos os aspectos ocultos que direcionam nossas ações e comportamento. Se você acredita que os seres humanos são cérebros no palito, você nem se voltará para essas dinâmicas subconscientes. Essa é a desvantagem da coisificação do pensamento como abordagem para o discipulado cristão. Essa visão reducionista da pessoa humana é espelhada na falha em perceber as práticas culturais como liturgias — como rituais formadores de hábitos e amores que tomam posse do nosso coração e visam nossos amores. É como a parábola introdutória do discurso de paraninfo proferido por David Foster Wallace no Kenyon College: “Dois peixes jovens nadavam juntos numa direção, quando encontraram um peixe mais velho nadando no sentido contrário. O peixe mais velho os cumprimenta e diz:
— Bom dia, garotos. Como está a água?
Os dois peixes mais jovens seguem nadando e, após algum tempo, um vira para o outro e diz:
— O que diabos é água?”[6]
Precisamos ter consciência de nossas imersões. “Isso é água” e você vem nadando dentro dela a vida toda. Precisamos reconhecer que nossas imaginações e anseios não são imunes aos nossos ambientes e não são apenas informados por nosso raciocínio (supostamente “crítico”). Muito pelo contrário, nossos amores e imaginações são recrutados por todos os tipos de liturgias carregadas com uma visão da boa vida. Estar imerso nessas liturgias “seculares” é estar habituado a anelar pelo que elas prometem.
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[1] Veja também Daniel Kahneman, Thinking: fast and slow (New York: Farrar, Straus & Giroux, 2011) e John A. Bargh; Tanya L. Chartrand, “The unbearable automaticity of being”, American Psychologist 54 (1999): 462-79. Para uma visão jornalística mais ampla de grande utilidade sobre essa pesquisa e suas implicações, veja David Brooks, The social animal: the hidden sources of love, character, and achievement (New York: Random House, 2011) [edição em português: O animal social: a história de como o sucesso acontece, tradução de Camila Mello (Rio de Janeiro: Objetiva, 2014)].
[2] Timothy Wilson, Strangers to ourselves: discovering the adaptive unconscious (Cambridge: Harvard University Press, 2002), p. 6-7.
[3] Brooks, Social animal, p. 127.
[4] Bargh; Chartrand, “Unbearable automaticity of being”: 468.
[5] Para uma incisiva análise dos estereótipos como um tipo de “entendimento implícito”, veja Alexis Shotwell, Knowing otherwise: race, gender, and implicit understanding (University Park: Penn State University Press, 2011).
[6] David Foster Wallace, “Plain old untrendy troubles and emotions”, The Guardian, September 20, 2008, 2.
Trecho extraído e adaptado da obra “Você é Aquilo que Ama: O Poder Espiritual do Hábito“, de James K. A. Smith, publicada por Vida Nova: São Paulo, 2017, pp. 56-63. Traduzido por James Reis. Publicado com permissão.
James K. A. Smith (PhD, Villanova University) é professor de Filosofia na Calvin College, onde também ocupa a cátedra Gary e Henrietta Byker de Teologia e Cosmovisão Reformadas Aplicadas. É editor da revista Comment, além de autor e organizador de vários livros, entre eles 'Você é aquilo que ama' e 'Desejando o Reino', publicados por Vida Nova. |
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Você é aquilo que ama. Mas pode ser que você não ame o que pensa que ama. Nosso coração é moldado fundamentalmente por tudo o que adoramos. Talvez sem perceber, somos ensinados a amar deuses rivais em lugar do verdadeiro Deus para o qual fomos criados. Embora tenhamos a intenção de moldar a cultura, nem sempre temos consciência de quanto a cultura nos molda. Em Você é aquilo que ama, James K. A. Smith nos ajuda a reconhecer o poder formador da cultura e as possibilidades transformadoras das práticas cristãs, redirecionando nosso coração para o que de fato merece nossa adoração. Smith explica que a adoração é a “estação da imaginação”, capaz de incubar nossos amores e anseios de tal modo que os nossos engajamentos culturais tenham sempre Deus e o reino como referenciais. É por essa razão que a igreja e o culto em uma comunidade local de crentes devem ser o centro da formação e do discipulado cristãos. O autor engaja o leitor fazendo um uso criativo de filmes, obras de literatura e músicas e trata de temas como casamento, família, ministério de jovens, fé e trabalho. Além de tudo, também sugere práticas individuais e comunitárias para moldar a vida cristã. Publicado por Vida Nova. |
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3 Comments
Lancem esse livro logo, por favor!!!
Nossa, esse texto já me elucidou tanta coisa… resposta divina!
Boa percepção, mas a linguagem é bastante difícil de compreender, por usar muitos termos técnicos.
As pessoas que não tem grande grau de instrução vão interpretar de modo conflituoso. Repensem a forma como escrevem, pois a essência e o conteúdo está divido!
Obrigado!