Alain de Botton e a pobreza do secularismo | André Venâncio

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Você pode não amar aquilo que acredita amar: nossos amores inconscientes | James K. A. Smith
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Alain de Botton

Religião para ateus parece título de manual de apologética, do tipo que poderia ser escrito por William Lane Craig ou Norman Geisler. Mas isso está muito longe da verdade: o livro foi escrito por um ateu, publicado no Brasil por uma editora não cristã (Rio de Janeiro: Intrínseca, 2011) e não tem nenhum interesse em defender o ateísmo com argumentos racionais. A obra se inicia, aliás, justamente pelo desprezo explícito desse tipo de abordagem. A inexistência de Deus não é sua conclusão, e sim seu ponto de partida (p. 11):

Para poupar tempo, e sob o risco de uma dolorosa perda de leitores já no início, vamos afirmar de forma franca que obviamente nenhuma reiligião é verdadeira no sentido de concedida-por-Deus. Este é um livro para pessoas incapazes de acreditar em milagres, espíritos ou histórias de sarça ardente, e que não têm qualquer interesse maior nos feitos de homens e mulheres incomuns.

O autor é Alain de Botton, judeu secular nascido na Suíça, mas residente desde a infância na Inglaterra, tendo estudado filosofia em Cambridge e se tornado um filósofo bastante popular, escrevendo best-sellers e participando ativamente do mundo midiático, sobretudo na elaboração de documentários. Nesse sentido, Botton pode ser visto como um continuador da tradição de C. E. M. Joad e Bertrand Russell, que vê a filosofia como dotada de responsabilidade na educação do público mais amplo. Uma de suas obras mais recentes, Notícias: manual do usuário (Rio de Janeiro: Intrínseca, 2016), deixa claro que seu envolvimento com a imprensa é motivado justamente pela convicção de que é ela, e não a escola ou a universidade, o principal meio educacional do nosso tempo. Mas não se trata de um mero esforço de popularização da filosofia: embora não alcance aquela profundidade que caracteriza os bons trabalhos acadêmicos, sua obra possui considerável grau de originalidade e relevância.

O que leva um pensador com tais convicções e interesses a escrever sobre religiões? Como ele mesmo esclarece (p. 11-2),

a real questão não é se Deus existe ou não, mas para onde levar a discussão ao se concluir que ele evidentemente não existe. A premissa desse livro é que deve ser possível manter-se como um ateu resoluto e, não obstante, esporadicamente considerar as religiões úteis, interessantes e reconfortantes — e ter uma curiosidade quanto às possibilidades de trazer algumas de suas ideias e práticas para o campo secular.

Essas poucas palavras são bastante reveladoras. O ateísmo de Botton não é muito simpático ao ateísmo mais militante e demonizador da religião, que descende das vertentes mais radicais do iluminismo e é representada hoje por tipos como Richard Dawkins. Botton considera tal ênfase tanto insuficiente quanto algo injusta: a religião pode estar errada em um sentido fundamental, mas essa constatação, além de não resolver muita coisa, pode levar à ilusão de que o mundo secularizado nada tem a aprender com ela.

É no desenvolvimento dessa última percepção que reside o que vejo como o principal valor da obra. Botton é ateu e secularista consumado, comprometido com o ideal iluminista da redenção do homem pela política, pela ciência e pela educação. Mas nada disso o impede de ser profundamente crítico de certos aspectos da tradição a que pertence. Em especial, ele é perspicaz o bastante para perceber (e corajoso o bastante para dizer) que nem todas as mudanças acarretadas pela secularização foram positivas: “não é que o secularismo seja errado, mas que com muita frequência secularizamos de maneira inadequada” (p. 16).

Grande parte do livro é dedicada a expor e discutir inúmeros casos que exemplificam isso em todas as áreas da vida: laços comunitários, trato social, cultivo e apreciação da beleza, entendimento da natureza humana etc., mostrando que a sociedade secularizada poderia aprender muito com antigos modos de vida cristãos, judaicos e budistas. Nem todas as suas teses e interpretações são igualmente acertadas, mas há no livro sabedoria em dose considerável, que não convém desprezar. Por trás de tudo está um entendimento bastante vívido de que a moderna cultura secularizada é consideravelmente mais pobre em muitos aspectos importantes. Um dos meus trechos preferidos nesse sentido é este aqui (p. 104-5):

Reformar a educação universitária segundo os insights obtidos da religião envolveria ajustar não apenas os currículos, mas também, e de maneira igualmente crucial, o modo como se ensina.

Em seus métodos, o cristianismo tem desde o início sido guiado por uma simples mas essencial observação, que, não obstante, jamais causou qualquer impressão naqueles que comandam a educação secular: a facilidade com que esquecemos as coisas.

Seus teólogos sabem que nossa alma sofre daquilo que os antigos filósofos gregos chamaram de akrasia, uma desconcertante tendência a saber o que deveríamos fazer combinada com uma persistente relutância em de fato fazer, seja devido à falta de força de vontade ou à distração. Todos temos consciência de que nos falta força para agir apropriadamente em nossa vida. O cristianismo representa a mente como um órgão indolente e inconstante, fácil de impressionar, mas sempre inclinado a alterar seu foco e deixar as responsabilidades de lado. Por conseguinte, a religião propõe que a questão central para a educação não é como neutralizar a ignorância — como sugerem os educadores seculares — mas como combater nossa relutância em agir de acordo com ideias que já compreendemos inteiramente em um nível teórico. Ela acompanha os sofistas gregos na insistência em que todas as lições deveriam apelar tanto para a razão (logos) como para a emoção (pathos), além de endossar o conselho de Cícero de que os oradores públicos devem ter a tripla capacidade de provar (probare), deleitar (delectare) e persuadir (flectere). Não há justificativa para apresentar com murmúrios as ideias que abalam o mundo.

Contudo, essa qualidade, que é a principal da obra, caminha lado a lado com seu mais profundo problema. O caso ilustrado no trecho acima ajuda a ver isso: os teólogos cristãos sabem da akrasia humana porque ela constitui uma dimensão importante do pecado, da depravação do coração, dos efeitos da queda, de nossa necessidade da graça e, portanto, está bem próxima do centro da mensagem do evangelho; em outras palavras, trata-se de uma teoria biblicamente fundamentada da natureza humana, uma antropologia teológica e filosófica fundada na revelação especial e dela indissociável. É assim que, por exemplo, o reformador João Calvino, no primeiro volume de suas monumentais Institutas da religião cristã, condicionou o autoconhecimento do homem ao conhecimento de Deus mediante sua Palavra. “Enganoso é o coração, mais do que todas as coisas, e desesperadamente corrupto. Quem o conhecerá? Eu, o SENHOR” (Jr 17.9-10).

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Botton, é claro, não se interessa por nada disso. Ele não vê aí nada mais que uma pérola de sabedoria prática que devemos utilizar para melhorar nossa vida ateísta. As religiões, para ele, são apenas prateleiras de ideias e atitudes postas à disposição em um grande supermercado, no qual ele entra como consumidor, coloca no carrinho o que lhe interessa e deixa o resto para lá. Essa é, aliás, uma decisão bastante consciente (p. 16):

Os religiosos se ofenderão com uma reflexão aparentemente brusca, seletiva e não sistemática de seus credos. Religiões não são bufês, eles protestarão, em que elementos particulares podem ser escolhidos de forma aleatória. Todavia, a ruína de muitas fés tem sido sua insistência pouco razoável em que os adeptos precisam comer tudo o que está no prato. Por que não deveria ser possível apreciar a representação da modéstia nos afrescos de Giotto e, ao mesmo tempo, ignorar a doutrina da anunciação, ou admirar a ênfase budista na compaixão e evitar deliberadamente sua teoria da vida após a morte?

Como se vê, o autor pressupõe que só resta aos religiosos o sentimento de ofensa; não lhe parece plausível que alguém seja capaz de objetar racionalmente a esse procedimento. Mas o trecho acima é deveras sugestivo também de outra maneira: ao usar um argumento do tipo “não vejo por que não…”, Botton se mostra absolutamente convicto de sua capacidade de ver tudo o que importa. Há, no entanto, algo muito importante que o autor não vê, um ponto problemático que não aborda, uma pergunta que o livro nunca faz, um pressuposto jamais declarado, e muito menos analisado e defendido: o de que a pobreza do secularismo é absolutamente acidental, e não intrínseca, não uma consequência natural de seus compromissos mais básicos.

Contudo, esse pressuposto é falso. As gotas de sabedoria de uma religião não são entidades autônomas e removíveis como bolas em uma árvore de Natal. Botton pensa que são, e faz uma série de queixas ao longo de todo o livro, algumas das quais estão resumidas no trecho a seguir (p. 14):

Desenvolvemos um medo em relação à palavra moralidade. Nos irritamos com a perspectiva de ouvir um sermão. Fugimos da ideia de que a arte deveria inspirar felicidade ou ter uma missão ética. Não fazemos peregrinações. Não podemos construir templos. Não temos mecanismos para expressar gratidão. A noção de ler um livro de autoajuda tornou-se absurda para o erudito. Resistimos a exercícios mentais. Estranhos raramente cantam juntos.

Em meio a tais constatações lamentosas, jamais ocorre ao autor que as pessoas estão simplesmente vivendo de modo razoavelmente consistente com sua nova crença, aquela que o iluminismo e seus decepcionados herdeiros ideológicos supuseram que poderia redimir a humanidade. É claro que alguns, como o próprio Botton, poderão encontrar motivações para fazer algumas dessas coisas, mesmo em um ambiente secularizado. Mas, em um mundo sem fundamento transcendente e tão carente de princípios absolutos, no qual a própria religião foi varrida para o canto das convicções privadas sem legitimidade objetiva, não poderá haver meios legítimos de defender essas decisões como algo mais que gosto pessoal.

Se Botton pode entrar no grande supermercado das religiões e pegar só o que quer, não pode reclamar que a sociedade em geral prefira pegar outros itens, ou mesmo se recuse a frequentar esse estabelecimento. Embora ele não perceba, a pobreza do secularismo resulta justamente da prática consistente e difundida dessa postura de consumidor, a mesma que ele ostenta e defende de maneira alegre e despreocupada. O espírito por trás de todo esse modo de viver é bem descrito naquilo que o teólogo e filósofo cristão Cornelius Van Til chamou de “autonomia” contra Deus: no caso, a negação de qualquer senso de dever espiritual e a convicção de que temos pleno direito de julgar todas as coisas (no caso, as tradições religiosas) pelo critério da satisfação que podem nos proporcionar.

Se as pessoas não têm mais muitas oportunidades de cantar junto com desconhecidos em público, é porque o secularismo não lhes oferece muitos bons motivos para fazê-lo. As religiões ensinam certas ideias sobre o mundo, o homem e a realidade última que tornam esse hábito mais natural e desejável. Uma vez que não se creia mais nessas doutrinas, a motivação desaparece. Não é muito sensato limitar-se a reclamar disso e a dizer às pessoas: “Ei, antigamente as pessoas faziam isso e era legal; por que não retomarmos esse hábito?” Tal atitude pode ser bem intencionada e baseada em uma percepção correta, mas é tanto inócua quanto frívola. Inócua, porque as causas do abandono do hábito em questão não foram bem compreendidas. Frívola, porque essa compreensão nem mesmo foi julgada importante.

Não por acaso, o livro termina em elogios à proposta do pai do positivismo, Auguste Comte, com sua “religião da humanidade”. Mas o humanismo só persiste porque ainda há intelectuais cegos para aquilo que a sociedade secularizada já entendeu e pratica em grande escala: o amor à humanidade não é suficiente para empolgar ninguém. A humanidade é uma ideia abstrata demais. E, enquanto objeto de adoração, é um deus pequeno demais, impotente para regenerar o coração de seus fiéis e trazer a redenção que continuamente promete a si mesma. O secularismo é tão pobre que, para combater, precisa roubar as armas do adversário; só pode triunfar sobre o inimigo parecendo-se com ele em alguma medida.

André Venâncio é mestre em física aplicada pela USP. Desde 2007 escreve em seu blog "Retratos por escrito" sobre uma variedade de temas ligados à cosmovisão cristã. É casado com Norma Braga Venâncio e reside atualmente em Natal. É membro da Igreja Presbiteriana do Pirangi.

1 Comments

  1. Lucas disse:

    É como se eles amassem a rosa e odiassem a terra.

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