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17/abr/2019“Eu odeio a religião”. Já perdi as contas de quantas vezes ouvi essa frase. E ao contrário do que se possa supor, os interlocutores não são ateus raivosos nem agnósticos mais corajosos; são cristãos – incluindo alguns pastores. Para os que estão há mais tempo envolvidos no ambiente eclesiástico, não é novidade a sanha de alguns líderes evangélicos na oposição àquilo que denominam religião. Muitos, inclusive, passaram a optar pelo termo espiritualidade, supostamente mais fidedigno à mensagem bíblica. E aqui, não me refiro a abordagens específicas, como o “cristianismo arreligioso” do luterano Dietrich Bonhoeffer (1906-1945), mas de um (des)afeto típico do nosso tempo.
Remontar o percurso da religião nos levaria a tempos imemoriais da história da humanidade. A revelação bíblica demonstra que a experiência religiosa lato sensu existe desde a criação do ser humano (Gn. 1:26-27; Gn. 3:8). À medida que os indivíduos foram se organizando em grupos maiores, essa dimensão foi sistematizada e o culto ganhou contornos de cultura. Ao longo dos séculos, o aspecto religioso da humanidade foi compreendido a partir de diferentes chaves interpretativas, que ajudam a compor o imaginário sobre a questão.
São três os principais posicionamentos em relação ao significado de religião (religio). Cícero (106-43 a.C.) defendia a origem no termo relegere, cujo sentido é releitura, interpretação e retomada. Indica o aspecto objetivo da prática religiosa, operado por meio da repetida observação dos textos sagrados, da tradição e dos ritos, apontando para uma recuperação da dimensão espiritual dos indivíduos. Mais tarde, Lactâncio (250-325) discordou de seu conterrâneo, argumentando que era o termo religare aquele que guardava maior proximidade com o sentido real. A religião seria, então, um laço de piedade, devoção, perdão e entrega em relação à religação dos seres humanos a Deus. Já na era cristã, Santo Agostinho (354-430) considerou a palavra religere como a matriz etimológica apropriada, segundo a qual a humanidade reelegia a Deus, a quem tinha abandonado. Desse modo, o sentido da religião seria a renovação da adesão do ser humano ao divino. As três acepções disputam o convencimento público há tempos, embora a definição de Lactâncio seja a dominante no discurso comum – talvez por ele ter sido conselheiro de Constantino (272-337), o primeiro imperador romano cristão, responsabilizando-se pela condução da política religiosa imperial dali por diante.
De certo modo, a contemporânea repulsa pela religião possui um substrato pertinente, na medida em que parece reverberar uma indignação contra o legalismo que corrói a piedade e o fervor de muitos crentes ao redor do mundo. Também indica uma tentativa de readaptação identitária em uma sociedade secularizada, na qual a presença da religião é ingenuamente tomada como um traço de imaturidade e heteronomia. No entanto, a negação da natureza religiosa da fé cristã acaba por amputar dimensões importantes da nossa experiência espiritual. Neste sentido, a pergunta oportuna é: nós cristãos somos religiosos? Suspeito que haja duas alternativas possíveis, sobre as quais é preciso fazer uma reflexão honesta, considerando o nível de veracidade presente em ambas.
Não somos religiosos. Pelo menos em certo sentido. De fato, o cristianismo não subscreve o entendimento da religião como sistema de religação do ser humano a Deus. É das lições mais básicas da teologia cristã o fato de que conhecemos o Eterno porque Ele se revela a nós, nos reconciliando consigo mesmo (Rm. 5:10; 2 Co. 5:18; Cl. 1:20-21) por meio da mediação de Cristo Jesus (1 Tm. 2:5-6). Quando escreveu sua primeira carta à igreja em Corinto, composta majoritariamente por gregos e judeus convertidos, o apóstolo Paulo fez uma esclarecedora declaração sobre a natureza da fé cristã:
“Pois, enquanto os judeus pedem sinais, e os gregos buscam sabedoria, nós pregamos o Cristo crucificado, que é motivo de escândalo para os judeus e absurdo para os gentios. Mas para os que foram chamados, tanto judeus como gregos, Cristo é poder de Deus e sabedoria de Deus.” (1 Co. 1:22-24)
Naquele tempo, o judaísmo já estava fragmentado em diferentes seitas que buscavam dar sentido à experiência religiosa – e, portanto, à própria vida. Havia os fariseus ambiciosos e moralistas; os saduceus poderosos e opressores; os zelotes revolucionários e nacionalistas; os essênios um tanto eremitas e místicos; os herodianos políticos e espiões. Em todos os casos, postulavam uma transformação político-social nas entranhas de Israel. A tradição bíblica mostra que os judeus eram insaciáveis na busca por sinais que comprovassem a messianidade de Jesus, embora se recusassem a dar crédito aos feitos milagrosos que viam. Não somos como os judeus.
Por outro lado, os gregos estavam comprometidos em aumentar o controle sobre a vida e ampliar o entendimento sobre Deus por meio de um conjunto sui generis de conhecimento, a gnose. A partir dessa sabedoria, operada como um poder especial, seria possível estabelecer contato com Deus, alcançar o perdão e a plenitude, tornar as pessoas melhores e atingir a compreensão das coisas na máxima potência. Sequer havia lugar para a ideia de um Messias: a própria gnose levaria ao transcendente, seja lá o que fosse tal coisa. Essa corrente filosófico-religiosa foi marcante na cultura helênica antiga, dando origem ao gnosticismo, movimento firmemente combatido pelos cristãos. Não somos como os gregos.
A distinção oferecida por Paulo é bastante didática. A religião cristã é o que é, não outra coisa: a proclamação do Cristo crucificado e ressurreto. Isso é escândalo para aqueles que vislumbram a religião como instrumento humano eficaz de transformação política e para aqueles outros que estão atabalhoados em busca de sinais milagrosos que os façam entrar em êxtase. Semelhantemente, a proclamação cristã é absurda para os que pretendem encontrar na imanência o sentido último da vida, praticando a religião como ferramenta para alcançar um conhecimento especial e tornar as pessoas melhores. A elucidação do apóstolo Paulo é, ainda em nossos dias, um golpe desferido contra judaizantes, secularistas e esotéricos que tentam emular o cristianismo. Neste sentido, o cristão está longe da religião. No entanto, isso não é tudo.
Somos religiosos. Mais que isso: somos muito religiosos. A despeito da maneira pejorativa com a qual líderes evangélicos se referem ao tema atualmente, não há razoável suporte bíblico ou cultural para esta abordagem depreciativa da religião. As Escrituras estão repletas de episódios nos quais Jesus confrontou escribas, fariseus, saduceus e todo o establishment religioso do seu tempo (Mt. 23:13-36; Mc. 12:35-40; Lc. 11:37-54; Lc. 20:45-47 e tantos outros). Contudo, em todas as ocasiões, sua crítica era a um tipo de experiência religiosa esvaziada do sentido real (portanto, dEle mesmo), e não à própria noção de religião enquanto tal. Quando da escrita da epístola que leva seu nome, Tiago ofereceu um interessante recurso pertinente à nossa reflexão:
“Se alguém se considera religioso e não refreia sua língua, engana seu coração, e sua religião é inútil. A religião pura e imaculada diante do nosso Deus e Pai é esta: visitar os órfãos e as viúvas nas suas dificuldades e não se deixar contaminar pelo mundo.” (Tg. 1:26-27)
Ora, não resta dúvida que Tiago estabelece uma contraposição entre verdadeiro e falso, entre religião pura e religião impura, indicando como ser religioso da forma correta. Da ponderação do autor, depreende-se que há uma observância religiosa (thrêskeia) válida, para a qual os cristãos devem se voltar com esmero. A realização da religião pura implica no casamento entre ortodoxia e ortopraxia, entre disciplina e prática: o serviço litúrgico, a vida devocional e a participação eclesiástica aliados ao exercício do amor abnegado, ao controle das paixões carnais e à devoção profunda a Deus. Qualquer prática oposta a essa é vista, na verdade, como uma tentativa de falsificação daqueles que supõem ser religiosos.
É acertado dizer, por conseguinte, que somos religiosos no sentido de uma experiência que impacta nossa maneira de pensar, compreender e agir no mundo, a partir da transformação interior provocada pelo Espírito Santo, refletida em uma ética exterior orientada para a ação correta. Essa noção está adequadamente inscrita em algumas das principais definições oferecidas pelo campo dos estudos de religião, como a proposição do sociólogo alemão Max Weber (1864-1920), para quem religião designava um sistema de regulamentação da vida operado a partir de um conjunto de convicções.
Desse modo, podemos compreender a religião como um complexo de crenças transcendentais que se metamorfoseia num sistema de valores que opera na imanência, no mundo ordinário. Os religiosos, ressignificados por essas crenças, experimentam a vida individual e coletiva a partir dos valores por meio dos quais são (in)formados. Ora, se isto é religião, como dizer que o cristianismo escapa a esta classificação? Deus nos concedeu o dom da salvação pela graça, mediante a fé em Cristo (Ef. 2:8-9), em uma ação executada plenamente pelo Espírito Santo (Jo. 16:7-11). Diante disso, somos conduzidos à experiência de viver fervorosamente devotados a Deus, por meio de uma mudança na mentalidade (Rm. 12:1-2), refletida no cotidiano da vida comum. Ou seja: somos religiosos.
Precisamos escapar das generalizações que trazem mais confusão que esclarecimentos e demonstrar mais rigor com a história e o percurso dos conceitos que dão forma àquilo que cremos. Particularmente, prefiro não ser contado entre os que banalizam a religião, tratando-a de maneira jocosa. Antes, minha opção é por ser tão religioso quanto ensinam as Sagradas Escrituras: pregando o Cristo Salvador, amando o próximo e sendo fiel a Deus com piedade, devoção e santidade.
Jonathan Goudinho é graduado em Jornalismo pelo Centro Universitário de Belo Horizonte (UniBH), pós-graduado em Teologia Sistemática pela Faculdade Batista de Minas Gerais e mestre em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). É membro da Igreja Cristã Novo Tempo, em Belo Horizonte, na qual integra o ministério de ensino. |