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A tecnologia trouxe mudanças notáveis ao mundo e estas mudanças estão se acelerando com novos avanços na medicina, impressão 3D, inteligência artificial, veículos autônomos e a “internet das coisas” em todo o mundo, para nomearmos somente algumas. A mudança mais dramática, entretanto, pode ser invisível para nós – a mudança na maneira como nós pensamos.

Tecnologia não é somente uma ferramenta que nós empunhamos; é um meio através do qual nós sentimos e interagimos com o mundo. À medida que a tecnologia intermedeia nossas experiências e ações, ela lentamente molda a maneira como nós percebemos as coisas. Gradualmente, mudanças em percepção podem alterar o modo como nós refletimos sobre a realidade e, por fim, como nós pensamos sobre nós mesmos.

Veja o telescópio, por exemplo. Ele provê uma extensão para o olho, nos permitindo enxergar muito mais distante no cosmos. O telescópio possibilitou aos primeiros astrônomos como Galileu observar que a terra, e por extensão a humanidade, não era o centro do universo. Olhe quão imenso o universo é realmente e quão pequeno nós somos em comparação! O telescópio mudou nossa percepção de nós mesmos.

Da mesma forma, “a pílula” não somente forneceu meios de contracepção, mas, ao separar sexo da procriação, alterou comportamentos e atitudes em torno do sexo, da família e do casamento. E assim como o pensamento mudou, o mesmo aconteceu com a cultura predominante.

A tecnologia digital moderna também tem um impacto em como nós percebemos nós mesmos. Smartphones nos incentivam a desconsiderar nosso entorno e as mídias sociais nos permitem realizar uma espécie de curadoria de nossas próprias personalidades, apresentando nosso caráter como queremos que os outros nos vejam. O ciberespaço nos permite viajar sem nossos corpos e a realidade virtual nos deixa criar nossos próprios mundos imaginários. Todas essas tecnologias podem nos distrair e sutilmente alterar nossos pensamentos sobre a existência humana corpórea.

Na vida real

Em Cartas de um diabo a seu aprendiz, C. S. Lewis imagina uma série de cartas entre um demônio aprendiz, Vermelindo e seu tio Maldanado. Em uma carta, Maldanado aconselha seu sobrinho a tentar seu alvo “retirando sua atenção do fluxo das percepções sensoriais imediatas. Sua tarefa é a de fixar a atenção dele nesse fluxo. Ensine-o a chamá-lo de ‘vida real’ e não o deixe perguntar-se o que ele quer dizer com ‘real’”[1].

Muitos de nossos aparelhos fazem exatamente isto: “fixam nossa atenção no fluxo” e apresenta isso como a “vida real”.

A desvalorização da existência corpórea não é nova. Uma heresia da igreja primitiva chamada gnosticismo surgiu de influências gregas e pagãs e via a matéria como má e o espírito como bom. Os corpos eram vistos como um mal necessário até que o espírito pudesse ser eventualmente livre. Assim como os gnósticos de antigamente, há agora futuristas que anseiam por um dia em que eles possam descartar os limites de seus corpos, entretanto, ao invés de libertar o espírito, eles aspiram por baixar seus cérebros para um computador onde eles esperam viver para sempre.  À medida em que as tecnologias digitais modernas involuntariamente nos empurram para experiências desencarnadas, podemos detectar uma mudança no pensamento em direção a um tipo de neo-gnosticismo.

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Ao celebrarmos a Páscoa e relembrarmos a ressurreição de Cristo, os cristãos são lembrados da importância de nossos corpos. A encarnação de Cristo aponta para um Deus que valoriza profundamente nossa existência corpórea.  “O Verbo se fez carne, e habitou entre nós” (João 1:14). O credo niceno, escrito em parte para contradizer o gnosticismo, afirma que Cristo “se tornou encarnado” e que “foi feito humano”. Além disso, Jesus ascendeu aos céus em forma humana. Se o meio é a mensagem, então a encarnação de Cristo, ressurreição e ascensão corpórea apontam para a importância de nossa existência humana corpórea.

O famoso filósofo da mídia Marshall McLuhan certa vez observou que o “conteúdo de um meio é como o pedaço suculento de carne levado pelo ladrão para distrair o cão de guarda da mente”. Com o desdobramento da tecnologia, precisamos estar alertas e dominar nossos dispositivos, em vez de permitir que eles nos dominem.

Finalmente, precisamos celebrar as tecnologias e as práticas que afirmam nossa existência humana corpórea no aqui e agora, ao mesmo tempo em que esperamos a “ressurreição do corpo e a vida eterna”.

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[1] C. S. Lewis. Cartas de um diabo a seu aprendiz. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2017, p. 18

Traduzido por Luiz Adriano Borges e revisado por Jonathan Silveira.

Texto original: Embodiment Snatchers: Technology and how it shapes our perception. Publicado em “Christian Courier” em 8 de abril de 2019.

Derek C. Schuurman (Ph.D., McMaster University) é professor de ciência da computação e assume a cadeira do departamento de ciência da computação na Redeemer University College em Ancaster, Ontario. Schuurman é engenheiro na província de Ontario, membro do Institute of Electronic Engineers (IEEE), da Association of Christians in the Mathematical Science (ACMS), bem como da ACM Special Interest Group on Computer Science Education (SIGCSE).

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