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A centralidade de Deus segundo sua própria revelação significa que sua liberdade soberana deve ser central na reflexão sobre a liberdade humana. A liberdade requer autoridade, uma fonte que a autorize, e para a Bíblia e a família bíblica de crenças, a autoridade e a fonte da liberdade é Deus. Aquele que diz: “Eu sou quem sou” e “Eu serei quem serei” é o Senhor soberano e livre. Toda liberdade, portanto, tem origem nele e dessa maneira deve ser compreendida. Em sua liberdade soberana, ele expressa e exerce sua vontade, a despeito de toda interferência e resistência. A Presença Suprema e a realidade final não é o destino, o acaso ou a necessidade. Portanto, quando Deus diz: “Deixa meu povo ir”, ele, em sua liberdade, está agindo para libertar seu povo para que o adore livremente em comunidade, em liberdade diante dele e tão livremente quanto ele concebeu que seu povo vivesse, como povo criado à sua imagem e semelhança.

Outras filosofias e crenças fundamentais se baseiam em outras autoridades, como a razão, a natureza, a ciência e a tradição, e fazem delas elementos essenciais em seu pensamento. Contudo, para a família bíblica de crenças, a revelação no Sinai é tão grandiosa que nenhuma outra autoridade é necessária ou desejada. A liberdade é o princípio e o fim, o resumo e a alma do livro inteiro do Êxodo. E essa liberdade flui diretamente do caráter e da vontade do Deus soberano, que expressa e exerce sua vontade a despeito de toda resistência e interferência.

Assim, no caso da liberdade humana, nenhuma outra filosofia ou autoridade foi capaz de oferecer o fundamento necessário à liberdade. No auge da Revolução Francesa, Robespierre[1] e seus companheiros apostaram tudo na fundamentação da liberdade sem Deus. Eles tentaram substituir a adoração a Deus pela adoração à Senhora Natureza. Para fazê-lo simbolicamente, substituíram o altar-mor de Notre Dame por uma “montanha” de terra, de onde uma atriz, vestida de branco, entoava um “Hino à Liberdade”: “Desce, ó Liberdade, filha da Natureza”.[2] Filha da natureza? Isso é um absurdo, e a tentativa foi inútil. A liberdade não é filha da natureza e jamais poderá ser, mesmo que escrevamos natureza com um N maiúsculo e a personifiquemos como Gaia ou Mãe Natureza. Nem a natureza sozinha nem a razão e a ciência sozinhas jamais nos deram o fundamento para a liberdade humana. Cada uma delas leva ao determinismo[3], e não à liberdade. A liberdade é dádiva de Deus. Ela não provém, não pode originar-se e não virá da razão, da ciência ou da natureza por si sós.

A verdade é que a ciência contemporânea enfatiza o determinismo e solapa a liberdade com insistência implacável. A alegação do homem de que ele nasce livre é uma ficção. A única surpresa é que essa franqueza desoladora não é mais levada a sério. B. F. Skinner disse claramente no título do seu best-seller Beyond freedom and dignity: “O que se está abolindo é o homem autônomo […] o homem defendido pela literatura da liberdade e da dignidade.”[4] Ele argumentou que, embora a perspectiva judaica e cristã tradicional da humanidade sustentasse a exclamação de Hamlet: “Quão semelhante a um deus!”, esta nova visão pavloviana está mais de acordo com a expressão “Quão semelhante a um cão!”. Para Skinner, essa declaração não era um revés para a humanidade, mas, sim, um avanço, porque é a verdade que a ciência nos transmite. Mais recentemente, Sam Harris, um filósofo do novo ateísmo, chegou à mesma conclusão: “O livre arbítrio é uma ilusão. Nossas vontades simplesmente não são de nossa autoria […] Não temos a liberdade que julgamos ter”.[5] Yuval Harari resume de que modo a ciência, segundo a visão secularista, fixou os pregos no “caixão da liberdade”:

Por melhor que seja a compreensão que temos da ciência, o determinismo e a aleatoriedade dividiram o bolo entre si e não deixaram sequer uma migalha para a “liberdade”. A palavra sagrada “liberdade”, assim como “alma”, acabou se tornando um termo vazio de qualquer significado inteligível. O livre arbítrio existe apenas nas histórias imaginárias que nós humanos inventamos.

No entanto, é claro que esse julgamento sombrio constitui um desafio não apenas para a liberdade, mas para o liberalismo. A liberdade sem fundamentação que o liberalismo defende não passa de pretensão e ilusão, razão por que o liberalismo do establishment americano e de muitos países ocidentais mostrou-se tão frágil quando confrontado pela esquerda radical. “Contudo”, prossegue Harari, “nas últimas décadas, as ciências da vida chegaram à conclusão de que essa história liberal é pura mitologia. O eu autêntico é tão real quanto a alma eterna, o Papai Noel e o coelhinho da Páscoa”.[6]

O rabino Sacks se opõe de modo contundente a essa desanimadora conclusão. O assim chamado repúdio à liberdade humana pela ciência diz mais sobre os limites da ciência do que sobre a não existência dessa liberdade. O fato é que o estudo científico da humanidade se viu subjugado por uma falácia.

A ciência procura causas; uma causa sempre precede seu efeito; portanto, a ciência buscará sempre explicar um fenômeno no presente tomando como referência algo ocorrido no passado — qualquer coisa, do genoma até as experiências da primeira infância, a química do cérebro e os estímulos recentes. Portanto, a ciência negará inevitavelmente a existência do livre arbítrio humano. Essa negação poderá ser branda ou severa, gentil ou brutal, mas virá. A liberdade será entendida como uma ilusão.[7]

Sem dúvida, a falácia não é culpa da ciência em si, mas do cientificismo ou da visão estritamente naturalista que se julga capaz de usar o método científico para explicar tudo. A falácia é simples, como observa Sacks:

A ação humana está sempre voltada para o futuro. Se ligo a cafeteira é porque desejo uma xícara de café. Estudo com afinco porque quero passar na prova. Ajo para produzir um futuro que ainda não existe. A ciência não pode explicar o futuro porque algo que ainda não aconteceu não pode ser uma causa. Portanto, sempre haverá alguma coisa na ação intencional do ser humano que a ciência não pode explicar.[8]

Martin Seligman defende em Homo prospectus que o maior erro de Sigmund Freud e de muitos outros foi que eles se preocuparam apenas com o passado e com o presente — com a história do indivíduo, sua constituição genética e seus impulsos, emoções e estímulos no presente, negligenciando assim tudo o que diz respeito ao futuro. É claro que o futuro não pode ser mensurado, portanto, o resultado inevitável do modo naturalista de pensar é que cada um de nós está determinado, preso a uma teia de causas, é “um prisioneiro do passado e do presente”.[9]

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Mais uma vez, a fé no Deus do Sinai — “Eu serei quem serei” — sempre inclui um tempo futuro e um forte senso de visão, esperança e antecipação. A fé em Deus está voltada para o que está à frente, para o futuro; ela é progressista, verdadeiramente transformadora e revolucionária. Não é simplesmente causada; ela causa. É famosa a crítica de Karl Marx à religião: “flores nas correntes”, que enfeitam e disfarçam o cativeiro humano. Certamente, a religião pode ser reacionária e tem sido com frequência. No decorrer dos séculos, ela se deixou corromper inúmeras vezes para sustentar o status quo. A ideologia secularista também se corrompe facilmente. Marx iniciou com a afirmação de que o princípio de toda crítica era a crítica à religião, mas, ironicamente, acabou se enveredando por uma religião política que tem acabado com toda crítica.

A fé revolucionária do Êxodo é muito diferente. Ela se preocupa principalmente com a liberdade, a mudança, a transformação e o futuro — a própria liberdade que a ciência por si mesma não pode justificar e que o socialismo revolucionário jamais conseguiu alcançar. Sacks cita Herman Cohen, filósofo judeu do século 19: “O que o intelectualismo grego não pôde criar, o monoteísmo profético teve êxito em criar […] Para os gregos, a história está voltada unicamente para o passado. Os profetas, porém, são videntes, e não estudiosos. Eles são os idealistas da história. O dom da visão lhes permitiu criar um conceito de história como o ser do futuro”.[10] Sacks conclui com uma síntese fantasticamente bela de Harold Fisch, um estudioso de literatura, que fez referência à “memória não pacificada de um futuro ainda a se cumprir”.[11]

Em Êxodo, o Deus livre e soberano liberta seu povo a fim de que este o adore livremente e viva livremente em união perante ele. A fé revolucionária é o único fundamento e a realização da liberdade humana mais elevada, bem como a dinâmica para a mais profunda transformação humana. O rabino Sacks afirma com ousadia a visão judaica: “O judaísmo é uma religião de liberdade e de responsabilidade. Contra todos os muitos determinismos na história do pensamento — astrológico, filosófico, spinoziano, marxista, freudiano, neodarwinista —, o judaísmo insiste em que somos senhores do nosso destino […] Podemos escolher”.[12]


[1] Maximilien de Robespierre foi um ex-Deputado da Assembleia Nacional Francesa no século 18. [Nota do editor]

[2] James H. Billington, Fire in the minds of men: origins of the revolutionary faith (London: Routledge, 2017), p. 46 [publicado em português por Vide Editorial sob o título A fé revolucionária: sua origem e história].

[3] Determinismo na filosofia ou na ciência é a tese de que todos os eventos no universo, incluindo as decisões e ações humanas, são causalmente inevitáveis. O determinismo implica que, numa situação em que uma pessoa toma uma determinada decisão ou executa uma determinada ação, é impossível que ela pudesse ter tomado qualquer outra decisão ou realizado qualquer outra ação. In: https://www.britannica.com/topic/determinism [Nota do editor].

[4] B. F. Skinner, Beyond freedom and dignity (New York: Penguin/Pelican, 1973), p. 196 [publicado em português por Summus sob o título O mito da liberdade]

[5] Sam Harris, Free will (New York: Free Press, 2012), p. 5.

[6] Yuval Noah Harari, Homo Deus: a brief history of tomorrow (New York: Harper, 2017), p. 285, 293 [publicado em português por Companhia das Letras sob o título Homo Deus: uma breve história do amanhã].

[7] Jonathan Sacks, “Faith in the future (Shemot 5780)”, Covenant & Conversation, January 13, 2020, disponível em: https://rabbisacks.org/shemot-5780; acesso em: 29 set. 2021.

[8] Sacks, “Faith in the future”

[9] Martin P. Seligman; Peter Railton; Roy F. Baumeister; Chandra Sipada, Homo prospectus (New York: Oxford University Press, 2016), p. x

[10] Herman Cohen, citado em Jonathan Sacks, Deuteronomy: renewal of the Sinai covenant, Covenant & Conversation (New Milford: Maggid, 2019), p. 384

[11] Harold Fisch, citado em Sacks, Deuteronomy, p. 385.

[12] Sacks, Deuteronomy, p. 287.

Trecho extraído e adaptado da obra “A Carta Magna da humanidade: a fé revolucionária do Sinai e o futuro da liberdade“, publicada por Vida Nova: São Paulo, 2022, p. 74-78. Traduzido por A. G. Mendes. Publicado no site Cruciforme com permissão.

Os Guinness é um palestrante de renome internacional, analista de questões relacionadas a fé e cultura e autor de vários livros, incluindo Time for Truth, The Call, e Dining With the Devil. Inglês, nasceu na China, formou-se nas universidades de Londres e Oxford e atualmente mora em Washington, DC, onde é membro sênior do Trinity Forum.
Nesse livro, Os Guinness investigou a natureza da fé revolucionária ao contrastar as revoluções seculares, como a Revolução Francesa, com a revolução impulsionada pela fé do Israel antigo. Ao final, ele concluiu que a história do Êxodo revela uma visão de liberdade mais elevada, mais rica e mais profunda que já existiu.

O contraste que Guinness propõe entre "Paris" e "Sinai" revela uma abordagem que distingue dois tipos de revolução e suas diferentes perspectivas acerca da natureza, da igualdade e da liberdade humanas. Ao tornar o Êxodo a Carta Magna da humanidade, o autor propõe uma visão construtiva de uma sociedade moralmente responsável, de pessoas independentes e livres, e que celebram uma aliança umas com as outras, visando a justiça, a paz, a estabilidade e o bem comum da comunidade.

Publicado por Vida Nova.

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