Por que precisamos de um novo contrato social? | Luiz Adriano Borges
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14/mar/2022Nesses últimos dias foi noticiado um vazamento de áudio de um deputado em que ele menciona que as mulheres “ucranianas são fáceis porque são pobres”. O áudio viralizou e centenas de comentários foram feitos contra o deputado. Dizer que ele foi infeliz no comentário é pouco, mas essa situação também revela a corrupção moral em que nos encontramos. A visão que temos das mulheres em nossa sociedade pornográfica é deprimente. A sociedade capitalista acentua a objetificação das mulheres transformando-as em mercadorias. Mas precisamos também, principalmente nós, homens, refletir fortemente sobre nossa visão das mulheres e não culpar fontes externas somente.
Quando o repugnante áudio foi vazado, me veio à mente uma história antiga, contada por Platão e atribuída a Sócrates, acerca do Anel de Giges. A narrativa está no livro “A república”. Sócrates, questionado sobre questões de justiça, conta uma espécie de parábola, que resumo a seguir: no reino da Lídia, o pastor Giges, que cuidava de seu rebanho, topou com um anel. Colocando-o em seu dedo, percebeu que o anel lhe dava o poder da invisibilidade. Ele então pôs em ação as possibilidades que aquele objeto lhe traria: seduziu a mulher de seu soberano, matou-o e tomou-lhe o poder.
Sócrates pergunta: será que alguém, tendo posse de um anel como esse, se manteria justo? Na visão de Sócrates, que se coaduna com a visão paulina, “Não há um justo, nem um sequer.” (Rm 3.10); todos que tivessem tal poder, agiriam com injustiça. Em vista de tal história, devemos nos fazer a pergunta: o que faríamos se tivéssemos esse anel? Se eu pudesse fazer tudo que eu quisesse e não fosse “pego” ou punido por isso, será que eu não faria? Se vazasse uma gravação de WhatsApp com o que passa na minha cabeça, seriam coisas boas? A pergunta filosófica que deve ecoar em nossa mente é: “o que me faz moral?”
Em vista do áudio vazado, somos rápidos para “cancelar” o sujeito, mas devemos fazer uma autorreflexão e pensar se nunca pensamos em algo semelhante para com outras mulheres. Nunca tratamos as mulheres como objetos ou diminuímos seu valor, ao menos em nossas mentes? Será que se tivéssemos uma maneira de dar vazão aos nossos pensamentos mais sórdidos, sem que fôssemos punidos por isso, não se revelaria algo podre? Ou somos moralistas em somente condenar a pessoa e fazemos de conta que esse tipo de pensamento é algo raro?
No episódio USS Callister (1º episódio, 4ª temporada) de Black Mirror, vemos um programador frustrado que cria um jogo popular de computador em que ele clona o DNA de seus colegas para criar simulacros virtuais e acaba interagindo dentro do universo. Ali, ele se torna uma espécie de deus, comandante da nave que dá nome ao episódio, onde todos têm que se submeter à sua vontade porque ele é o arquiteto do universo. O fato de toda a estética do episódio se basear em Star Trek não é aleatória, pois traz uma crítica ao mundo nerd/geek e sua forma de objetificar mulheres. Não é necessário ir muito longe na cultura de cosplays e personagens femininos desse universo para se dar conta. E nossos filhos (ou mesmo nós) são consumidores vorazes disso.
Esse tipo de visão que denigre a mulher acaba trazendo uma busca por aniquilá-la numa relação, uma vez que o que importa é o cumprimento dos meus mais sujos desejos. Não importa o que ela sente, as dificuldades que ela esteja passando, preciso saciar minha carne. E nesse processo, o que ocorre é uma narcisização de si mesmo, acaba que o sujeito olha cada vez mais para si, para seus interesses. As redes virtuais dão vazão a isso, criando homens focados em si mesmos, que olham para mulheres como meros meios para seus desejos. Para o filósofo Byung-Chul Han, trata-se de uma “profanação de eros”, do amor, que leva até a modificação das imaginações de homens e mulheres, que acabam se decepcionando com seus parceiros reais[1]. Não tem amor nenhum envolvido nessa transação.
Esse autor inclusive fala que “o consumidor ideal [da pornografia] é um homem sem caráter” e “essa falta de caráter torna possível um consumo indiscriminado”[2]. A visão de homens que a sociedade tem produzido, de objetificação das mulheres, é de alguém sem caráter, como o áudio vazado bem o demonstra.
Por isso, é preciso renovar a nossa mente (Rm 12:2), purificar, retirar esse tipo de pensamento de nossas cabeças como algo inconcebível. Mas claro que isso não é uma coisa que podemos fazer facilmente, simplesmente apagar e mudar de um dia para o outro; muita coisa está embrenhada culturalmente em nossa sociedade. Precisamos mudar a forma como enxergarmos as mulheres, como as tratamos em nossos pensamentos e ações.
Um primeiro passo é procurar nos atentar em como usamos as redes sociais e internet nesse sentido. Não que no passado não houvesse pensamentos impuros, mas hoje a internet tornou muito mais fácil acessar imagens pornográficas. Mesmo em site permitidos, as imagens indecentes estão a um clique de distância. A ilusão de anonimato nas redes faz com que achemos que podemos ver qualquer coisa livremente; imagens que não deveríamos ter acesso estão ali disponíveis, conclamando o acesso. E esse hábito é algo deformador de nossos corações. Até porque “Você é aquilo que ama”, como aponta o livro de James K. A. Smith. Aliás, junto com toda sua trilogia de livros que faz parte da série “Liturgias Culturais”, esse livro é fundamental para pensarmos numa reforma de nossos hábitos, inclusive com relação à visão que temos das mulheres.
Precisamos nos ajoelhar e pedir a Deus que nos perdoe e também às mulheres que nos cercam. E após o esforço de modificação de nossos pensamentos, também devemos lutar para uma mudança nas formas do que a sociedade pornográfica nos impõe. Mas a mudança tem que começar de dentro para fora, dos nossos corações para a sociedade. Não podemos tolerar que existam pensamentos como esses do áudio vazado, e também precisamos negar a quase onipresença da pornografia em nosso redor. Precisamos criar para as próximas gerações uma sociedade livre de pornografia; ainda que isso seja uma luta impossível, devemos lutar para que nossos filhos sejam livres desse pecado e da forma negativa como temos tratados as mulheres.
O que nos faz moral? O que nos faz tratar as mulheres com respeito? O cristianismo não é somente uma religião que busca tornar a pessoa obediente de forma externa às regras, mas é um caminho de busca por se parecer mais e mais com Cristo, tornando-nos virtuosos. Cristo é aquele que olha para a prostituta não com olhar de desejo, mas sim com misericórdia para com a sua situação. Ninguém, nem um movimento, fez tanto para melhorar a condição das mulheres como o cristianismo, que nasceu em uma sociedade que excluía sistematicamente elas da vida pública. Ninguém, para além de cristãos, teria coragem de anotar como testemunho que foram mulheres que descobriram a tumba vazia de Jesus.
Assim, bons exemplos não nos faltam. Mudemos.
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[1] HAN, Byung-Chul. Agonia do Eros. Petrópolis: Editora Vozes, 2017, p. 64
[2] HAN, Byung-Chul. A salvação do belo. Petrópolis: Editora Vozes, 2019, p. 73
Luiz Adriano Borges é professor de história na UTFPR-Toledo, lecionando sobre história da técnica, tecnologia e sociedade, filosofia, sociedade e política. Sua área de pesquisa centra-se na História e Filosofia da Tecnologia e da Ciência. Seus projetos mais recentes são: “A visão cristã da tecnologia” e “Esperança em Tempos de guerra. Ciência, tecnologia e sociedade em Tolkien, Huxley, Lewis e Orwell (1892-1973)". |
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1 Comments
Muito sensato e bom este artigo. Infelizmente vivemos também em uma sociedade que a cada dia mais se distancia do Criador, e de sua perfeição no criar. Esta sociedade contemporânea toma como definitiva as ideologias de esquerda e direita como reguladoras do comportamento humano, e pensam que somente criando leis punitivas a agressores dos grupos que defendem, resolverão o problema. Não consideram o ser humano como um ser também espiritual, e que toda a mudança para o bem, só acontece quando este ser, a partir do seu interior, se volta ao seu Criador, o Deus Eterno, pelo ouvir e crer no evangelho de seu Filho Jesus Cristo. O ser caído, não tem como se levantar, se redimir, sem Cristo.