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Cthulhu (personagem da literatura de H. P. Lovecraft). Imagem: Divulgação.

Todo estudante de teologia, cedo ou tarde, haverá de lidar com o espinhoso problema do sofrimento. Na filosofia e principalmente na teologia, um campo de inúmeros debates se estabelece em torno das chamadas teodiceias, que são basicamente as respostas para a origem do mal ou razões pelas quais Deus permite a existência do mal no mundo. Como poderia um Deus Todo-poderoso e Todo-bondoso permitir a existência de dor e sofrimento? Obviamente, tais questionamentos não se restringem aos campos abstratos da filosofia, mas assombram também a vida humana como um todo, inclusive, e talvez especialmente, aos cristãos genuínos. Para o cristão, é possível que o problema do mal surja como uma expressão de dor, súplica por auxilio do Senhor, ou até através de uma dúvida que coloca em xeque as bases dos nossos pressupostos mais profundos. E na arte, mais especificamente no cinema e na literatura, é também possível observar alguns aspectos de como os seres humanos lidam com a desafiadora existência do mal.

 Um problema não resolvido

Há muito o que se discutir quanto a plausibilidade de respostas para o desafiador problema do mal. John Frame busca refutar as respostas mais populares que são comumente apresentas como resoluções definitivas para um problema que, muito provavelmente, não está ao nosso alcance solucioná-lo em definitivo. As abordagens mais adequadas provavelmente são aquelas que se aproximam do mal como um mistério e reconhecem o limite para voz, para razão, ou, em outras palavras, “o mistério da relação de Deus com o mal é um que, estou convencido, jamais será dissolvido nessa vida, e não estou certo de que será na seguinte”[1]. O interesse aqui, porém, está na reflexão sobre as respostas culturais que se podem encontrar para a lida humana em relação ao mal. Sim, há um problema, e sim, de fato o mal é desafiador. Há quem diga inclusive que o mal é “a completa refutação ao teísmo popular”[2]. Contudo, quais são os aspectos do mal que alcançam os afetos humanos nas mais profundas reservas dos corações? Por que a existência do mal desafia a humanidade como um todo, do cristão ao mais cético dos ateus?

O problema do mal no gênero de terror/horror ficcional

Além da dor, do sofrimento de se perceber em um mundo repleto de calamidades naturais, enfermidades e violência, há no mal um incômodo latente pouco discutido, que é justamente a ausência de explicações. Como já mencionado, parece pertinente afirmar que o mistério é a abordagem mais adequada ao se aproximar do problema do mal, mas é possível que o mistério também seja uma espécie de gatilho para a geração de uma profunda inquietação ao ser humano finito e, muitas vezes, incapaz de compreender e categorizar toda a realidade que o cerca.

Para uma aproximação neste fenômeno de inquietação e, em grande medida, de pavor, talvez seja útil dirigir o olhar para o gênero de terror/horror ficcional. Partindo da observação de que o terror é um gênero amplamente difundido na cultura Pop, a ponto de o famoso Stephen King ser hoje o autor com o maior número de adaptações audiovisuais para suas obras literárias, é curioso pensar nos motivos que perpassam o sucesso desse gênero. Além de alguns fatores biológicos, como por exemplo a liberação de dopamina[3], existem respostas fascinantes que ajudam a compreender a popularidade das obras de terror entre o grande público. O autor Noël Carroll, filósofo americano especializado em filosofia do cinema, demonstra que o sucesso do terror está na experiência de investigação pela qual o público é transportado para uma atmosfera sombria e repleta de mistérios, onde é possível, junto aos protagonistas das obras, participar ativamente da dinâmica de investigação e solução[4]. Ou seja, parte do êxito das obras de terror é justamente a possibilidade de decodificar um mistério, resolver uma situação de risco, ou até mesmo, depois de encontrar uma resposta, eliminar o agente causador do mal, da morte, do sofrimento.

Ao direcionar o olhar para um subgênero do terror conhecido popularmente como terror cósmico, criado pelo famoso H. P. Lovecraft, é possível perceber também o fascínio e o pavor de contemplar o desconhecido, o inexplicável. Tal fascínio/pavor se encontra sempre em uma linha tênue entre a curiosidade/deslumbramento pelo transcendente e o terror/insanidade ante ao inexplicável. Para compreender essa complexa ambiguidade de sensações, Carroll nos diz:

“O medo em si é desagradável e naturalmente seria evitado; mas o medo cósmico não é simplesmente medo, mas também temor, medo composto por algum tipo de dimensão visionária que se diz ser profundamente sentida e vital. Assim, o medo ou pavor cósmico, se de fato existe, pode ser desejável de uma maneira que o simples medo não seja.” (CARROLL, 1990, p.162, tradução nossa).

A ideia apresentada é que, por mais terrível que seja a presença de seres ou forças que fogem a apreensão, há o contentamento desafiador de tentar compreender o indecifrável. Logo, se tratando do problema do mal, por mais aterradora que seja a presença da maldade no mundo, é perceptível a existência de um especial fascínio acompanhado de uma certa insatisfação, por trás das tentativas de responder a tal mistério.

Carroll também define o horror como as expressões que fogem ao que a humanidade tem como certo em suas categorias de compreensão, levando-a a questionar a abrangência do que pode de fato ser concebido como realidade. Por isso, é comum a presença de monstros assustadores, criaturas repulsivas ou, em se tratando de obras cujo vilão é um ser humano, normalmente tais personagens se apresentam tão malévolos e inescrupulosos que se torna impossível enxergá-los como seres humanos de fato, fazendo então com que a mente humana venha a concebê-los também como monstruosidades.

O ponto é que o terror é definido por Carroll como aquilo que nos provoca pavor diante da impossibilidade de compreensão, e parte do fascínio pelas obras deste gênero é a possibilidade de resolução do mistério ou encerramento do conflito, “assim, buscamos o mórbido sobrenatural na literatura de terror para experimentar o temor, um medo cósmico com uma dimensão visionária que corresponde a visões humanas instintivas do universo”[5].

É provável que tal movimento não seja muito diferente dos desafios propostos pelo problema do mal, uma vez que a humanidade não apenas é afetada pelo mal, que provoca sofrimento e dor, mas também se vê angustiada justamente por não ser capaz de explicá-lo, ou até mesmo de compreender seu propósito.

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A natureza misteriosa do mal

Enquanto alguns procuram uma solução que fuja do mistério, afirmando por exemplo que: “(…) tudo quanto Deus faz é justo e reto. Retidão é aquilo que Deus faz”[6] para conceber a possibilidade de Deus ser o autor do mal sem, contudo, tal fato implicar uma contradição à sua bondade e justiça, pois Deus está acima da lei, ex lex. Outros – mais sensatos – optam por reconhecer que, embora Deus tenha um propósito em todas as coisas e seja supremo em sua soberania, ele não concede uma resposta clara para todas as perguntas possíveis de se formular. Na realidade, a preocupação de Deus nas Escrituras em relação ao sofrimento parece estar voltada muito mais para fornecer segurança em meio a dor do que para conceder respostas para sua existência. Mas o fato é que há uma camada no problema do mal que gera o desconforto do não saber.

Na ficção, a presença desafiadora do mal é uma constante. É impressionante observar como obras de ficção cientifica e fantasia comumente abordam a existência do mal e do sofrimento. O mais importante autor de fantasia, J. R. R. Tolkien, definiu a origem do mal em seu universo fantástico através da descrição de um ser que tem como principal função a destruição de certezas, a enganação e a dissonância que advém de uma impossibilidade de se confortar com os mistérios. Tal ser é chamado de Melkor:

“(…) e eles construíram terras, e Melkor as destruíu; vales cavaram, e Melkor os ergueu; montanhas esculpiram, e Melkor as derrubou; mares encheram, e Melkor os derramou; e nada podia ter paz ou chegar a crescimento duradouro, pois tão certo quanto os Valar começavam um labor, assim Melkor o desfazia ou corrompia.”[7]

Dentro da narrativa do Silmarillion, Melkor age desde o princípio como aquele que gera dissonância e confusão, e o pavor que Melkor promove é justamente o desconhecimento. O mal então parece se associar diretamente com a alienação do conhecimento. Logo, é possível perceber que, para além da dor e do sofrimento, há no mal um motor de desconforto pulsante que advém justamente da presença dos limites para a capacidade humana de solucionar. A dor afeta aos que sofrem por suas consequências físicas, mentais e espirituais, mas a sua existência também afeta nossa razão, justamente por desafiá-la.

Obviamente não é possível propor que os desafios de compreender a realidade do mal sejam tão terríveis quanto a própria aflição e dor pelo mal geradas, mas é nítida a angústia oriunda do não saber. A ficção mostra tal angústia no fascínio que antecede o pavor pelo terror, mas, enquanto no horror ficcional o ser humano é massacrado com a necessidade de encarar sua absurda irrelevância perante o universo[8], ou a aleatoriedade sem redenção de um mal que se alastra pela face da terra, há uma resposta capaz de aquietar, tanto ao coração daquele que sofre, quanto ao coração daquele que se vê desafiado em sua capacidade de compreender. Porém, tal resposta só poderá ser encontrada quando se aceitar que a necessidade adâmica de tudo saber deverá ser arrasada, pois, tal como Jó diante do Todo-poderoso Deus, que abarca maravilhas e profundos mistérios desde sua existência Una e Trina, é preciso reconhecer que, como afirma Stanislaw Lem, a mente humana pode “(…) abranger tão poucas coisas de uma só vez. Observamos uma migalha do processo, a vibração de uma única corda numa orquestra sinfônica infinita”[9].

Em busca de um encantamento extraordinário

Podemos notar na cultura Pop, mais especificamente no gênero do terror, a abrangência de um sentimento que, embora cativo à razão, vive em busca de um encantamento com o extraordinário. No terror, o extraordinário pertence a uma ordem que gera pavor e impotência, pois o gênero enxerga a humanidade em uma ordem do não ser, onde a esperança está sempre distante, e a existência é insignificante. Geralmente, a cosmovisão no horror e na ficção científica tem como pressuposto que, para o ser humano, como diz Dostoiévski, “(…) é pesado, até, ser gente, gente com corpo e sangue autênticos, próprios”[10]. Por isso é possível concluir que o mal gera dor e sofrimento que atuam na esfera da alma, mas também provoca isso na esfera da razão. Para os desafios impostos pelo mal há apenas uma alternativa que efetivamente acalenta o intelecto e proporciona estratégias eficientes para o enfrentamento da dor. Tal alternativa é a esperança de que um dia, quando o olhar puder contemplar a Cristo em inteireza e esplendor, será possível enxergar, como diz John Frame, “uma face de suprema confiabilidade que todas as nossas queixas desaparecerão. Deus poderá simplesmente calar nossas bocas, como fez com Jó, e reabri-las em louvores”[11].

__________________

[1] FRAME, J. Apologética Para a Glória de Deus. 1. ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 119.

[2] FRAME (2010, apud KAUFMANN, [20–], p. 118

[3] TAYLOR, S. Tend and Befriend. Disponível em: https://taylorlab.psych.ucla.edu/wp-content/uploads/sites/5/2014/10/2006_Tend-and-Befriend_Biobehavioral-Bases-of-Affiliation-Under-Stress.pdf . Acessado em: 28/03/2020.

[4] CARROLL, N. The Philosophy of Horror. 1. ed. London: Routledge, 1990, p. 35.

[5] CARROLL, N. The Philosophy of Horror. 1. ed. London: Routledge, 1990, p. 163. Tradução nossa.

[6] CLARK, G. C. Deus e o Mal o Problema Resolvido. 2. ed. Edição. Brasília: Monergismo, 2014, p. 81.

[7] TOLKIEN, J.R.R. O Silmarillion. Tradução de Reinaldo José Lopes. 1. ed. Rio de Janeiro: Harper Collins, 2019, p. 48.

[8] TICON, F; MAPA R. Lovecraft e a Cultura Pop. In: Lovecraft – Medo Clássico volume I. 1. ed. Rio de Janeiro: Darkside, 2017.

[9] LEM, S. Solaris. Tradução de Eneida Favre. 1. ed. São Paulo: Editora Aleph, 2014, p. 185.

[10] DOSTOIÉVSKI, F. Memórias do Subsolo. Tradução de Boris Schnaiderman. 6. ed. São Paulo: Editora 34, 2017, p. 46.

[11] FRAME, J. Apologética Para a Glória de Deus. 1. ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 146.

Marcelo Pantoja é aluno do Seminário Martin Bucer e graduando em Ciências Econômicas pela Universidade Federal de Ouro Preto. Apaixonado por cinema, quadrinhos e literatura ficcional.
Escreveu alguns ensaios para o Site Folkdaworld. Serve como seminarista na Igreja Batista Histórica, em Conselheiro Lafaiete - MG.

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