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Martin Luther King Jr.

À medida que a nova homilética[1] se desenvolvia, a pregação afro-americana tornava-se mais amplamente reconhecida na cultura como um todo, em parte por meio do rádio e da televisão. Pregadores como Jim Forbes, da Riverside Church, em Nova York, levaram consigo a tradição negra para congregações de alta posição social, em grande parte compostas de pessoas brancas. Nem toda pregação afro-americana é igual. Ela é diversificada e, como qualquer pregação, não é uniformemente excelente, mas muitas pessoas consideram que certas expressões dela refletem uma tradição oral que está entre as melhores de hoje. Por meio da internet, ela é agora conhecida em todo o mundo. Baseia-se nas suas origens africanas, nas parábolas da África Ocidental,[2] em uma forte tradição de pregações populares e orais (não escritas), em cânticos evangélicos e spiritual songs e em experiências de escravidão, segregação e opressão racial. Partilha da mesma história que a da pregação branca, particularmente dos sermões expositivos e propositivos. Por sua vez, teve impacto e foi influenciada pela nova homilética.

1. Muitos pregadores afro-americanos nunca perderam a arte de contar histórias que a nova homilética trabalhou para reviver. A cultura negra de contação de histórias não só recontava historias bíblicas em linguagem e imagens vívidas, mas também fazia isso de memória ou sem notas, e as encenava com um uso dramático de voz e gestos. Henry Mitchell defendia o ato de tornar-se o personagem bíblico, apresentando os eventos como uma “testemunha ocular” com grande atenção aos detalhes.[3] A pregação desse tipo envolve a congregação na narrativa — a narrativa torna-se pessoal, da mesma maneira que os escravos na América sabiam que, na Bíblia, eles eram Israel no Egito, e o faraó vivia na casa grande da fazenda. John Jaspers, Harriet A. Baker e Howard Thurman tornaram-se modelos de pregação com imaginação, profundidade, coragem e vitalidade. As descrições que Ella Pearson Mitchell faz dos personagens bíblicos nas histórias muitas vezes obedeciam ao seguinte padrão: como as coisas eram, o que deu errado e como a situação se reverteu.[4] Frank A. Thomas identifica princípios compartilhados tanto por Aristóteles quanto por The homiletical plot[5] [O enredo homilético] de Eugene Lowry em seu esboço para sermões: situação, complicação, resolução.[6]

2. A pregação afro-americana muitas vezes tem uma musicalidade que inspira o jazz, o blues, o gospel, o rock ‘n’ roll, a Motown, o hip-hop e o rap, e também ecoa esses estilos musicais. Essa musicalidade envolve entonação, isto é, a diminuição e a elevação da voz, e o chamado e a reação, além daquilo que é designado sintonizar, clamar, cantar, gemer ou gritar. Essa musicalidade está ligada ao papel do Espirito, como ficou claro no relato de Jarena Lee (1783-1864) do que acontecia quando ela pregava: “um impacto maravilhoso do poder de Deus era sentido, demonstrado em toda parte por gemidos, suspiros e altos e felizes améns. Eu me sentia como se fosse ajudada pelo alto. Minha língua se soltava, a mulher gaga falava fluentemente; o amor por Deus e seu serviço queimava como uma chama veemente dentro de mim — seu nome era glorificado entre as pessoas”.[7] Em 1926, James Weldon Johnson chamou a atenção para a música em sua coleção de sermões negros populares, God’s trombones,[8] seguida mais recentemente por Teresa Fry Brown, Weary throats and new song,[9] e Kirk Byron Jones, The jazz of preaching.[10] O especialista em homilética Eugene Lowry, que é um homem branco, fez comparações entre os sermões da nova homilética e o jazz em várias apresentações de piano nas reuniões anuais da Academia de Homilética na década de 1990, escrevendo sobre isso em seu livro The homiletical beat: why all sermons are narrative [O ritmo homilético: por que todos os sermões são narrativa].[11]

3. Associadas à música estão a poesia e a sofisticação retórica da pregação afro-americana, como no discurso “Eu tenho um sonho” de Martin Luther King Jr. no Monumento a Washington. A linguagem é concreta, visual, sensorial, vigorosa, melódica e memorável. A nova homilética tem recomendado a seus pregadores muitas dessas características de linguagem para evitar que [os sermões] pareçam um artigo acadêmico.

4. A pregação afro-americana é contextual. Leva a sério as situações específicas da comunidade negra, retratando-a como é e descobrindo na Bíblia um mandato para a prática da justiça social. O movimento pelos direitos civis despertou muitos pregadores eurocêntricos para histórias de injustiça e ódio raciais que haviam sido silenciadas anteriormente. Muito da pregação afro-americana continua a exemplificar como fé e devoção cristãs podem ser efetivamente combinadas com responsabilidade cristã e justiça social — quando para muitas igrejas essa é uma questão de escolher entre uma e outra.

5. E teológica, pois Deus está no centro do sermão. Henry H. Mitchell identificou a celebração como o clímax apaixonado e edificante de muitos sermões afro-americanos. A celebração concentra-se nos atos salvíficos de Deus: “Somente verdades positivas sobre Deus por meio de Cristo curam e empoderam, produzindo grande alegria e louvor”.[12] Mitchell continua: “A primeira pessoa a entrar nas águas do êxtase deveria ser o comunicador das boas-novas”.[13] Ele apresenta a celebração como algo para todos os pregadores imitarem de maneira adequada às próprias culturas e tradições. As congregações, segundo Mitchell, precisam sentir algo, precisam sentir que “fazem o que celebram”.[14] Frank A. Thomas manteve sua ênfase em celebrar Deus.[15] Warren H. Stewart Sr., no primeiro livro sobre hermenêutica negra para o púlpito (1984), sustentava que, na tradição negra, Deus era “o ponto de partida”.[16] Cleophus J. LaRue ressaltou a ação de Deus como “o centro da pregação negra” — as pessoas esperam “ser asseguradas e reasseguradas de que Deus agiu e agirá por elas e para sua salvação”.[17] Recentemente, Gennifer Benjamin Brooks ressaltou a importância de pregar a graça, mesmo com base em textos dificeis.[18]

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6. Muito da pregação afro-americana encontra-se na tradição oral, sem manuscrito. Muito da pregação dos brancos ficou presa à página, no movimento para a educação pública no século 19, e agora luta para se libertar dela. Com a segregação, negaram-se às comunidades afro-americanas oportunidades educacionais, e o impacto negativo da escrita pode ter sido menor, por uma ironia cruel. Os cultos e sermões afro-americanos tendem a ser mais longos que os eurocêntricos, e exigem dons orais alentados. Pregadores demonstram mediante a pratica frequente que as regras para o discurso oral nem sempre são as mesmas que as da página escrita. Um tema único e importante para ambos. No entanto, os pregadores treinados para escrever artigos acadêmicos devem desaprender algumas regras de redação que atrapalham a pregação, como “não repetir, citar apenas os fatos, eliminar detalhes, não se estender em situações específicas, eliminar a descrição, evitar sentimentos e não registrar conversas”.

Os pregadores afro-americanos foram fundamentais em ajudar a moldar a nova homilética, mesmo quando já praticavam muitas coisas ensinadas por ela e adotavam alguns de seus outros ensinamentos.

_______________

[1] Nota do editor: Segundo o próprio Paul Scott Wilson explica anteriormente no livro, “A nova homilética é uma escola inovadora de pregação que começou na década de 1950 e adotou uma abordagem holística para a pregação. Adotou um entendimento que integrava de forma orgânica imaginação, linguagem, metáfora, narrativa, imagem, atuação, a Palavra como evento, aprendizado indutivo, autoridade horizontal, contexto social, justiça, transformação e conceitos relacionados. Nas décadas subsequentes, a mudança de entendimento influenciou a pregação em todo o espectro teológico. A maior parte da inovação foi concluída por volta de 2008. […] O valor da nova homilética continua em nossos dias à medida que eruditos e pregadores apropriam-se de seus ensinamentos e, eventualmente, livros são publicados em defesa desse movimento. Isso torna a pregação experiencial.” (“As quatro páginas do sermão: um guia para a pregação bíblica”, Ed. Vida Nova, p. 28).

[2] Mitchell, The recovery of preaching, p. 46.

[3] Ibidem, p. 84-5.

[4] Veja a seção sobre Ella Pearson Mitchell em Allen, Patterns of preaching, p. 124-30.

[5] Eugene Lowry, The homiletical plot: the sermon as narrative art form (Atlanta: John Knox, 1980).

[6] Frank A. Thomas, They like to never quit praisin’ God: the role of celebration in preaching (Cleveland: United Church, 1997), p. 52-5.

[7] Jarena Lee, “My call to preach the gospel”, in: Richard Lischer, org., The company of preacher: wisdom on preaching, Augustine to present (Grand Rapids: Eerdmans, 2002), p. 82.

[8] James Weldon Johnson, God’s trombones: seven negro sermons in verse (New York: Penguin, 1927).

[9] Teresa Fry Brown, Weary throats and new song: black women proclaiming God’s Word (Nashville: Abingdon, 2003).

[10] Kirk Byron Jones, The jazz of preaching (Nashville: Abingdon, 2004).

[11] Eugene L. Lowry, The homiletical beat: why all sermons are narrative (Nashville: Abingdon, 2012).

[12] Henry H. Mitchell, Preaching as celebration and experience (Nashville: Abingdon, 1990), p. 63.

[13] Ibidem, p. 68.

[14] Ibidem, p. 62.

[15] Frank A. Thomas, They like to never quit praisin’ God (Cleveland: Pilgrim, 1997).

[16] Warren H. Stewart Sr., Interpreting God’s Word in black preaching (Valley Forge: Judson, 1984), p. 13-24.

[17] Cleophus J. LaRue, The heart of black preaching (Louisville: Westminster John Knox, 2000), p. 69.

[18] Gennifer Benjamin Brooks, Unexpected grace: preaching good news from difficult texts (Cleveland: Pilgrim, 2012).

Trecho extraído e adaptado da obra “As quatro páginas do sermão: um guia para a pregação bíblica”, de Paul Scott Wilson, publicada por Vida Nova: São Paulo, 2020, pp. 33-37. Traduzido por Adrien Bausells e Tiago Abdalla Neto. Publicado no site Tuporém com permissão.

Paul Scott Wilson é professor de Homilética na Emmanuel College, faculdade de teologia da Universidade de Toronto e um dos mais respeitados especialistas em homilética da América do Norte. Foi organizador do "The new interpreter's handbook of preaching" e autor de diversos livros, entre os quais "The practice of preaching", "Imagination of the heart e God sense: reading the Bible for preaching".

Pregar não é tarefa simples e envolve uma série de considerações. Ciente dos desafios da pregação, Paul Scott Wilson oferece orientações preciosas para a preparação do sermão pelo método simples e extremamente útil que ele chama de "quatro páginas".

Página 1: Apresenta o problema ou conflito enfrentado pelo autor bíblico e seu público original.

Página 2: Analisa conflitos semelhantes em nosso próprio tempo.

Página 3: Redireciona nossa atenção à Bíblia, para assim identificar como Deus estava em ação no contexto original do livro canônico.

Página 4: Aponta para a ação de Deus em nosso mundo hoje.

Esta edição ampliada e revisada guia os leitores através do processo de preparação do sermão com o objetivo de compor mensagens que desafiam e trazem esperança, concentrando-se mais em Deus do que nos homens.

Publicado por Vida Nova.

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