Até quando te esquecerás de mim, SENHOR? Para sempre? Até quando esconderás de mim o teu rosto? (Salmo 13.1)
[…] Os salmos de lamentação ensinam-nos a orar em meio a nossos conflitos e contradições interiores. […] Eles nos permitem sacudir os punhos diante de Deus num momento, para nos quebrantar em louvor logo depois.
Richard Foster, Oração: O Refúgio da Alma
Num ano particularmente difícil, encontrei nos Salmos de lamentação um vocabulário com que posso articular meus sentimentos. Tristeza, medo, sensação de desamparo, tudo isso está presente nesses salmos. Uma queixa, em especial, aparece repetidas vezes: ao que tudo indica, Deus ensurdeceu. É libertador ver como os salmistas, com toda ousadia e sinceridade, derramam o coração diante de Deus.
Às vezes, para a nossa sensibilidade contemporânea, algumas palavras ditas nesses salmos soam como se flertassem com a blasfêmia. Contudo, é bom lembrar que a grande diferença entre o lamento e a murmuração se encontra justamente no destinatário de nossas queixas – o lamento é feito a Deus; a murmuração é feita aos homens. O lamento reconhece a transcendência; a murmuração está presa à imanência.
O crítico literário canadense Northop Frye ficou conhecido por enfatizar a importância de conhecer as Escrituras Sagradas para compreender a literatura ocidental. Leland Ryken, professor de literatura no Wheaton College e um dos principais estudiosos de literatura no meio reformado, há anos vem enfatizando a necessidade de conhecer literatura e os gêneros literários como forma de aprofundar a compreensão das Escrituras. Os dois são como que complementares: enquanto Frye ensina a importância da Bíblia a estudantes de literatura, Ryken ensina a importância da literatura aos estudantes da Bíblia. Em grande medida, a leitura que fiz do poema Sofrimento, de Gonçalves Dias, é iluminada pelas lições destes dois autores.
Não há brasileiro que não conheça algo do poeta maranhense e autor da Canção do Exílio. Canto do Guerreiro, Canto do Piaga e outros versos célebres figuram em antologias e livros didáticos de todos os níveis de ensino. Mesmo quem jamais esteve na escola já ouviu ao menos os versos emprestados ao hino nacional. Para quem não sabe, os versos “nossos bosques têm mais vida” e “nossa vida [em teu seio] mais amores” são citações da Canção do Exílio.[1]
Os compêndios de história da literatura apresentam Gonçalves Dias como poeta romântico, nacionalista e indianista. Alguns também mencionam que escreveu poemas de natureza religiosa e mística – com pouco ou nenhum destaque para esses poemas. Como, em geral, são poucos os que se dão o trabalho de ler a obra do poeta, ficamos com a impressão de que os tais poemas religiosos são mesmo periféricos e, portanto, indignos de atenção.
Ledo engano. Bastam alguns exemplos para vermos o vigor destes poemas e para reconhecermos que há neles profunda intertextualidade com o texto bíblico. Vejamos:
Ideia de Deus
À voz de Jeová infindos mundos
Se formaram do nada;
Rasgou-se o horror das trevas, fez-se o dia,
E a noite foi criada.
Luziu no espaço a lua! sobre a terra
Rouqueja o mar raivoso,
E as esferas nos céus ergueram hinos
Ao Deus prodigioso.
Hino de amor a criação, que soa
Eternal, incessante,
Da noite no remanso, no ruído
Do dia cintilante!
Romper d’Alva
[…]
O arvoredo nessa língua
Que diz, por que assim sussurra?
Que diz o cantar das aves?
Que diz o mar que murmura?
– Dizem um nome sublime,
O nome do que é Senhor,
Um nome que os anjos dizem,
O nome do Criador.
Tão bem eu, Senhor, direi
Teu nome – do coração,
E ajuntarei o meu hino
Ao hino da criação.
Te Deum
[…]
E o arcanjo forte, e o serafim sem mancha,
E o coro dos profetas, e dos mártires
A turba eleita – a ti, Senhor, proclamam,
Senhor Deus Sabaot, três vezes grande.
São meros fragmentos, mas espero que despertem o interesse por esta faceta religiosa do poeta. Vamos nos deter agora à análise do poema Sofrimento, cujo conteúdo pode surpreender-nos (a mim surpreendeu muito). Leiamos o texto:
Sofrimento
1 Meu Deus, Senhor meu Deus, o que há no mundo
Que não seja sofrer?
O homem nasce, e vive um só instante,
E sofre até morrer!
5 A flor ao menos, nesse breve espaço
Do seu doce viver,
Encanta os ares com celeste aroma,
Querida até morrer.
9 É breve o romper d’alva, mas ao menos
Traz consigo prazer;
E o homem nasce e vive um só instante:
E sofre até morrer!
13 Meu peito de gemer já está cansado,
Meus olhos de chorar;
E eu sofro ainda, e já não posso alívio
Sequer no pranto achar!
17 Já farto de viver, em meia vida,
Quebrado pela dor,
Meus anos hei passado, uns após outros,
Sem paz e sem amor.
21 O amor que eu tanto amava do imo peito,
Que nunca pude achar,
Que embalde procurei, na flor, na planta,
No prado, e terra, e mar!
25 E agora o que sou eu? – Pálido espectro,
Que da campa fugiu;
Flor ceifada em botão; imagem triste
De um ente que existiu…
29 Não escutes, meu Deus, esta blasfêmia;
Perdão, Senhor, perdão!
Minha alma sinto ainda, – sinto, escuto
Bater-me o coração.
33 Quando roja meu corpo sobre a terra,
Quando me aflige a dor,
Minha alma aos céus se eleva, como o incenso,
Como o aroma da flor.
37 E eu bendigo o teu nome eterno e santo,
Bendigo a minha dor,
Que vai além da terra aos céus infindos
Prender-me ao criador.
41 Bendigo o nome teu, que uma outra vida
Me fez descortinar,
Uma outra vida, onde não há só trevas,
E nem há só penar.
Antes de avançar na leitura deste comentário, releia o texto, de preferência em voz alta, procurando perceber a mudança de tom que repentinamente se manifesta. Você é capaz de sentir a sinceridade do poeta em seu lamento? A dor, a aflição? Consegue perceber, também, o seu arrependimento e seu hino de louvor a Deus? Você consegue reconhecer no poema algum possível diálogo com as Escrituras?
O fato é que o texto segue rigorosamente a estrutura de um salmo de lamentação. Não sei dizer se isto se deu como objetivo deliberado, se foi produto inconsciente da educação que recebeu – durante a juventude, em sua ida a Portugal, Gonçalves Dias ficou abrigado na casa de um padre[2] – ou se foi mera coincidência. Qualquer que seja o caso, comparemos os versos do poeta brasileiro com o Salmo 13.
Até quando, Senhor? Esquecer-te-ás de mim para sempre? Até quando ocultarás de mim o rosto?
Até quando estarei eu relutando dentro de minha alma, com tristeza no coração cada dia? Até quando se erguerá contra mim o meu inimigo?
Atenta para mim, responde-me, Senhor, Deus meu! Ilumina-me os olhos, para que eu não durma o sono da morte;
para que não diga o meu inimigo: Prevaleci contra ele; e não se regozijem os meus adversários, vindo eu a vacilar.
No tocante a mim, confio na tua graça; regozije-se o meu coração na tua salvação.
Cantarei ao Senhor, porquanto me tem feito muito bem.
A primeira caraterística comum aos dois textos e que nos salta aos olhos é que ambos dirigem a Deus a sua queixa pelo sofrimento enfrentado. A segunda é que ambos os textos terminam com um ato de adoração a Deus. E essas não são as únicas semelhanças.
Leland Ryken escreveu três livros utilíssimos a quem se interessa por compreender a natureza literária da Bíblia.[3] É a ele, portanto, que tomo como referência para avançar em nossa comparação. Em Para ler a Bíblia como literatura,[4] Ryken identifica cinco características de um salmo de lamentação:
1. Invocação ou clamor introdutório a Deus;
2. Lamento ou reclamação;
3. Petição ou súplica;
4. Declaração da confiança em Deus;
5. Voto de louvor a Deus.
Faça você mesmo o exercício de identificar essas cinco caraterísticas, por exemplo, nos salmos 13, 26 e 54. Há alguma variação na ordem dos elementos, mas todos estão lá. Faça o teste. Esforce-se para compreender aspectos comuns a textos diferentes.
Como estamos fazendo uma comparação direta entre o Sofrimento de Gonçalves Dias e o salmo 13, vamos destacar essas características ali.
A invocação se mostra no versículo 1: “Até quando, Senhor? Esquecer-te-ás de mim para sempre? Até quando ocultarás de mim o rosto?”
O lamento está no versículo 2: “Até quando estarei eu relutando dentro de minha alma, com tristeza no coração cada dia? Até quando se erguerá contra mim o meu inimigo?”
A petição está registrada nos versículos 3 e 4: “Atenta para mim, responde-me, Senhor, Deus meu! Ilumina-me os olhos, para que eu não durma o sono da morte; para que não diga o meu inimigo: Prevaleci contra ele; e não se regozijem os meus adversários, vindo eu a vacilar.”
O versículo 5 é a declaração da confiança em Deus: “No tocante a mim, confio na tua graça; regozije-se o meu coração na tua salvação.”
Por fim, no versículo 6, encontramos o voto de louvor: “Cantarei ao Senhor, porquanto me tem feito muito bem”.
Agora, daremos um passo um pouco mais ousado e procuraremos identificar no poema de Gonçalves Dias as mesmas características que Leland Ryken encontrou nos salmos de lamentação.
A invocação se mostra nos dois primeiros versos:
Meu Deus, Senhor meu Deus, o que há no mundo
Que não seja sofrer?
O lamento ou reclamação ocupa o trecho que vai do verso 3 ao verso 28:
O homem nasce, e vive um só instante,
E sofre até morrer!
A flor ao menos, nesse breve espaço
Do seu doce viver,
Encanta os ares com celeste aroma,
Querida até morrer.
É breve o romper d’alva, mas ao menos
Traz consigo prazer;
E o homem nasce e vive um só instante:
E sofre até morrer!
Meu peito de gemer já está cansado,
Meus olhos de chorar;
E eu sofro ainda, e já não posso alívio
Sequer no pranto achar!
Já farto de viver, em meia vida,
Quebrado pela dor,
Meus anos hei passado, uns após outros,
Sem paz e sem amor.
O amor que eu tanto amava do imo peito,
Que nunca pude achar,
Que embalde procurei, na flor, na planta,
No prado, e terra, e mar!
E agora o que sou eu? – Pálido espectro,
Que da campa fugiu;
Flor ceifada em botão; imagem triste
De um ente que existiu…
A súplica se mostra nos versos 29 e 30:
Não escutes, meu Deus, esta blasfêmia;
Perdão, Senhor, perdão!
A declaração da confiança em Deus vai dos versos 31 a 36.
Perdão, Senhor, perdão!
Minha alma sinto ainda, – sinto, escuto
Bater-me o coração.
Quando roja meu corpo sobre a terra,
Quando me aflige a dor,
Minha alma aos céus se eleva, como o incenso,
Como o aroma da flor.
E, na conclusão, o voto de louvor, presente nos versos 37 a 44.
E eu bendigo o teu nome eterno e santo,
Bendigo a minha dor,
Que vai além da terra aos céus infindos
Prender-me ao criador.
Bendigo o nome teu, que uma outra vida
Me fez descortinar,
Uma outra vida, onde não há só trevas,
E nem há só penar.
Surpreendente, não acham? É claro que o título “salmista maranhense” é apenas uma brincadeira; no entanto, convido-os a conhecer a obra deste poeta brasileiro de grande valor. Longe dos exercícios escolares, a leitura de poesia é um deleite – e, de quebra, pode enriquecer nosso repertório e nossas formas de adoração a Deus.
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[1] Duas análises admiráveis deste poema são: Aurélio Buarque de Holanda, “À margem da canção do exílio”. In: Território Lírico. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1958; e José Guilherme Merquior, “O poema do lá”. In: Razão do poema. São Paulo: É Realizações, 2013.
[2] Lúcia Miguel Pereira, A vida de Gonçalves Dias. Brasília-DF: Senado Federal, 2016, p. 49.
[3] Leland Ryken, Para ler a Bíblia como literatura. São Paulo: Cultura Cristã, 2017; Formas literárias da Bíblia. São Paulo: Cultura Cristã, 2017; Manual Bíblico Ryken. Rio de Janeiro: Central Gospel, 2013.
[4] Leland Ryken, Para ler a Bíblia como literatura. São Paulo: Cultura Cristã, 2017, p. 109.
William Campos da Cruz é tradutor, editor e revisor de textos. Já traduziu ao português autores como Hans Rookmaaker, Joe Rigney, Michael Reeves, Carl Trueman, R. J. Rushdoony, entre outros. É licenciado em Letras e membro da Igreja Batista da Palavra. |
1 Comments
Muito legal ver esse tipo de conteúdo. Auxilia a leitura tanto da bíblia quanto da literatura!