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16/maio/2022Por vezes, as pessoas perguntam: “Que relação tem Atenas (razão) com Jerusalém (fé)?”. A resposta implícita geralmente é “nada”. A meu ver, a resposta correta é “muito”, mas não tenho condições de defender essa afirmação aqui. De modo semelhante, muitas pessoas, especialmente muitos dos cientistas (talvez a maioria), perguntam: “Que relação tem a filosofia (especulação inútil) com a ciência (que obtém fatos objetivos acerca da realidade)?”. Mais uma vez, a resposta habitual é “nada”. Mas essa resposta não poderia estar mais distante da verdade. Ciência e filosofia interagiram e interagem entre si de várias maneiras que, no transcurso normal do ensino e da prática da ciência, infelizmente não são disponibilizadas para os próprios cientistas.
Concentrarei o foco em duas teses filosóficas que esclarecem maneiras pelas quais a filosofia é relevante para a ciência. Eis as duas teses, apresentadas de modo claro pelo filósofo George Bealer:
Desejo recomendar duas teses. (1) A autonomia da filosofia: entre as perguntas filosóficas fundamentais que podem ser respondidas por algum meio teórico tradicional, a maioria pode, em princípio, ser respondida pela investigação e argumentação filosóficas, sem depender substantivamente das ciências. (2) A autoridade da filosofia: na medida em que as ciências e a filosofia se propõem responder às mesmas perguntas filosóficas fundamentais, na maioria dos casos, a base que a ciência poderia, em princípio, fornecer para essas respostas não é tão forte quanto aquela que a filosofia poderia, em princípio, fornecer para suas próprias respostas. Havendo conflitos, portanto, na maioria dos casos a autoridade da filosofia pode, em princípio, ser maior.[1]
Para ilustrar de modo sucinto, a “autonomia da filosofia” diz respeito a áreas de investigação filosófica (e.g., discussões sobre objetos abstratos, diferentes intepretações de lógica modal, os méritos relativos da ética utilitária versus a ética da virtude) que se encontram inteiramente fora da competência da ciência. A “autoridade da filosofia” diz respeito a áreas que tanto a ciência como a filosofia investigam (e.g., a natureza do tempo, se entidades teóricas não observáveis de teorias científicas existem ou se são ficções úteis), nas quais, porém, os fatores filosóficos têm mais peso e sobrepujam os fatores científicos. A seguir, apresento exemplos-chave de ambas, a começar pelo princípio da autoridade.
1. Exemplos do princípio da autoridade
Primeiro exemplo: considerações de Stephen Hawking acerca do início do Universo. Nas últimas décadas, houve um espantoso reavivamento de um argumento a favor da existência de Deus com base no fato de que o Universo teve um início. Na verdade, o argumento (chamado argumento cosmológico “kalam”) existe há vários séculos, mas recebeu nova força e clareza em tempos recentes. Para nossos propósitos, há quatro argumentos a favor da ideia de que o Universo teve um início: a impossibilidade de um conjunto verdadeiramente infinito de entidades concretas, como eventos; a impossibilidade de passar por uma série verdadeiramente infinita de eventos por adição sucessiva; o modelo tradicional do Big Bang; e a segunda lei da termodinâmica. A maioria das pessoas que dizem que o Universo teve um início considera que os dois primeiros argumentos (filosóficos) têm mais peso do que os dois últimos argumentos (científicos) e, portanto, com base na pressuposição de que os argumentos a favor dessa afirmação e contra ela são, eles próprios, filosóficos, este parece ser um exemplo claro da tese de autoridade, segundo a qual a filosofia tem mais peso do que a ciência.
Segundo exemplo: considerações de Stephen Hawking sobre a ideia de que o Universo se originou do nada. Em Grand design, Hawking e seu coautor, Leonard Mlodinow, afirmam que a física quântica tornou supérflua a necessidade de um Criador.[2] Isso porque o Universo é capaz de “criar a si mesmo”, ou seja, veio a existir do nada.
Essa proposição abalou a fé de vários crentes, pois foi considerada o parecer de um cientista, aliás, de um dos mais eminentes cientistas de nossos tempos. Infelizmente, contudo, Hawking e Mlodinow podem ser grandes cientistas, mas são péssimos filósofos. Por quê? Porque seu conceito de “nada” não é o mesmo que o conceito filosófico, e o conceito filosófico é relevante para decidir se houve “necessidade” de um Criador. Para Hawking e Mlodinow, “nada” significa um vácuo quântico, que contém energia e está, ele próprio, situado no espaço. O Universo vem a existir espontaneamente como flutuação da energia no vácuo.
Infelizmente, é difícil considerar que isso signifique que o Universo veio a existir do nada! O conceito filosófico de nada é justamente de ausência total e completa de qualquer ser, o que abrange ausência de partículas, poderes causais, campos, propriedades e assim por diante. Levando em conta esse conceito de nada, torna-se óbvio que, necessariamente, algo não pode surgir do nada sem que tenha uma causa, pois não há nada de onde ele possa surgir! A proposição de Hawking/Mlodinow faz lembrar uma anedota: alguns cientistas vão até Deus e dizem que não precisam mais dele, pois agora são capazes de criar nova vida. Deus pede, então, que lhe mostrem sua nova descoberta. Os cientistas curvam-se e pegam um pouco de terra, mas, antes que prossigam, Deus os interrompe e diz: “Se não for pedir demais, providenciem a própria terra!”. De modo semelhante, se disséssemos que não precisamos mais de Deus porque o Universo pode vir do “nada” (isto é, de um vácuo quântico), a réplica apropriada de Deus seria: “Se não for pedir de mais, providenciem o próprio vácuo quântico!”.
Nesse exemplo, as considerações filosóficas têm mais peso do que as proposições científicas.
Terceiro exemplo: a origem da vida. Está em andamento, de longa data, uma discussão sobre a possibilidade ou a impossibilidade de descobrir uma explicação bem fundamentada e natural-científica para a origem da vida que não conte com a necessidade de intervenção divina nem mesmo com a descoberta de características de vida para as quais um designer inteligente seja a melhor explicação. E essa discussão tem, há um bom tempo, girado em torno de considerações científicas, como, por exemplo, a elevada improbabilidade de o acaso e a lei natural realizarem essa tarefa.
Alguns filósofos, contudo, resistem à ideia de uma explicação puramente naturalista e fisicalista da origem da vida. Para começar, os biólogos têm encontrado grande dificuldade em definir vida. Como observa Antonio Lazcano, pesquisador da origem da vida: “A vida é como a música; é possível descrevê-la, mas não defini-la”.[3] De acordo com Fazale Rana, os biólogos compilaram uma lista com cerca de cem definições distintas de vida.[4] Segundo os biólogos, algumas das características essenciais da vida são ter estabilidade, ter permanência e coerência biológicas; ser constituído de átomos, moléculas e células que obedeçam às leis da química e da física; ser constituído de uma natureza altamente homeostática; ter capacidade de nutrição, excreção e reprodução.
Contudo, tentativas científicas ou biológicas de definir a vida ou fornecer suas características essenciais fracassam porque, como muitos filósofos ressaltaram, “vida” é um predicado projetável unívoco. O que isso significa? Primeiro, que o termo “vida” é algo que predicamos a certas coisas, e não a outras. Segundo, que “vida” é um termo unívoco, e não equívoco; ou seja, significa a mesma coisa sempre que o empregamos. Dizer, portanto, que um cão, ou um ser humano, ou um peixe está vivo é usar o termo “vida” da mesma forma. Seres vivos distintos talvez vivam e sustentem a vida de maneiras distintas, fazendo uso de fatores distintos, mas todos estão “vivos”. Não temos uma definição de “vida” para um cão, outra para um ser humano e outra para um peixe. Se tivéssemos, a “vida” seria um predicado inepto, sobre o qual não teríamos a menor compreensão quando o aplicássemos a uma criatura recém-descoberta.
Por fim, a “vida” é algo projetável. Embora de início usemos o termo “vida” para seres vivos que conhecemos, também podemos empregá-lo para seres vivos que virão a ser descobertos, reais ou possíveis (e.g., vida no espaço sideral, unicórnios).
Surge, porém, um problema para as tentativas biológicas de definir ou caracterizar fundamentalmente a vida. A “vida” é univocamente predicável a almas desencarnadas depois da morte, a anjos e até mesmo a Deus. Ainda que nenhuma dessas coisas exista, sua existência é coerente e inteligível, e a projeção de “vida” para seres possivelmente vivos deve ser unívoca. Nenhuma dessas entidades, contudo, satisfaz todas as características físicas/biológicas de vida. Logo, de acordo com esse argumento, a vida em si não pode ser física, e jamais teremos uma explicação estritamente científica da vida ou de sua origem. Obter vida por meio do rearranjo de matéria significa obter algo (vida, que não é física) do nada (matéria bruta que não tem vida).
É interessante observar que muitos filósofos apresentaram novas evidências a favor desse argumento, ao afirmar, seguindo os biólogos, que os seres vivos são constituídos de informação. Contudo, fora umas poucas exceções, muitos filósofos (talvez a maioria) que trabalham nessa área afirmaram que informação é algo imaterial, mais fundamental para a realidade do que a matéria e, tendo em conta sua natureza, não pode haver nenhuma explicação material para a origem da informação (imaterial) e, portanto, para a origem da vida.[5]
2. Exemplos do princípio da autonomia
Primeiro exemplo: a natureza e a existência da consciência e da alma. Duvido que qualquer lista das questões pertinentes dentro de uma subdivisão da filosofia pudesse ser exaustiva. Ainda assim, é possível fornecer uma caracterização razoavelmente adequada dos temas prioritários ubíquos na literatura sobre a filosofia da mente. Esses temas costumam girar em torno de quatro famílias não relacionadas de questões, constituídas pelos seguintes tipos de perguntas representativas:
(1) Perguntas ontológicas. A que uma propriedade mental ou física é idêntica? A que um evento mental ou físico é idêntico? A que o possuidor das propriedades/eventos mentais é idêntico? O que é uma pessoa humana? De que maneira propriedades mentais estão relacionadas a eventos mentais (e.g., estes últimos exemplificam ou concretizam as primeiras?)? Existem essências (aristotélicas ou leibnizianas) e, em caso afirmativo, qual é a essência de um evento mental ou de uma pessoa humana?
(2) Perguntas epistemológicas. Como chegamos a ter conhecimento ou crenças justificadas a respeito de outras mentes e de nossa mente? Existe uma “ordem epistêmica” apropriada para o conhecimento em primeira pessoa da própria mente e em terceira pessoa de outras mentes? Ou seja, as informações que obtemos de nossa perspectiva em primeira pessoa, a respeito de nossos estados conscientes e de nosso ser, têm autoridade racional sobre tentativas em terceira pessoa feitas por outros de obter esse conhecimento, ou é o processo inverso?
(3) Perguntas semânticas. O que é significado? O que é uma entidade linguística e como ela está relacionada a um significado? O pensamento é passível de ser reduzido ao uso da linguagem ou é uma condição necessária para esse uso? De que maneira os termos em nosso vocabulário psicológico prático adquirem seu significado?
Os principais temas de segunda ordem da filosofia da mente giram em torno de um quarto conjunto de perguntas representativas:
(4) Perguntas metodológicas. Como devemos proceder na análise e na resolução das questões de primeira ordem que constituem a filosofia da mente? Qual é a ordem apropriada entre filosofia e ciência? Devemos adotar alguma forma de naturalismo filosófico, colocar de lado a chamada filosofia primeira e nos dedicar a temas na área da filosofia da mente, dentro de uma estrutura de nossas teorias empiricamente mais bem testadas e relevantes para esses temas? Qual é o papel dos experimentos de pensamento na filosofia da mente, e como o “ponto de vista em primeira pessoa” influencia a geração de materiais para a formulação desses experimentos de pensamento?
São perguntas desse tipo que constituem a estrutura subjacente da filosofia da mente. Por favor, leia a lista com cuidado. Fica evidente que essas não são, de maneira alguma, perguntas científicas; são filosóficas até o cerne e ilustram bem a tese da autonomia.
Segundo exemplo: Naturalismo metodológico, causalidade do agente e a natureza da ciência. Com respeito à definição da ciência ou à apresentação de suas características essenciais, essa tarefa pertence aos filósofos e historiadores da ciência, e não aos próprios cientistas. Isso não significa que cientistas e outros não possam fazer parte dessa discussão; apenas confirma que, quando participarem, estarão em grande medida lidando com questões filosóficas para as quais não são profissionalmente treinados.
O fato de que essas questões são filosóficas, e não, sobretudo, científicas pode ser observado a partir do seguinte: leia as argumentações e discussões relevantes e pergunte que experimento científico ou que procedimento científico se usaria para resolver a controvérsia sobre a natureza, a definição apropriada e os limites da ciência. Ou pegue o catálogo de qualquer faculdade e veja as descrições de cursos nos diferentes ramos da ciência. Você descobrirá que praticamente em lugar nenhum de um curso de bacharelado ou pós-graduação em qualquer ramo da ciência são discutidos os temas relevantes, exceto talvez na primeira semana do primeiro ano de química. De modo contrastante, há cursos inteiros de pós-graduação de história ou filosofia da ciência dedicados a definições de ciência e à delimitação de linhas divisórias entre a ciência e outros campos.
Em geral, os cientistas não estão devidamente preparados para extrair, a partir de dados científicos, conclusões metafísicas, epistemológicas ou morais. E o motivo é que a extração dessas conclusões é, em grande medida, um assunto filosófico, como procurei ilustrar acima. Caso essa ideia esteja correta, surge uma questão: “Se alguma suposta descoberta científica parece contradizer uma interpretação tradicional da Bíblia, e se ela contradisser modelos teológicos historicamente adotados e epistemicamente justificados, por que a pressa em aceitar um conceito revisionista da Bíblia e da teologia?”.
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[1] George Bealer, “On the possibility of philosophical knowledge”, in: James E. Tomberlin, org., Metaphysics, 1996, Philosophical Perspectives (Cambridge: Blackwell, 1996), vol. 10, p. 1.
[2] Stephen Hawking; Leonard Mlodinow, The grand design (New York: Bantam, 2010) [edição em português: O grande projeto: novas respostas para as questões definitivas da vida, tradução de Mônica Gagliotti Fortunato Friaça (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011)].
[3] Antonio Lazcano, “The transition from nonliving to living”, in: Stefan Bengston, org., Early life on Earth (New York: Columbia University Press, 1994), p. 61.
[4] Fazale Rana, Creating life in the lab (Grand Rapids: Baker, 2011), p. 24.
[5] Veja William Dembski, Being as communion (Burlington, Vermont: Ashgate, 2014), p. iv, xii, xiv, 75, 77.
Trecho extraído e adaptado da obra “Evolução teísta: uma crítica científica, filosófica e teológica“, editado por J. P. Moreland, Stephen C. Meyer, Christopher Shaw, Ann Gauger e Wayne Grudem, publicada por Vida Nova: São Paulo, 2022, p. 556-567. Traduzido por Susana Klassen. Publicado no site Tuporém com permissão.
Muitos cristãos proeminentes afirmam que a igreja cristã precisa se render à teoria evolutiva contemporânea e, portanto, modificar ideias bíblicas tradicionais a respeito da criação da vida. Defendem que Deus usou, embora de modo indetectável, mecanismos evolutivos para produzir todas as formas de vida. Neste livro, mais de vinte cientistas, filósofos e teólogos renomados da Europa e da América do Norte refutam essa proposta e documentam problemas evidenciais, lógicos e teológicos da evolução teísta, o que faz da presente obra a crítica mais abrangente produzida até hoje sobre o tema. Publicado por Vida Nova. |
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