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Do primeiro século em diante, os cristãos tiveram conhecimento de relatos que podiam ser conectados a testemunhas oculares de Jesus como sendo singularmente autoritativas. A lógica desse padrão era simples: As pessoas que conheciam a verdade sobre Jesus provavelmente eram testemunhas que viram e se encontraram com Jesus pessoalmente ou pessoas próximas dessas testemunhas. Então, apesar de os cristãos discutirem por algum tempo sobre a autoridade de certos escritos, foi algo bem maior do que maquinações políticas que direcionou essas decisões. O objetivo deles era determinar quais livros podiam estar claramente ligados às testemunhas que viram a Jesus. Com isso em mente, vamos olhar para alguns exemplos da vida real de como alguns escritos acabaram excluídos das coletâneas de livros autênticos das igrejas.

O Evangelho da cruz falante:

Em 199 d.C, um pastor chamado Serapião se tornou o pastor líder da principal igreja da Síria, a igreja em Antioquia. Como pastor líder em Antioquia, Serapião era responsável não apenas pela sua própria igreja, mas também por diversas congregações menores na área. Uma dessas congregações se reunia na Vila de Rhossus.

No período de alguns meses, Serapião ouviu rumores de que a igreja de Rhossus estava à beira do abismo. Serapião, então, se viu marchando pelo litoral pedregoso que o levou ao norte de Antioquia, em direção a Rhossus. Ao chegar em Rhossus, descobriu que alguns membros da igreja tinham problemas com o evangelho que estava “assinado com o nome de Pedro”. Ao ouvir isto, Serapião respondeu “Se isso é tudo que ameaça produzir ressentimentos entre vocês, deixe-o ser lido.” Afinal, se essa releitura do ministério de Jesus veio de Simão Pedro, certamente representava uma testemunha ocular!

Mas a autoridade desse texto não era tão clara como Serapião pensava. Algum tempo depois alguém levou para o pastor uma cópia desse Evangelho de Pedro. Ao ler a cópia, Serapião reconheceu que havia cometido um erro. Claro, a maior parte do Evangelho de Pedro refletia as mesmas histórias que estavam escritas nos livros das estantes da Igreja. Na verdade, muito pouco dos manuscritos sobreviventes do Evangelho de Pedro contradizia diretamente alguma coisa nos Evangelhos do Novo Testamento. Mesmo assim, Serapião viu que esse livro claramente não era produto da pregação de Simão Pedro. Havia indicações no Evangelho de Pedro a respeito da origem de uma crença conhecida como “Docetismo”, a qual surgiu apenas algumas décadas após a morte de Pedro. Essa crença – originária da palavra Grega dokein (“parecer”) – afirmava que Jesus não era totalmente humano, mas que ele apenas parecia humano.

A distorção mais estranha no Evangelho de Pedro ocorre quando Jesus irrompe da tumba. Aos olhos dos soldados, Jesus parece tão alto quanto o céu e, atrás de Jesus, eles vislumbram o que parece ser a imagem de uma cruz gigante. Uma voz troveja do céu, dizendo: “Você já proclamou para aqueles que estão dormindo?” A esta pergunta, a cruz responde: “Sim.”

Depois de ler o Evangelho de Pedro, Serapião envia uma carta à igreja de Rhossus, revertendo sua decisão anterior e declarando “Eu estou me apressando em vê-los; esperem ver-me em breve… A maioria das coisas [neste Evangelho] são palavras certas do Salvador, mas algumas dessas coisas são falsas – e estas nós vamos apontar a vocês.”

Então, por que Serapião de Antioquia rejeitou o Evangelho de Pedro? Serapião tinha em mãos o testemunho de pessoas que presenciaram os eventos “nos escritos dados a nós”. Nesses escritos provavelmente estavam incluídas as cartas de Paulo e um ou mais dos quatro Evangelhos do Novo Testamento — documentos que histórias orais robustas e ininterruptas há muito os ligavam às testemunhas que viram ou a pessoas próximas a essas testemunhas.

Ante um escrito que alegava vir de Simão Pedro, Serapião comparou seus ensinamentos com esses “escritos dados a nós” e achou inconsistências entre o Evangelho de Pedro e a “verdadeira Palavra do Salvador.” Como resultado, Serapião chegou à conclusão lógica de que Simão Pedro – uma testemunha que viu a Jesus, de acordo com o testemunho nas cartas de Paulo, com os Evangelhos mais antigos e até mesmo com textos fora do Novo Testamento — não poderia ser a fonte do chamado Evangelho de Pedro. O objetivo de Serapião era o mesmo dos outros cristãos espalhados pelo mundo: Ele queria preservar as testemunhas que viram e que falaram sobre Jesus. Quando ele examinou o Evangelho de Pedro, porém, sua conclusão foi que, pelo fato desse documento contestado ser inconsistente com os relatos incontestáveis de testemunhas oculares, o Evangelho de Pedro não representava de forma confiável o relato dessas testemunhas.

Conclusão, Serapião estava certo: a linguagem e os pensamentos padrões do Evangelho de Pedro convenceram a maioria dos estudiosos de que o livro foi escrito na primeira metade do segundo século — uma geração após a morte de Pedro, no tempo em que a heresia do Docetismo estava se espalhando.

Apesar da rejeição do livro por parte de Serapião, o Evangelho de Pedro continuou a ser uma leitura popular entre os cristãos por diversos séculos. Na verdade, existem fragmentos mais antigos do Evangelho de Pedro do que do Evangelho de Marcos. Ainda sim, a não ser por aqueles meses na igreja de Rhossus, a evidência é limitada no sentido de sugerir que o Evangelho de Pedro já foi considerado um relato autêntico sobre a vida de Jesus.

Como o amor por Paulo custou a ordenação de um presbítero

Por volta do mesmo período em que Serapião estava examinando o Evangelho de Pedro, um debate sobre o batismo surgiu em uma congregação no Norte da África. Alguns membros da igreja apelaram para alguns escritos chamados Atos de Paulo – um documento que alguns cristãos parecem ter aceitado como sendo inspirado. Atos de Paulo é um texto fascinante. De acordo com esse documento, ser cristão inclui não apenas fé em Jesus, mas também abstinência sexual. Além disso, ao final de Atos de Paulo, o apóstolo Paulo batiza um leão.

Foi um presbítero chamado Tertuliano de Cartago que relatou algumas das razões pelas quais os Atos de Paulo nunca se tornou um texto autoritativo. Quando Tertuliano ouviu que alguns membros de igrejas estavam recorrendo aos Atos de Paulo, ele parece ter feito alguma pesquisa sobre a origem do livro. Durante a pesquisa, ele descobriu alguns fatos que colocaram em dúvida a confiança no livro.

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O que Tertuliano descobriu foi que o autor de Atos de Paulo não era nem um apóstolo e muito menos tinha qualquer ligação com qualquer apóstolo. O autor serviu como um presbítero em uma igreja na Ásia meio século depois do martírio de Paulo. Quando questionado, o presbítero admitiu que havia inventado as histórias “por amor a Paulo”. Uma vez que as igrejas na área ficaram sabendo que essas histórias eram fictícias, forçaram o presbítero a deixar seu cargo. Isso certamente levou Tertuliano a rejeitar os Atos de Paulo por ser “um escrito que circulava falsamente sob o nome de Paulo.”

O que mais me interessa sobre os eventos ocorridos é como os cristãos daquela época queriam ter certeza de que os textos oficiais representavam veracidade histórica. Realmente importava para esses homens e mulheres que os fatos históricos formassem os fundamentos de seus livros sagrados. Se os cristãos do segundo século não estivessem preocupados em preservar as testemunhas oculares que presenciaram a verdade, por que esse presbítero — que não queria mais do que honrar a memória do nome de Paulo com alguns contos superfantásticos — acabou envergonhado e removido do presbitério?

Quem escolheu os livros?

Então o que esses textos nos dizem sobre certos textos antigos que se tornaram autênticos entre os cristãos? Até mesmo entre os cristãos primitivos, testemunhos que podiam ser ligados às testemunhas que viram o Senhor ressurreto eram singularmente autoritativos.  É por isso que as supostas “Escrituras Perdidas” foram perdidas — ou, mais precisamente, é por isso que elas não foram preservadas com as Escrituras que aparecem hoje no seu Novo Testamento.

Não apenas o Evangelho de Pedro, mas também outros registros pós-apostólicos da vida e dos ensinamentos de Jesus — Evangelho de Judas, Evangelho de Maria, Evangelho de Filipe, Evangelho dos Egípcios, Evangelho do Salvador, Evangelho da Verdade e diversos outros — emergiram no segundo e no terceiro século, bem depois que os últimos apóstolos morreram. É verdade que algumas partes do Evangelho de Pedro, assim como do Evangelho de Tomé — outro evangelho do segundo século que foi falsamente atribuído a um apóstolo — provavelmente vêm de testemunhos muito antigos sobre Jesus. Mas essas poucas tradições do primeiro século foram fortemente misturadas com algumas adições do segundo século que não tinham fundamento em nenhum depoimento das testemunhas oculares. Na maioria dos casos, os cristãos primitivos sabiam que esses documentos apareceram em um período muito tarde para representar os testemunhos das pessoas que viram a Jesus. Então, os preservadores primários desses textos tardios foram as seitas — como os gnósticos —, as quais focavam mais na interpretação mística dos ensinamentos de Jesus do que nos eventos históricos de sua vida.

Por que você não deve atirar no cânon ainda

Eu não quero deixá-los com a falsa impressão de que os cristãos resolveram todo o debate sobre suas Escrituras sagradas de maneira rápida e fácil. Antes do quinto século, quando diferentes congregações listavam as Escrituras que elas tratavam como autênticos testemunhos sobre Jesus, os resultados foram raramente idênticos.

Contudo, antes que você fique muito preocupado com o que poderia ser diferente se os cristãos primitivos tivessem concluído que o seu livro favorito do Novo Testamento não se qualificava para o cânon, considere com cuidado o grandioso grau de concordância entre todas as listagens antigas dos textos oficiais. Já no segundo século d.C. havia pelo menos dezenove textos que nunca foram questionados — e esses escritos refletiam as verdades mais essenciais sobre Jesus. Desde o começo, cristãos adotaram os quatro Evangelhos, Atos, as cartas de Paulo e pelo menos uma das cartas de João. Mesmo que esses livros fossem os únicos documentos que representassem o relato de testemunhas oculares a respeito de Jesus, cada verdade vital da fé cristã continuaria completamente intacta.

Argumentos sobre alguns escritos — incluindo as cartas de Pedro, segunda e terceira cartas de João, as cartas de Tiago e Judas e Apocalipse — persistiram até o segundo século. Por volta do final do quarto século, cristãos estavam chegando a um acordo generalizado sobre os vinte e sete livros – escritos que estavam baseados nos relatos de testemunhas oculares a respeito de Jesus. A carta de Atanásio em 367 d.C. refletiu esse consenso.  Vários anos se passaram entre os dias dos apóstolos e o tempo em que os cristãos concordaram sobre cada texto do Novo Testamento. E, ainda, um padrão definitivo dirigiu esse processo — a convicção de que esses escritos deviam ser enraizados em relatos confiáveis de testemunhas oculares. Além do mais, apesar de contínuas discordâncias sobre alguns escritos, fortes concordâncias sobre vinte livros ou mais existem pelo menos desde o começo do segundo século. Como resultado, existe toda a razão para acreditar que o testemunho que você encontra no Novo Testamento veio de homens e mulheres que seguiram a Jesus pessoalmente e que transmitiram suas experiências às gerações ainda por vir.

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Para referências de citações e maiores informações na autenticidade do Novo Testamento, veja meu livro Misquoting Truth

Traduzido por Sarah Craddock e revisado por Maria Gabriela Pileggi.

Texto original aqui.

Timothy Paul Jones é vice-presidente associado e professor C. Edwin Gheens de ministério cristão no Southern Baptist Theological Seminary. Possui um BA em estudos bíblicos pelo Manhattan Christian College, um MDiv pela Midwestern Baptist Theological Seminary e um PhD pela Southern Baptist Theological Seminary.

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