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A maioria da população do mundo subscreve e aceita alguma forma de teísmo. Por quê? Por que acreditam que há uma pessoa como Deus, que é todo-poderoso, sumamente sábio, totalmente bom e que criou o mundo? Como pensam que sabem essas coisas? Como sabem que há uma pessoa como Deus? Como sabem que ele é todo-poderoso, sumamente sábio e totalmente bom? Como sabem que criou o mundo? Bem, é claro que há as famosas provas teístas, os argumentos clássicos a favor da existência de Deus. Por exemplo, há os três grandes argumentos tradicionais: o argumento cosmológico ou da primeira causa, remontando ao mundo antigo e, em particular, a Aristóteles; o chamado argumento ontológico, formulado primeiro por Anselmo da Cantuária no século XI; e o argumento do desígnio evidente, por vezes também denominado argumento teleológico. Apesar de as opiniões variarem muito quanto à sua cogência, cada um desses argumentos é de grande interesse, e todos são objeto de intensa discussão contemporânea; cada um tem também defensores contemporâneos.[1] Além dos três grandes argumentos tradicionais, há um grande número de outros argumentos teístas – argumentos baseados na natureza das proposições, dos números, das propriedades, das cores e sabores, das contrafatuais, e até alguns argumentos baseados na natureza do mal.[2] Nenhum desses argumentos, nem sequer todos, tomados em conjunto, penso, podem adequadamente se denominar provas, se por prova se entender um argumento que não é possível rejeitar sem irracionalidade. Claro que isso não quer dizer grande coisa; não há argumentos com esse nível de exigência em grande parte de qualquer área da filosofia.

Todavia, os crentes em Deus não se têm baseado tradicionalmente em provas ou argumentos para a sua crença; a maior parte dos crentes do mundo, suponho, mal ouviu falar desses argumentos teístas. Então, por que acreditam? Essa pergunta parece pressupor que o modo natural ou habitual de acreditar em Deus seria com base em provas ou argumentos. Porém, por que pensar tal coisa? A maior parte do que acreditamos não acreditamos com base em provas ou argumentos; consequentemente, por que pensar que só podemos acreditar apropriadamente em Deus, ou no núcleo da fé cristã, com base em argumentos? Por outro lado, se os teístas não acreditam em Deus com base na argumentação, qual é a base da sua crença? Se não há base, não será a crença em Deus arbitrária?

Para responder, temos de ascender (ou descender) à epistemologia. Pensemos brevemente sobre toda a nossa intuição cognitiva, o conjunto total de faculdades cognitivas, o conjunto das faculdades ou processos pelos quais formamos e rejeitamos crenças, as revemos ou mudamos. A partir de uma posição natural, ou pré-filosófica, essas faculdades parecem ser concebidas para nos permitir chegar a crenças verdadeiras com respeito a grande número de proposições – sobre o nosso meio ambiente imediato (pela percepção), sobre a nossa vida interior (introspecção), sobre o nosso passado (memória), sobre os pensamentos e experiências de outras pessoas, sobre o nosso universo em geral, sobre o correto e o incorreto, sobre todo o domínio de abstracta (propriedades, proposições, estados de coisas, números e outros semelhantes), sobre a modalidade (o que é necessário e possível) e sobre o próprio Deus. Essas faculdades trabalham de tal modo que, nas circunstâncias apropriadas, formamos crenças apropriadas. Mais exatamente, a crença apropriada forma-se em nós. Geralmente, não decidimos sustentar ou formar a crença em questão; simplesmente nos deparamos tendo a crença. Ao considerar um caso de modus ponens, deparo-me crendo que é um argumento válido. Olho para o jardim e tenho uma dada experiência visual; deparo-me crendo que as árvores do jardim estão cheias de neve. Quando me perguntam o que comi no café da manhã, reflito por um momento e depois me deparo tendo a crença de que comi ovos com torradas. Nesses e em outros casos, não decido no que acreditar; não avalio a totalidade dos indícios (tenho uma impressão de vermelhidão; na maior parte das ocasiões em que tenho essa impressão estou na presença de algo vermelho; logo, é muito provável que nesse caso também o esteja) e tomo uma decisão quanto ao que parece mais bem sustentado; simplesmente acredito. Em outros tipos de casos, tenho um papel mais ativo na formação das minhas crenças; procuro indícios, ou examino cuidadosamente e considero os indícios que tenho, ou avalio argumentos, ou consulto pessoas que sabem. Na perspectiva teísta do empreendimento cognitivo (ou numa delas), Deus criou-nos com um conjunto complexo, sutil e muito bem articulado de faculdades que nos permitem obter crenças verdadeiras sobre os mais variados tópicos.

Todavia, como se integra a crença em Deus nesse contexto? Da seguinte maneira.[3] Deus criou seres humanos originalmente com algo como o que João Calvino denominou “sensus divinitatis” – um senso de divindade, uma faculdade, um conjunto de processos cognitivos pelos quais temos conhecimento de Deus. A ideia é que o sensus divinitatis é uma faculdade análoga, em alguns aspectos, à percepção sensível. Por meio dessa faculdade, os seres humanos poderiam ter conhecimento da presença e das propriedades de Deus. Mais importante, por meio dessa faculdade, poderíamos ter o tipo de relação como Deus que temos com outras pessoas haveria comunicação e conversação, proximidade, amor mútuo e afeição. Com a maior catástrofe que aconteceu ao gênero humano, contudo, os seres humanos caíram de algum modo em pecado, uma condição ruinosa na qual voltamos as costas para Deus e o rejeitamos. Essa condição é partilhada por todos os seres humanos. O pecado é um tipo de loucura da vontade, uma condição em que amamos e odiamos as coisas erradas. Em vez de amarmos a Deus acima de tudo e ao próximo como a nós mesmos, tendemos a amar a nós mesmos acima de tudo, vindo Deus e o próximo, na melhor das hipóteses, num distante segundo lugar. Na verdade, segundo o Catecismo de Heidelberg, os seres humanos tendem a odiar Deus e o próximo; sentimos ressentimento do segundo por competir conosco e do primeiro por interferir nos nossos próprios projetos e em nossa autonomia.

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A história cristã, porém, continua. Deus não se limitou a deixar-nos nesse terrível estado. Pelo contrário, propôs um esquema pelo qual os seres humanos poderiam ser salvos desse mar de pecado, sendo restaurada a nossa condição original de comunhão com Deus. A característica principal desse esquema é a encarnação, o sofrimento, a morte e a ressurreição da Palavra divina, a segunda pessoa da Trindade, o Filho de Deus. Segundo a história cristã, Jesus Cristo, a segunda pessoa da Trindade, tornou-se homem, assumiu a nossa natureza e a nossa carne. Durante a sua vida, e especialmente no fim, sofreu enormemente, sofrimento de uma profundidade e magnitude que ultrapassa o nosso entendimento, sofrimento que inclui não apenas a crucificação, mas, também, ter-se sentido abandonado e renegado pelo próprio Deus Pai. Foi crucificado e morreu (e ergueu-se dos mortos); desse modo, fez seu o fardo do pecado humano, redimindo-nos do pecado e das suas consequências. Essa salvação do pecado está disponível a todos; tudo o que é preciso é aceitar a dádiva ofertada.

Todavia, como é óbvio, Deus precisava de uma maneira de informar as pessoas de todo gênero e condição, nas mais diversas eras e lugares, da existência da dádiva. Certamente que o poderia ter feito de muitas maneiras diferentes. Segundo uma perspectiva cristã clássica que adotarei aqui, Deus escolheu um processo em três partes. Primeiro, providenciou a produção da Bíblia, uma biblioteca de livros ou escritos, cada um dos quais tem um autor humano (ou autores). Esses autores humanos, contudo, recebem a inspiração de Deus de um modo especial, um modo em virtude do qual o próprio Deus é o autor principal desses livros. O tema e foco centrais da biblioteca é o evangelho, o esquema de salvação ofertado por Deus. Em virtude desse tema e foco centrais, a biblioteca é em si um livro.

Segundo, há a presença e atividade do Espírito Santo, o terceiro membro da Trindade, cuja presença e ação foram prometidas pelo próprio Cristo antes da sua morte e ressurreição, e invocadas e celebradas nas epístolas do apóstolo Paulo. Do ponto de vista cristão clássico, uma pessoa ouve falar do esquema de salvação de Deus — num sermão, pelos pais, lendo a Bíblia, por um amigo ou de outro modo. O convite do Espírito Santo capacita-a, então, a ver que a dádiva de salvação é uma opção viva — não apenas para os outros, mas também para si mesma. Se a pessoa aceitar a dádiva de salvação, o Espírito Santo produz fé (a terceira e última parte do processo) no espírito e no coração do crente — uma convicção profunda de que as linhas principais da história cristã são de fato verdadeiras. Esse trabalho do Espírito Santo repara também as devastações do pecado, incluindo a lesão do sensus divinitatis. Todo esse processo pode ocorrer gradualmente, ao longo de anos, ou pode ocorrer subitamente, tendo um impacto avassalador. A crença resultante pode ser da máxima firmeza; mas também pode ser muito mais hesitante e frágil. O que é central no processo é esse trabalho do Espírito Santo na produção da fé, pela qual os cristãos passam a apreender as linhas principais do evangelho cristão e crer, a subscrevê-las e deleitar-se nelas.

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[1] Para defesas contemporâneas do argumento cosmológico, veja, e.g., William Craig, The Cosmological Kalam Argument (Londres: Macmillan, 1979); para o argumento ontológico, veja o meu livro Deus, a liberdade e o mal (São Paulo: Vida Nova, 2012); para o argumento do desígnio, em particular a sua versão do ‘ajuste perfeito’, veja Robin Collins, “A Scientific Argument for the Existence of God: The Fine-Tuning Argument”, em Reason for the Hope Within, ed. Michael Murray (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1999), e Robin Collins, “Evidence for Fine-Tuning”, em God and Design: the Teleological and Modern Science, ed. Neil A. Manson (Londres: Routledge, 2003).

[2] Veja o meu artigo “Two Dozen (or So) Theistic Arguments” na Internet: <http://philofreligion.homestead.com/files/Theisticarguments.html.

[3] O que estou aqui apresentando é uma perspectiva cristã amplamente aceita sobre a epistemologia da crença teísta; os judeus e muçulmanos irão pensar sobre o tema de um modo similar, mas de algum modo diferente.

Trecho extraído da obra “Conhecimento de Deus”, de Alvin Plantinga e Michael Tooley, publicada por Vida Nova: São Paulo, 2014, p. 16-20. Traduzido por Desidério Murcho. Publicado com permissão.

Alvin PlantingaAlvin Plantinga é doutor em filosofia pela Universidade Yale. Ocupou por trinta anos a cátedra John A. O’Brien de Filosofia na University of Notre Dame, nos Estados Unidos, e foi professor da cátedra Jellema de Filosofia na Calvin College. Foi presidente da American Philosophical Association e da Society of Christian Philosophers. Aclamado como um dos mais importantes filósofos analíticos da atualidade, foi laureado em 2017 com o prêmio Templeton em reconhecimento por seu rigoroso trabalho em epistemologia, metafísica e filosofia da religião. É autor de vários livros, entre eles 'Ciência, religião e naturalismo: onde está o conflito?', 'Conhecimento de Deus' e 'Deus, a liberdade e o mal', publicados por Vida Nova.
Conhecimento de DeusO que acontece quando dois filósofos discordam de uma questão? O óbvio: eles entram em debate, discutindo argumentos e expondo seus pontos de vista. Do debate entre os filósofos Alvin Plantinga e Michael Tooley resultou este livro, que tem como principal objetivo discutir a possibilidade de a crença em Deus ser epistemicamente justificada.

Como era de se esperar, o debate começa com as exposições de dois pontos de vista opostos e termina com a réplica e a tréplica dos debatedores. O resultado desse exercício filosófico é a obra primorosa que o leitor tem em mãos e que, sem dúvida, poderá ajudá-lo a aprofundar e ampliar o entendimento a respeito das implicações epistemológicas da crença em Deus.

Publicado por Vida Nova.

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