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Deus se importa com a cidade e nós deveríamos nos importar com ela também. Antes de qualquer coisa, é preciso definir o que chamamos de cidade. No entendimento deste texto, as cidades são lugares de intenso movimento e aproximação de convívio entre os indivíduos, que em sua diversidade interagem na produção de bens de consumo, serviço e cultura. Logo, não apenas as grandes metrópoles se enquadrariam nesta descrição. Pequenos municípios também se enquadram. O que devemos entender é que a cidade não é lugar de isolamento, mas de convivência e contato, mesmo que não intencional. Esbarrar em alguém ou trocar algumas poucas palavras é algo inevitável quando se vive na cidade.

Na Bíblia, o surgimento das cidades se encontra em Gênesis 4. Lá nos é dito que após ter matado seu irmão, Caim se preocupa com seu destino, pois, Deus o amaldiçoou por seu crime perverso. Todavia, Deus coloca um sinal nele para que ninguém o ferisse de morte (Gn 4.15). Este se afasta da presença do SENHOR e após construir uma família, também edifica uma cidade: “E conheceu Caim a sua mulher, e ela concebeu, e deu à luz a Enoque; e ele edificou uma cidade, e chamou o nome da cidade conforme o nome de seu filho Enoque” (Gn 4.17).

Mas seria o fato da cidade ter começado com Caim algo que a torna – em si – um local amaldiçoado?

A cidade manifesta a graça comum

Os efeitos do pecado são nocivos ao homem, tanto como indivíduo como na sua coletividade. As coisas ruins que vemos e ouvimos na cidade são derivadas do mal maior que assola a humanidade: o pecado. Mas não podemos ter uma cosmovisão desequilibrada e achar que as cidades são um antro de perdição, corruptibilidade e que servem apenas para demonstrar a vileza do ser humano. Não deixa de ser verdade que existe a propagação do mal nos arredores da cidade. Também é fato que a perversidade é celebrada em muitos círculos. Só que isto não corresponde à totalidade da realidade. A cidade, mesmo sendo habitada por pecadores, sendo originária da descendência de Caim — assassino de seu próprio irmão, também pode ser (e é) um instrumento de benção para os homens, além de ser lugar de exaltar o nome do SENHOR.

O conceito kuyperiano da Graça Comum se aplica às benfeitorias que vemos nascer no seio das cidades desde os tempos antigos. Sendo bem sucinto, correndo até o risco de ser simplório, gostaria de chamar a Graça Comum como sendo a ação preservadora vinda de Deus, que atenua os efeitos do pecado, proporcionando o desenvolvimento da vida humana e o seu relativo progresso. É o que podemos observar em Gênesis 4, quando nos é descrito que a cidade pariu o desenvolvimento econômico, tecnológico e artístico. Os descendentes de Caim desenvolveram a pecuária, a metalurgia e a música:

“E Ada deu à luz a Jabal; este foi o pai dos que habitam em tendas e têm gado. E o nome do seu irmão era Jubal; este foi o pai de todos os que tocam harpa e órgão. E Zilá também deu à luz a Tubalcaim, mestre de toda a obra de cobre e ferro; e a irmã de Tubalcaim foi Noema”. Gênesis 4. 20–22

Não resta dúvida que o surgimento destas atividades resultou em avanço e trouxe melhoria de vida para aquela geração. Isto é uma benção, pois os dons que resultam em tecnologia são dádivas que Deus concede aos homens. E se toda dádiva pertence ao SENHOR, Ele é digno de receber toda a honra e louvor que lhe são devidos. Mas vemos que o efeito maléfico do pecado é deturpador das boas dádivas e aquilo que deveria ser produzido para o bem, visando dar glória a Deus e servir ao próximo, acaba sendo desvirtuado — usado para egolatria e demonstração de poderio humano, afrontando a glória do Criador. É exatamente esse o intento do empreendimento dos moradores de Babel (Gn 11.4), mas Deus frustrou aquela empreitada de modo que cessaram de edificar a cidade (Gn 11.8).

A cidade dos homens x A cidade de Deus

Foi Agostinho quem falou da tensão entre a Cidade dos Homens e a Cidade de Deus em sua obra De Civitate Dei. A primeira delas é o local tomado pela malignidade, onde os seus habitantes vivem um estilo de vida autônomo, como se Deus não existisse. Já a segunda, está edificada sob os estatutos divinos. Sua existência tem por objetivo glorificar o nome de Deus e ser a alegria de toda a terra (Sl 48.2). Enxergamos a tensão na Escritura e temos ali duas cidades antagônicas: Babilônia e Jerusalém.

A Babilônia tem relação com Babel, aquela mesma onde seus moradores queriam engrandecer seu próprio nome. Jerusalém é a cidade da paz, lugar de adoração em que o templo foi construído em seu centro, indicando que Deus era o seu governador. No livro de Apocalipse, o antagonismo é o mais claro possível. A queda da Babilônia é celebrada (Ap 14.8, 18. 20–22). Quando a cidade da iniquidade é aniquilada, eis que surge o novo céu e a nova terra. Ao apóstolo João é mostrado que há uma cidade que será habitada pelos eleitos do SENHOR:

“E eu, João, vi a santa cidade, a nova Jerusalém, que de Deus descia do céu, adereçada como uma esposa ataviada para o seu marido. E ouvi uma grande voz do céu, que dizia: Eis aqui o tabernáculo de Deus com os homens, pois com eles habitará, e eles serão o seu povo, e o mesmo Deus estará com eles, e será o seu Deus. E Deus limpará de seus olhos toda a lágrima; e não haverá mais morte, nem pranto, nem clamor, nem dor; porque já as primeiras coisas são passadas. E o que estava assentado sobre o trono disse: Eis que faço novas todas as coisas. E disse-me: Escreve; porque estas palavras são verdadeiras e fiéis”. Apocalipse 21. 1–5

Aquela cidade que João viu tinha portas e muros como as cidades fortificadas de seu tempo (Ap 21.15). Um lugar redimido, sem os efeitos do pecado, no qual habitará todo aquele que teve o seu nome escrito no livro da vida (Ap 21.27). O paraíso pintado em imagens bucólicas não tem consistência com o relato da Escritura. O paraíso é o jardim expandido que se tornou uma cidade, que manterá suas características citadinas, dentre elas o cosmopolitismo, pois nela habitarão homens de toda tribo, língua, povo e nação (Ap 5.9).

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Exercendo o mandato cultural

Deus se importa com a cidade e deseja que elas sejam edificadas para o bem-estar dos seres humanos. Adão tinha o dever de cultivar a terra (Gn 2.15), o que na teologia chama-se mandato cultural. Observemos que cultivo e cultura são palavras que possuem a mesma raiz. Assim sendo, o dever de Adão e de todo ser humano é produzir cultura, é gerar desenvolvimento, é utilizar-se da melhor maneira os recursos da terra. A ideia de um desenvolvimento sustentável não é destoante do conceito bíblico de cultivo. Este mandato ainda está em voga e devemos nos comprometer em extrair o melhor da terra, edificar as cidades, gerar empreendimentos, estabelecer uma rede de serviços. Contudo, precisamos ter em mente que exercer tal mandato não está desvencilhado de uma consciência ambiental. A terra pertence ao SENHOR e devemos guardá-la. Este também é outro dever que está atrelado ao mandato cultural.

Quando somos movidos pela ganância e não nos preocupamos em zelar pelo nome do Senhor, cultivamos sem guardar e buscamos o nosso bem-estar em detrimento do bem-estar do nosso próximo. Mas não é este o paradigma que encontramos nas Sagradas Escrituras. Quando os judeus foram exilados na Babilônia, aquela cidade perversa, Deus usa o profeta Jeremias para dizer aos exilados o seguinte:

“Assim diz o SENHOR dos Exércitos, o Deus de Israel, a todos os do cativeiro, os quais fiz transportar de Jerusalém para Babilônia: Edificai casas e habitai-as; e plantai jardins, e comei o seu fruto. Tomai mulheres e gerai filhos e filhas, e tomai mulheres para vossos filhos, e dai vossas filhas a maridos, para que tenham filhos e filhas; e multiplicai-vos ali, e não vos diminuais. E procurai a paz da cidade, para onde vos fiz transportar em cativeiro, e orai por ela ao SENHOR; porque na sua paz vós tereis paz”. Jeremias 29: 4–7

A ordem foi de se envolver com a cidade e fazê-la prosperar, mesmo sendo a Babilônia. Deus diz que a paz daquela cidade traria benefício para o seu povo. O povo não deveria se contaminar com o paganismo. Era preciso manter a distinção e não abraçar todos os aspectos culturais da Babilônia, todavia, naquilo que não ferisse os preceitos do Senhor, os judeus tinham a permissão do próprio Javé para se envolver econômica e politicamente. Daniel talvez seja o melhor exemplo deste período, pois, não se deixou contaminar (Dn 1.8), entretanto, serviu ao rei como governador de província (Dn 2.48).

Conclusão

A igreja, o povo de Deus na terra, deve se importar com a cidade e fazer o possível para promover a paz e a prosperidade dela. Não podemos nos enclausurar em guetos e produzir uma subcultura. Precisamos estar inseridos em diversas esferas. A cidade precisa de cristãos na política, nas universidades, no empreendedorismo, nos trabalhos sociais, na indústria, na medicina, nos laboratórios científicos e etc. Se a cidade prospera, nós prosperamos. Se há paz na cidade, nós não teremos motivos para temer. Todo esse caos, essa insegurança e desigualdade que vemos no perímetro urbano podem ser minorados com o envolvimento consciente dos cristãos. Mesmo estando cientes de que apenas no retorno triunfal de Cristo habitaremos na Cidade Santa, onde todas as mazelas que nos afetam terão o seu fim, isto não deve nos lançar na inércia. Sem divinizar a nossa ação cidadã, como se ela tivesse um efeito salvador na raça humana, podemos trabalhar para a glória de Deus no serviço ao próximo.

Não devemos enxergar as cidades como lugares de maldição, tampouco romantizar a sua estrutura. Sejamos constantes no empenho de edificá-la, pois Deus se importa com a cidade. Ele requer de nós uma postura altruísta, que intencione o bem coletivo. Que possamos trabalhar para geração de empregos, avanços tecnológicos, propagação da beleza através das artes, promoção da segurança, conscientização ambiental, educação de qualidade, acesso à justiça, respeito às leis, assegurar o direito dos fracos, o cuidado com os necessitados e tudo o mais que venha a ser uma benção na esfera da coletividade.

Tudo isso nos é lícito. Que, com os nossos dons e vocações, nos empenhemos em promover o bem. Que vivamos a Cidade de Deus desde já — mesmo que ainda habitemos na Cidade dos Homens. Pois, nunca devemos esquecer aquilo que diz Salomão: “Se o SENHOR não edificar a casa, em vão trabalham os que a edificam; se o SENHOR não guardar a cidade, em vão vigia a sentinela” (Sl 127.1). Que as nossas cidades estejam sendo edificas tendo Deus como base. Caso o contrário, toda tentativa será vã.

Se importe!

Thiago Oliveira é graduado em História e especialista em Ciência Política, ambos pela Fundação de Ensino Superior de Olinda (Funeso). Mestrando em Estudos Teológicos pelo Mints-Recife. Casado com Samanta e pai de Valentina, atualmente pastoreia a Igreja Evangélica Livre em Itapuama/PE.

4 Comments

  1. Adller Chaves disse:

    Parabéns Thiago. Um texto que nos traz esperança…

  2. Maneiro. Edificou.

  3. Caio César disse:

    Olá, que estilos de arquitetura o cristão deve usar em sua cidade?

  4. Cesar disse:

    Artigo excelente! Faltam visões equilibradas acerca da participação da igreja na cultura. Tentei fazer algo do gênero em recente artigo na ´página da igreja em http://www.cpantioquia.com.

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