Quem disse que Deus é bom? | Gregory Koukl

Deus vai ao cinema em 2017 | Silas Chosen
18/jan/2018
Quem se importa com a cidade? | Thiago Oliveira
29/jan/2018

Estátua de Platão na Academia de Atenas, na Grécia.

Às vezes, as perguntas mais simples, as que parecem ser tão básicas que nunca esperaríamos que fossem feitas, podem nos fazer sair do eixo se não estivermos prontos para respondê-las.

Por exemplo, a noção de “bondade” é algo fundamental ao Evangelho. Deus é bom; nós não somos. A bondade de Deus o compele a nos salvar da nossa falta de bondade, nosso pecado. Tudo parece bem claro.

Mas, para algumas pessoas, isto não está nada claro. Algo que é tão fundamental ao cristianismo soa totalmente vago a eles: o que é “bom”?

“Mas isto é fácil”, alguém poderá dizer, “‘Bom’ é tudo que Deus disser que é.” Tal resposta, porém, só aumenta o problema. Ela pode explicar por que dizemos que certas ações são boas, mas faz com que fique impossível dizer que Deus é bom. E se Deus não é bom, então um Evangelho baseado na bondade de Deus não faz sentido.

Eu quero explicar a você porque essa resposta cristã padrão é um erro, e também mostrar como podemos voltar ao eixo se alguém nos questionar sobre isso.

Esse problema é bem antigo, sendo datado, pelo menos, do século quarto antes de Cristo. O famoso dilema de Platão da natureza da bondade ainda é posto como sendo algo que desafia seriamente o cristianismo. Um ato é correto porque Deus diz que é, ou Deus diz que tal ato é correto porque simplesmente é? Esta questão aparece, pela primeira vez, no diálogo Êutifron, de Platão.

O desafio

No diálogo de Platão entre Sócrates e Êutifron, Sócrates está tentando entender a essência da piedade e da santidade:

Sócrates: Que dizes, então, acerca da piedade, Êutifron? É alguma coisa diferente do que é amado por todos os deuses, como tu disseste?

Êutifron: é isso mesmo.

Sócrates: Mas, por isso, por ser piedade ou por outra razão?

Êutifron: Não, por essa.

Sócrates: Portanto, é amada porque é piedade, mas não é piedade porque a amam?

O dilema encontrado por Êutifron era o seguinte: uma coisa é boa simplesmente porque os deuses dizem que é? Ou os deuses dizem que tal coisa é boa por causa de alguma outra qualidade que ela possui? Se sim, que qualidade é essa? Este problema deixa Êutifron perplexo.

A abordagem de Platão já foi utilizada, em épocas mais recentes, como um ataque à coerência do cristianismo. O filósofo ateu Bertrand Russell abordou, no século XX, o problema da seguinte maneira, em seu polêmico livro Por Que Não Sou Cristão:

Se estamos tão certos de que existe uma diferença entre o bem e o mal, nos achamos, então, na seguinte situação: é essa diferença devida ao fiat[1] de Deus ou não? Se é devida ao fiat de Deus, então não existe, para o Próprio Deus, diferença entre o bem e o mal, e não constitui mais uma afirmação significativa o dizer-se que Deus é bom. Se dissermos, como o fazem os teólogos, que Deus é bom, teremos então de dizer que o bem e o mal possuem algum sentido independente do fiat de Deus, porque os fiats de Deus são bons e não maus independentemente do mero fato de ele os haver feito. Se dissermos tal coisa, teremos então de dizer que não foi apenas através de Deus que o bem e o mal passaram a existir, mas que são, em sua essência, logicamente anteriores a Deus.

O problema

A interpretação de Russell é uma tentativa de apontar uma falha interna na noção cristã de Deus e da bondade. Uma coisa é correta simplesmente porque Deus declara que ela é, ou Deus declara que ela é correta porque reconhece um código moral superior até mesmo a Ele?

Encontramos um dilema aí, portanto, pois somos forçados a escolher uma entre duas opções, sendo ambas hostis ao teísmo cristão. O crente acaba se vendo entre a cruz e a espada.

Por um lado, Deus reina e Sua Lei é suprema. Por ser soberano, Ele estabelece as regras morais do universo. Seus mandamentos são absolutos. Devemos obedecê-los.

O eticista Scott Rae descreve a seguinte visão: “Uma teoria da ética do ‘mandamento divino’ é aquela em que o fundamento da moralidade é a vontade revelada de Deus, ou os mandamentos de Deus encontrados nas escrituras.” Esta visão é conhecida como voluntarismo ético.

À primeira vista, esta visão parece correta, mas o quadro muda quando paramos para pensar nas repercussões disso. O conteúdo da moralidade deveria ser arbitrário, dependente do desejo de Deus. Embora Deus tenha declarado que é errado matar, roubar e depravar, esses atos seriam corretos se Deus assim quisesse. Qualquer ato “imoral” imediatamente poderia se tornar “moral” puramente pelo fiat de Deus.

Além disso, tal visão reduz a bondade de Deus ao Seu poder. Dizer que Deus é bom simplesmente significa que Ele é capaz de impor seus mandamentos.

Esta é a posição do Islã, mas é inaceitável para o cristianismo. A moralidade não é arbitrária. Deus não é livre para chamar de certo o que é errado, nem o que é errado de certo. O texto é claro: “…é impossível que Deus minta” (Hb 6:18, NVI). Deus não pode pecar.

Mas a alternativa não parece ser melhor. Se o cristão afirma que a moralidade não é arbitrária, ele é pego pelo outro lado do dilema. Se o padrão por si só é absoluto de tal forma que nem Deus pode violá-lo, isso não torna o Todo Poderoso sujeito a uma lei maior? O Soberano se torna o subordinado.

Nos dois casos, o cristianismo perde. Ou Deus não é bom, ou Ele não é soberano. Eis o dilema.

Embasamento

O desafio de Platão nos compele a refletir sobre um detalhe importante presente em qualquer discussão sobre a natureza da moralidade: embasamento. A palavra “embasamento” pode significar “base; alicerce; fundamento”.

Na filosofia, esta palavra se refere à fundamentação ou base lógica de uma afirmação. A tarefa de Êutifron consistia em identificar o embasamento lógico da piedade ou da verdade. Em que a moralidade “se baseia”?

Francis Beckwith e eu escolhemos um nome para nosso livro sobre o relativismo que contivesse uma descrição visual: Relativismo: Pés Seguramente Firmados Sobre Coisa Nenhuma (tradução livre de Relativism: Feet Firmly Planted in Mid-Air). Nossa tese é a seguinte: os relativistas que dizem ter conhecimento sobre alguma coisa não possuem base para tal. Eles estão firmados não em um chão sólido, mas pairam no meio do nada.

A legitimidade de uma lei existe somente dentro da autoridade sobre a qual ela rege. O governo americano, por exemplo, não pode sancionar leis que governem os canadenses. As leis federais dos EUA se aplicam somente ao povo americano. Não cabe ao indivíduo criar leis que se apliquem ao próximo. Ele não possui essa autoridade.

Os fundadores da nação americana afirmavam que até mesmo os governos são sujeitos a leis superiores. Algumas verdades são transcendentais, diziam eles, e estão embasadas não em instiuições humanas, mas no próprio Deus. Este apelo a uma Lei superior passou a ser sua justificação racional para a moralidade da Revolução Americana.

O problema de encontrar uma base para a moralidade se mostra difícil para os ateus que afirmam que podemos ser éticos sem Deus. Certamente, um ateu pode agir de uma forma que algumas pessoas considerem “moral”, mas é difícil saber a que este termo realmente se refere. Geralmente, ele significa seguir um padrão objetivo do que é bom, uma Lei outorgada por uma autoridade legítima. Entretanto, sem um Legislador transcendente (Deus), não pode haver uma Lei transcendente, tampouco uma obrigação correspondente de se fazer o bem.

Leia também  Mentirinhas e outros enganos | Gregory Koukl

O monge trapista Thomas Merton aborda este desafio da seguinte forma:

“Em nome de quem você me pede para me comportar? Por que eu deveria ceder à inconveniência de negar a mim mesmo a satisfação que desejo em nome de algum padrão que existe somente na sua imaginação? Por que eu deveria adorar as ficções que você me impôs em nome de nada?”

Como eu escrevi no livro citado anteriormente, “um ateu ‘moral’ é como um homem que senta para jantar, mas não acredita em fazendeiros, rancheiros, pescadores e cozinheiros. Ele crê que a comida simplesmente aparece, sem explicação ou causa suficiente.” A moralidade do ateu não possui embasamento.

Mas será o caso da moralidade cristã o oposto? Este é o desafio do dilema de Êutifron.

A solução

A estratégia geral usada para anular um dilema é mostrar que ele é falso. Não existem somente duas opções, e sim três.

O cristão rejeita a primeira opção, que diz que a moralidade é uma função arbitrária do poder de Deus. Rejeita, também, a segunda, que diz que Deus responde a uma lei superior. Não há leis superiores a Deus.

A terceira opção é que existe um padrão objetivo (isto evita a primeira parte do dilema). Entretanto, o padrão não é externo a Deus, mas interno (evitando, assim, a segunda parte). A moralidade está embasada no caráter imutável de Deus, que é perfeitamente bom. Seus mandamentos não são caprichos, mas estão enraizados em Sua santidade.

Será que Deus poderia simplesmente decretar que a tortura de bebês fosse algo moral? “Não”, responde o cristão, “Deus nunca faria isso”. Não é uma questão de mandamento. É uma questão de caráter.

A resposta cristã evita o dilema totalmente. A moralidade não é anterior a Deus, sendo logicamente precedente a Ele, como sugere Bertrand Russell, mas sim enraizada em Sua natureza. Como Scott Rae bem coloca, “A moralidade não é embasada nos mandamentos de Deus, mas sim em Seu caráter, que, por sua vez, se expressa em Seus mandamentos.” Em outras palavras, qualquer mandamento de um Deus bom sempre será algo bom.

Um outro problema

O trabalho do cristão não para por aí, porque a observação de Bertrand Russell sugere um outro problema. O desafio de Sócrates a Êutifron não foi cumprido. O que é “bom”? Não ajuda em nada dizer que Deus é bom, a não ser que saibamos a que este termo se refere.

Se a palavra “bom” significa “de acordo com a natureza e caráter de Deus”, nós temos um problema. Quando a Bíblia diz “Deus é bom”, ela está simplesmente dizendo que “Deus tem a natureza e caráter que Deus tem”. Se Deus e bondade são a mesma coisa, então a frase “Deus é bom” não significa outra coisa senão que “Deus é Deus”, o que é uma tautologia inútil.

A resposta para esse problema depende da noção filosófica de identidade, expressa simbolicamente por A = A. Quando uma coisa é idêntica a outra (da maneira que estou usando este termo), não há duas coisas, mas sim uma. Por exemplo, o presidente da Stand to Reason, Gregory Koukl, é idêntico ao autor deste artigo. Tudo que é verdadeiro com relação a um é, também, ao outro. O autor e o presidente são a mesma pessoa. Eles são uma pessoa só, e não duas.

De acordo com os ensinamentos cristãos, Deus não é bom da mesma maneira que um homem solteiro é alguém que ainda não se casou. Quando dizemos que Deus é bom, estamos dando uma informação adicional, ao atribuir a Deus certa qualidade. Deus não é a mesma coisa que a bondade (idêntico a ela). A bondade é uma característica essencial de Deus, portanto não há tautologia.

Conhecendo a bondade

Um entendimento correto dos ensinamentos cristãos sobre Deus elimina um problema, mas ainda enfrentamos outro: O que é “bom”? Como sabemos o que é a bondade se não a definirmos primeiro?

A reação de Abraão ao saber da intenção de Deus em destruir Sodoma e Gomorra nos dá uma pista para a resposta:

“Longe de Ti fazer tal coisa: matar o justo com o ímpio, tratando o justo e o ímpio da mesma maneira. Longe de Ti! Não agirá com justiça o Juiz de toda a terra?” (Gn 18:25, NVI)

Eis a questão: como Abraão sabia que era justo que Deus não tratasse o ímpio e o justo da mesma maneira? Nenhum mandamento havia sido dado por Deus até então.

Abraão conhecia a bondade não por uma definição prévia ou por algum decreto vindo de Deus, mas através da intuição moral. Ele não precisava que Deus definisse a justiça (por meio de mandamentos divinos). Ele sabia disto diretamente. Seu conhecimento moral estava incorporado a ele.

Até mesmo o ateu entende o que significam os termos morais. Ele não precisa de Deus para reconhecer a moralidade. Ele precisa de Deus para obter sentido naquilo que reconhece.

E é exatamente por isso que o argumento moral da existência de Deus é tão bom. A consciência da moralidade aponta para Deus da mesma forma que a consciência de uma maçã em queda aponta para a lei da gravidade. Nossas intuições morais reconhecem o efeito, mas qual a causa? Se Deus não existe, então os termos morais são incoerentes e nossas intuições morais não fazem sentido algum.

Os cristãos não precisam ter medo de Platão nesse aspecto. Quando o dilema de Êutifron é aplicado ao cristianismo, ele descaracteriza a visão bíblica sobre Deus. A bondade não está nem acima de Deus e nem é meramente desejada por Ele. Em vez disso, a ética está embasada em Seu caráter santo. As noções morais não são arbitrárias e dadas a caprichos. Elas são fixas e absolutas, embasadas na natureza imutável de Deus.

Além disso, nenhuma definição externa de piedade é necessária, pois a moralidade é conhecida diretamente através da aptidão da intuição moral. As leis de Deus expressam Seu caráter e, se as nossas intuições morais estão intactas, nós imediatamente reconhecemos tais leis como sendo boas.

Isso não significa que o cristianismo é verdadeiro, mas sim que não é prejudicado pelo desafio de Platão a Êutifron.

_________________

[1] Nota do editor: Fiat é uma palavra latina que significa “faça-se”. O “fiat de Deus” é, portanto, o “faça-se de Deus”, o ato de Deus em que manifesta a sua vontade.

Traduzido por Filipe Espósito e revisado por Maria Gabriela Pileggi.

Texto original: Who Says God is Good? Stand to Reason.

Gregory Koukl obteve seu mestrado em filosofia da religião e ética na Talbot School of Theology e seu mestrado em apologética cristã na Simon Greenleaf University. É professor adjunto de apologética cristã na Biola University. Tem apresentado seu próprio programa de rádio por 20 anos, onde defende a cosmovisão cristã.

1 Comments

  1. Fabrício de Marque disse:

    Excelente artigo! Ótima reflexão.

Deixe uma resposta

%d blogueiros gostam disto: