Deus vai ao cinema em 2017 | Silas Chosen

6 rachaduras na cosmovisão secularista | Rebecca McLaughlin
12/jan/2018
Quem disse que Deus é bom? | Gregory Koukl
24/jan/2018

O cinema e a arte de contar histórias precisam explorar diversas áreas da humanidade. O simples exercício de se perguntar “Por que um personagem faz isso?” ou “Por que ele escolhe tal escolha?” já é (ou deveria ser) o suficiente para abordar assuntos infinitos. Quase toda história apresenta uma dúvida moral. Quase toda história apresenta um obstáculo intransponível. Quase toda história apresenta uma missão essencial, e os motivos pelos quais os personagens embarcam numa jornada podem vir de qualquer área da vida. Pode ser ódio, pode ser amor. Pode ser uma questão política. Pode ser para conseguir um pote de marmelada.

E como não só a base moral da cultura mundial vem da religião, mas quase toda a filosofia do planeta nasce como um capítulo ou um repúdio das ideias religiosas, não é raro vermos personagens se envolvendo com questões que caberiam perfeitamente numa discussão teológica. Não obstante, muitos pastores usam as histórias como base para suas pregações. Muitos autores usam histórias para expor elementos da sua teologia. Muitos carpinteiros também.

Esse é basicamente o motivo pelo qual escrevemos sobre cinema aqui no Tuporém. Olharmos para a cultura e aprendermos mais não só sobre a arte de contar histórias, mas sobre como diferentes cabeças olham para a origem de nossos valores, nossos mitos, nossa espiritualidade e nossa moral.

2017 foi um ano excelente para o cinema, com filmes muito mais profundos do que merecíamos. E vários deles podem servir como base para discussões muito úteis acerca de sociedade, humanidade e também teologia. Uns mais que outros, e uns necessitam de um pouco mais de “leitura insistente” do que outros. Nem sempre a mensagem que tiramos de um filme estava lá intencionalmente, mas como a leitura de uma obra de arte pertence ao receptor, se formos coerentes com a proposta, não corremos o risco de “viajar para longe demais”. E se viajarmos, não é essa a intenção da arte?

Faço aqui um apanhado incompleto sobre vários filmes populares lançados em 2017 que podem servir para esses lampejos de teologia, filosofia, moralidade, existencialismo. Mesmo os filmes que criticam a ideia de religiosidade ou espiritualidade (a maioria deles hoje em dia) adicionam muito ao nosso conhecimento, nossa interpretatividade, nossa apologética e nosso crescimento.

Muitos podem não passar de loucuras de gente que tira coisa de contexto, faz desonestidade intelectual, apresenta distorções nefastas.

Mas muitos podem ser pedras falantes.

Sem uma ordem definida, com exceção do último, que considero o filme mais interessante nesse contexto.

Considere que haverá spoilers de todos os filmes.

Alien Covenant

Nos últimos anos o Ridley Scott decidiu falar de religião muito mais diretamente. Fez filmes fracos como Prometheus e Êxodo, que além de estarem aquém do talento dele para o cinema, expressavam seu agnosticismo com pouquíssima clareza. A mensagem dos filmes normalmente era confusa.

Em Alien Covenant, a discussão sobre criador vs. criatura e a total misantropia apocalíptica personificada em David finalmente são claras. É um filme de horror extremamente pessimista e extremamente desolador, de uma escuridão fascinante e assombrosa sobre a ideia de alguém tentar se vingar de seu criador por causa daquilo que considera uma maldição: a vida. Ou talvez ele só esteja tentando roubar o posto de criador. Afinal, é um filme sobre o mais horroroso dos engenheiros genéticos do cinema.

Assassinato no Expresso Oriente

Para quem leu o livro, o filme não vai surpreender em termos de trama. Vai surpreender em termos de visual e de atuação, logo de início. Kenneth Branagh dirige o filme com uma certa originalidade em seu foco, se interessando muito mais nos personagens e atuações do que nos elementos tradicionais de um whodunnit.

Porém, no final, uma pequena alteração na personalidade do detetive Poirot dá início a uma discussão sobre ética e moralidade que aprofunda um filme que só poderia ser bacana. A dúvida que paira sobre os suntuosos bigodes do detetive belga manda você para casa com uma equação moral incompleta, mesmo que o filme ache que ela está respondida na sua cabeça.

Até o Último Homem

Um filme lançado em 2016 nos EUA e aqui só em 2017. Filme de Oscar, filme de Segunda Guerra. Mas um filme cheio de elementos do cristianismo, elementos que surpreendem cada vez mais por serem defenestrados pelos que se dizem cristãos e cheio do fatalismo de Mel Gibson, que coloca um adventista do sétimo dia para lutar na guerra sem poder ferir ninguém.

Até o Último Homem, apesar do esforço necessário para jogar de lado sua cafonice, consegue colocar mais palha na fogueira da discussão sobre “Jesus ser um pacifista ou não”.

Blade Runner 2049

O primeiro filme perguntava o que era um ser humano. O que é uma alma? Se um dia uma criação humana for indistinguível de seu criador, o que isso faz do androide? O que isso faz do ser humano que o criou?

A continuação vem para descer mais alguns degraus nessa escada, fazendo perguntas um pouco mais complicadas e colocando coisas como amor no meio da história. Pode uma máquina amar? Pode uma simulação ser uma pessoa?

E numa virada de trama bem intensa, o que acontece quando nem você mesmo sabe se sua origem é biológica ou não?

Deus ouviria as orações de um robô?

Dunkirk

Os extremos são lugares muito reveladores. E na poesia visual de um dos melhores filmes sobre um dos momentos mais extremos da humanidade, nós vemos o valor de um só homem e o peso que ele pode ter na hora de escolher como ele vai mudar a vida daqueles à sua volta.

Dunkirk é um filme cheio de pessoas. Elas não são más. Elas não são boas. Elas só estão unidas no impassível senso de sobrevivência a qualquer custo. Com o relógio lembrando-os o tempo todo de que essa sobrevivência não virá fácil, não virá sem custo.

E é um filme sobre um milagre. Sobre o que o lampejo de esperança pode fazer com o coração das pessoas. Sobre o valor da vida, mesmo no meio da derrota.

It: A Coisa

O medo está presente no cinema desde sempre. Mas quando o cinema conheceu Stephen King, o medo se tornou uma commodity. King teve montes de seus livros adaptados para o cinema, e muitos são clássicos, muitos são horrorosos. Mas este é não só o ano de ressurgimento do terror como cinema rentável, mas é o ano de King. Com duas adaptações muito boas pela Netflix e uma outra muito sofrível no cinema (A Torre Negra), King ainda viu uma de suas maiores obras refilmada.

E não só medo é o intuito do filme, mas medo também é o assunto de It: A Coisa. Só que o ângulo da câmera muda um pouquinho. O vilão aqui, um palhaço demoníaco, não é o inimigo de verdade, mas uma cidade inteira que permite o abuso de crianças, seja através do racismo, da sexualidade ou simplesmente da opressão social. It é muito útil para mostrar para todos nós como um palhaço demoníaco é o menor dos problemas para uma criança que tem medo de outras criaturas terríveis: seus vizinhos.

Leia também  A Forma da Água - Monstruosidade milenar | Silas Chosen

 Logan

Não é só, de muito, muito longe, o melhor filme sobre X-Men já feito. Não é só também um dos melhores filmes de super-heróis já feitos.

É um filme que coloca um dos mais famosos personagens de quadrinhos na posição mais frágil que já vimos. Não só a distância que o Logan tem daquele Logan que sempre vimos nos choca. Mas a fragilidade da sua vida, o medo puro que vive dentro dele, e a lenta mudança de motivação que faz com que ele encontre aquilo que todos nós procuramos: redenção.

Um faroeste clássico, que mostra o choque de um selvagem completo com aquilo que mais lhe faltava: uma família.

Muitos marmanjos saindo do cinema escondendo as lágrimas.

Mãe!

Um dos maiores méritos de Mãe! é sua clareza. Infelizmente, é um filme tão claro que isso quase vira demérito.

Mas é um filme que mostra uma das visões mais gratuitamente distorcidas sobre a teologia judaico-cristã. A tal ponto que vira quase uma comédia de humor negro sobre o que aconteceria com a humanidade se Deus fosse realmente humano, preso por emoções e carência muito humanas.

É um filme ok quando é um filme sobre o meio-ambiente se rebelando contra os seus guardiões, mas é um filme muito melhor quando é absolutamente niilista, tirando da cartola uma pessoa feminina da divindade que é cheia de ódio.

E tem o Ed Harris!

Star Wars – Os Últimos Jedi

Star Wars sempre atraiu comparações religiosas porque tira muito de seu misticismo de vários lados do espiritualismo mundial. Mas Star Wars – Os Últimos Jedi é o primeiro filme que deliberadamente faz um comentário sobre a religião.

Quando um certo personagem clássico aparece para discutir… bem… doutrina e liturgia com nosso herói, ele traz sabedoria e pontos de vista interessantes sobre vários dos temas do filme. Fracasso, nossa relação com o passado, nossa relação com o futuro, nossa influência àqueles ao nosso redor e a consequência de nossas escolhas.

Não obstante a profundidade do filme – tanto verbal quanto visual e narrativa – sobre esses temas, ainda temos a presença literal de não só textos sagrados, mas de um templo.

E há algo a se aplicar naquilo que acontece: um templo é destruído, mas um texto sagrado é salvo. E mais do que isso, o princípio é salvo, a sabedoria passada, e a aprendiz acaba “tendo tudo o que precisa”.

E o filme com a aplicação mais interessante do ano é…

Mulher-Maravilha

Talvez a simplicidade maniqueísta de filmes de super-heróis deixem a desejar na hora de uma análise profunda. Apesar de que ainda temos aqueles pensadores (ainda mais na igreja) que acham que o mundo realmente é 100% maniqueísta, como no princípio dos quadrinhos.

Acontece que algum santo pensou que os heróis são mais do que só “fantasias de poder” e “supremacia moral”. Os heróis são projeções dos nossos valores. Atualizações dos nossos mitos. E como nem nossos valores e nem os nossos mitos são unilaterais, ou mesmo coerentes, as histórias de super-heróis têm como fazer certas perguntas e apresentar certos cenários muito interessantes para as conversas de bar mais inspiradas.

Mulher-Maravilha tem um começo ótimo, um meio excelente (raridade em Hollywood) e um final fraco. E esse final fraco se dá pela escolha de um vilão-reviravolta meio atrapalhado, que transforma o clímax do filme que tem uma das protagonistas mais interessantes do ano numa cena de Dragonball Z.

Mas é ali, no meio daquele CGI meio genérico, logo depois daquela revelação meio genérica, que a gente vê uma discussão bastante surpreendente sobre Graça.

É, Mulher-Maravilha acaba sendo um filme sobre Graça. Aquela Graça.

Ali no final, temos o deus da Guerra explicando que a humanidade é horrível. Que a guerra, a maldade, o pecado, independe de influências espirituais externas: a humanidade é podre por si só. Se deixada sozinha, vai causar seu próprio fim por pura insegurança, inveja, medo. Aquela que foi criada para proteger a humanidade precisa decidir não só se deve salvar a humanidade, mas por que deve salvar a humanidade. Afinal, não dá para argumentar contra Ares: esses humanos são mesmo muito ruins em serem normais. Eles só querem saber de destruir, conquistar, matar, e sempre das maneiras mais criativas.

A natureza humana, quando desprovida de máscara, tem uma terrível cicatriz.

Porém, a salvadora vê alguma coisa na humanidade. Vê em muito mais do que um sorvete, muito mais do que num romance inocente. Vê que a humanidade está só perdida. E que a humanidade quer encontrar um caminho.

Diana se sacrifica pela humanidade sem esperar nem requerer nada em troca. A escolha do filme de usar como pano de fundo (e como implicância temática) a Primeira Guerra Mundial é especialmente curiosa porque logo ali na esquina estava a Segunda Guerra Mundial. Não é só uma questão de que Diana pretende salvar uma humanidade que vai se comportar dali pra frente. Ela salva uma humanidade podre mesmo, uma humanidade que vai continuar podre. Vai continuar eternamente imerecedora.

Mas a natureza divina é a natureza divina. E nossa heroína salva a humanidade, mesmo tendo perdido seu elo. Mesmo tendo visto que ninguém merece salvação.

É uma aplicação pueril, mas direta e clara do conceito de graça cristã que é tão difícil de entender para todos nós, que temos a meritocracia escrita no chão do abismo que é nossa própria humanidade. E não funciona só como mensagem metafórica, já que o filme não tem a mínima pretensão de ser um filme religioso. Mas funciona dentro do próprio contexto do personagem de Diana.


Enfim, assista a esses filmes. Assistam outros filmes. Assista o máximo de filmes que vocês puderem. Filmes bons. Filmes ruins. Filmes de gêneros que não atraem você. Documentários. Veja documentários. Veja desenhos animados. Veja curta-metragens.

2018 começou e vamos ter bastante coisa para conversar daqui a um ano.

Você concorda? Discorda? Achou que teve algum filme que merecia estar aqui na lista e não está? Tem algum que você viu (e talvez eu não) que discute a nossa vida social, espiritual, cultural, de alguma forma interessante que você queria ver aqui? Deixe nos comentários!

Silas Chosen é roteirista, cineasta, publicitário, ilustrador e é viciado em cinema e histórias. Escreve para sites e programas de rádio sobre cinema, cultura pop e cristianismo desde 2004. Faz parte da 4U Films, ministério de cinema independente.

3 Comments

  1. Julian Geiger Nunes disse:

    Muito bom!
    O da Mulher Maravilha merecia um post único até

Deixe uma resposta

%d blogueiros gostam disto: