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E, se comunidades religiosas forem a melhor esperança para a renovação de democracias liberais?

Tanto liberais seculares como teólogos cristãos (pelos menos alguns subgrupos) parecem ser unânimes: alguma coisa chamada “religião civil” nos colocou nesta confusão. Para alguns teólogos cristãos — e um número cada vez maior de jovens cristãos ativistas — a assimilação de cristãos norte- americanos às múltiplas desordens de natureza cultural como consumismo, militarismo e políticas da “cidade terrena”[1] vivem sob a enorme sombra de Constantino. A única testemunha (e esperançosamente profética) da igreja foi abandonada exatamente quando o cristianismo parecia receber aprovação do império. Religião civil, então, é uma estranha fusão que surge quando cristianismo e estado se fundem ou se combinam. Acrescenta-se ainda, “religião civil” é o fim da verdadeira religião; este é nome que damos à nossa concessão e assimilação.

Tal coisa reflete-se no giro secularista sobre a religião civil que sempre protesta contra a intrusão da religião em assuntos do estado. Religião, como Richard Rorty coloca, é uma espécie de “cala boca não-democrático”. Mas a crítica é ainda mais estridente do que isso: qualquer religião que se mostre em público é vista como um convidado indesejado e torna o liberalismo inquieto. Neste caso, é como um líder deposto tentando reassumir o seu lugar de outrora: todos já partem do princípio que ele só está lá porque ele quer seu lugar de influência novamente. Na perspectiva secular e liberal, uma “religião civil” está apenas acobertando seus intentos por imperialismo cultural, um anseio nostálgico por um tempo quando “protestantes anglo-saxões brancos” governavam o mundo. Não há nada de “civil” nisso, os secularistas reclamam: a religião é uma ameaça à civilidade e desencadeia guerras culturais que devastam a esfera pública. Para o secularista, religião civil é apenas o lobo da hegemonia disfarçado em pele de cordeiro.

Um terceiro sentido do termo deveria ser adicionado às críticas mencionadas: religião civil é o que temos quando se diviniza a civitas, quando devoção para com “a nação” subverte outras lealdades e inspira fervor e paixão. Definitivamente, isto não é nada menos do que algo religioso. David Gelernter dá um nome para isso em seu livro, publicado em 2007, Americanismo: a Quarta Grande Religião Ocidental[2]. O mais recente livro de Walter McDougall, A Tragédia da Política Externa dos Estados Unidos[3], ao qual Robert Joustra fez uma resenha nesta edição, identifica o mesmo problema em seu subtítulo: Como a Religião Civil Americana Traiu o Interesse Nacional. No argumento de McDougall, a religião civil sempre carrega um aroma habitual de irracionalidade: a racionalidade obstinada dos interesses nacionais é comprometida por causa de seus valores tão celebrados e mitologias insensatas.

Por toda parte, então, parece que a religião civil é um problema. Mas, gostaríamos de sugerir que ainda existem outras expressões de religiões civis que merecem ser examinadas com seriedade porque, por menos plausível que isso possa parecer, a religião civil é uma fonte moral insubstituível da sociedade civil. E, aliás, a visão bíblica sobre a vocação do homem para cuidar da terra e amar o próximo — um chamado que é renovado, e não suplantado, pelo evangelho — nos impulsiona a uma preocupação social para com as sociedades em que nos encontramos. A igreja nos envia para o mundo como agentes de renovação.

De fato, reconsiderar a religião civil é necessário precisamente porque a religião civil é inevitável. A questão não é se temos uma religião civil, mas qual. Como Jonathan Chaplin diz em sua conversa com Brian Dijkema nesta edição: “Religião civil pode aparecer em diferentes formas. Algumas são ameaçadoras, outras totalitárias, ainda há aquelas que são só discretamente hegemônicas, e algumas que são quase invisíveis.” E, ainda, eu acrescentaria outras formas de religião civil mais intencionais que poderiam nos libertar das religiões civis que nos inquietam.

Avançando um pouco, afirmamos que comunidades religiosas densas, específicas e explícitas são exatamente o que precisamos para manter uma sociedade civil saudável e sustentar o discurso público civil. Como James Davison Hunter argumenta em The Death of Character [A Morte do Caráter], não há valores “genéricos”. A moralidade é sempre localizada, e virtudes são “alcançadas” em comunidades específicas, com narrativas específicas que consolidam uma visão específica do bem. O bem imaginado que democracias liberais esperam de uma sociedade diversificada plural e civil não é uma visão genérica. Ela tem uma história particular — enraizada no cristianismo — e exige virtudes particulares. Em suma, o projeto de uma sociedade liberal que funcione bem, e seja pluralista, depende do poder formativo de comunidades “não-liberais”, não-democráticas e de tradições-específicas que possam inculcar virtudes de esperança, respeito à dignidade, compromisso com a verdade, e assim por diante. Famílias, sinagogas, igrejas e mesquitas mergulham seus membros em uma História que faz com que tais virtudes “façam sentido”. Tais esferas não-políticas da sociedade cultivam pessoas que se tornam o tipo de cidadão que sabe como ser paciente e perdoador exatamente porque eles creem em alguma coisa para além do Estado.

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Então, a ironia é que aquilo que a democracia liberal deseja — preocupação com o próximo, civilidade e tolerância em uma sociedade pluralista — depende do que agora ela parece querer excluir: comunidades religiosas densas e particularistas que inculcam virtudes da semelhança com Cristo nos cidadãos. As democracias liberais ocidentais viveram de empréstimo de capital da igreja por séculos. Como Charles Taylor (Uma Era Secular), Oliver O’Donovan (Desire of the Nations), e mesmo Jürgen Habermas vêm indicando: a visão de uma democracia tolerante, civil e pluralista é em si mesma o resultado de uma visão bíblica de amor ao próximo. E, ainda mais, comentadores culturais como Robert Putnam (Bowling Alone), Charles Murray (Coming Apart), Margaret Somerville (The Ethical Imagination) e Yuval Levin (The Fractured Republic) indicam que desigualdade crescente, solidão e segregação podem estar relacionadas com a concretização da secularização na sociedade norte-americana. E se o bem de uma sociedade liberal e mesmo “secular”, em grande parte depender de comunidades religiosas como sua força vital?

Esta é a razão porque comunidades religiosas, especialmente a igreja, possuem um papel civil a cumprir. Isto não significa que a igreja deveria se tornar um funcionário público, um mero capelão para a sociedade. Ao invés disso, o subproduto de uma igreja saudável que forma cidadãos do reino vindouro é que eles são enviados à cidade terrena com virtudes da semelhança com Cristo, que também contribuem para o bem comum. Não devemos perder o ponto aqui. Esse é o tipo de coisa que não se implementa em escala nacional; ao invés disso, promulga-se no nível paroquial, em centenas de diferentes vizinhanças. Também encontramos cristãos, judeus e muçulmanos colaborando para o bem de vulneráveis, abandonados e marginalizados, enquanto também cultivam incubadoras de virtudes, aquilo que chamamos de família. De fato, como Mathew Kaemingk argumenta em um ensaio provocativo nesta edição: “A estudante muçulmana que caminha para sua sala de aula com um simples véu sobre sua cabeça está exercendo uma função democrática crítica — uma à qual deveríamos ser gratos.” Religiões em público — e religiões que se preocupam com o público — não são inimigas da democracia; elas são incubadoras de paciência e colaboração em meio a profundas diferenças. A densa particularidade de religiões confessionais é o antídoto que precisamos para dissipar a intolerância crescente do secularismo como nossa (intolerante) religião civil de fato.

Então, mesmo neste senso “terreno”, a igreja pode ser a esperança do mundo. Esta edição é um convite para que tanto crentes quanto céticos considerem uma tese impopular: que se a civitas deve ser mantida, ela precisa considerar a religião. Talvez, este seja o tempo para reimaginar a religião civil.

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[1] N.T. uma referência aos amores terrenos que orientam a ordem política na “cidade dos homens” como desenvolvido em “Cidade de Deus” (Civitas Dei) de Agostinho de Hipona.

[2] Título original: Americanism: the Fourth Great Western Religion.

[3] Título original: The Tragedy of U.S. Foreign Policy.

Traduzido por Igor Miguel e revisado por Daniel Vieira.

Texto original: Reconsidering “Civil Religion”. Este artigo foi publicado em 11 de maio de 2017 na revista “Comment”, uma publicação da CARDUS: www.cardus.ca.

James K. A. Smith (PhD, Villanova University) é professor de Filosofia na Calvin College, onde também ocupa a cátedra Gary e Henrietta Byker de Teologia e Cosmovisão Reformadas Aplicadas. É editor da revista Comment, além de autor e organizador de vários livros, entre eles 'Você é aquilo que ama' e 'Desejando o Reino', publicados por Vida Nova.

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