(RE)Descobrindo a mente evangélica | David T. Koyzis

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Biblioteca do Trinity College em Dublin, Irlanda

Este artigo foi publicado em 2 de fevereiro de 2010 na revista “Comment”, uma publicação da CARDUS: www.cardus.ca. Texto original aqui.

A busca de uma vida intelectual não é um exercício opcional para a comunidade de crentes, traga ela elogios ou perseguição, aplausos ou vaias.

De tempos em tempos, alguém aparece na imprensa popular com a descoberta, aparentemente estarrecedora, de que os cristãos evangélicos conseguem realmente pensar e não são, afinal, “pobres, ignorantes e fáceis de comandar”, como o jornalista Michael Weisskopf notoriamente observou há quase duas décadas. O exemplo mais recente desta descoberta apareceu em uma recente seção de opinião do Wall Street Journal, escrita por Jonathan Fitzgerald, intitulada “Ganhando Não Apenas Corações, Mas Também Mentes“. O subtítulo é mais do que uma sugestão sobre o que o artigo irá tratar: “Evangélicos andam, lentamente, em direção à vida intelectual.”

O autor cita o livro de 1994 de Mark Noll, “O Escândalo da Mente Evangélica“, que desencadeou discussões tanto dentro como fora das comunidades que podiam reivindicar o título evangélico. Fitzgerald repete a história contada por Alan Wolfe, há uma década atrás, de que os evangélicos finalmente atenderam ao chamado de Noll à vida intelectual, e estão começando a se tornar produtivos neste campo. Como um exemplo, ele faz alusão ao recente simpósio da Comment,O que significaria redimir a psicologia?“, organizado por meu amigo e colega Russell D. Kosits.

Dada essa onda de atenção da mídia, acredito que duas perguntas devem ser feitas. Em primeiro lugar, a vida intelectual evangélica é realmente tão nova assim? E, em segundo, o que exatamente é um evangélico?

Porque a segunda pergunta é, obviamente, mais básica, ela é o lugar para começar. O que é um evangélico? De forma simples, não há uma resposta única, que garanta um assentimento universal. Segundo algumas estimativas, existem dezenas de milhões de evangélicos apenas nos Estados Unidos, se utilizarmos uma definição bastante ampla, que inclui católicos romanos conservadores e cristãos ortodoxos. Outros preferem definir os limites dentro dos “solas” históricos da Reforma Protestante: sola scriptura, sola gratia e sola fide. No entanto, outros traçam as origens do evangelicalismo a uma série de reavivamentos no mundo de fala inglesa, começando com o Grande Despertamento no século XVIII e culminando com as cruzadas de Billy Graham no século XX. O foco aqui está em uma experiência de conversão facilmente identificável que marca um limite temporal claro entre “não salvos” e “salvos”.

Não vou tentar fazer o que os outros não têm conseguido – ou seja, formular uma definição indisputável sobre evangélico. No entanto, vou observar que o evangelicalismo, longe de ser um movimento unificado, pode ser melhor compreendido como um fenômeno abrangente, cobrindo uma variedade de grupos diferentes, os quais reivindicam, de alguma forma, a centralização de suas vidas no evangelho de Jesus Cristo. Nem todos esses grupos são comunidades que representam tradições intelectuais únicas, mas muitos o são.

Por exemplo, se fôssemos procurar uma particular tradição intelectual luterana, não seria preciso ir mais longe do que na Valparaiso University de Indiana e no Sínodo de Missouri da Igreja Luterana, um corpo que alimentou o falecido Pe. Richard John Neuhaus, que nunca deixou completamente de ser luterano, mesmo depois de se tornar Católico Romano. Os luteranos, que foram os primeiros a serem rotulados de evangélicos no século XVI, criaram instituições numerosas e respeitadas de ensino superior, especialmente no Centro-Oeste superior, onde eles tendem a concentrar-se.

Depois disso, há os cristãos reformados, herdeiros de João Calvino, em cuja tradição meu próprio empregador, o Redeemer University College, está firmado. Embora o Calvinismo tenha assumido formas bastante diferentes em diferentes países, um elemento unificador é a ênfase no ensino distintamente cristão. Dentro de seus respectivos contextos, Woodrow Wilson e Abraham Kuyper eram ambos cristãos reformados dedicados que buscavam viver as implicações da redenção de Cristo em toda a vida humana, incluindo a vida da mente e, é claro, da política. Wilson serviu como presidente da Universidade de Princeton, enquanto Kuyper fundou a Universidade Livre de Amsterdã.

E mesmo as figuras evangélicas mais visíveis ao público, os notórios evangelistas de televisão que são regularmente alvos de ataques e escárnio pelos meios de comunicação e até mesmo por outros cristãos, já entraram em ação. Basta mencionar a Oral Roberts University, a Universidade Liberty, de Jerry Falwell, e a Universidade Regent, de Pat Robertson, para lembrar que mesmo aqueles que, na mente do público, não são imediatamente associados com o exercício de reflexão acadêmica cuidadosa têm, no entanto, considerado apropriado estabelecer instituições de ensino superior.

Tudo isso nos permite dizer que, apesar do suposto desenvolvimento tardio da mente evangélica, várias tradições que compõem o evangelicalismo têm estado nesta empreitada por muitas décadas, se não séculos. Eles simplesmente não fizeram isso sob o rótulo de evangélicos, o que pode explicar por que os meios de comunicação populares não tomaram conhecimento disso até hoje.

Apesar desta longa história sobre o que melhor poderia ser chamado de mentes evangélicas – no plural –, nós bem sabemos que nem todas as universidades fundadas como centros de educação cristã mantiveram-se com tais. Harvard, Yale e mesmo Princeton são exemplos óbvios. A história é, hoje, familiar. Cristãos devotos estabelecem uma instituição de ensino superior, inicialmente para formar um clero e, em seguida, para educar em outras disciplinas acadêmicas. Com o tempo e o passar das gerações, a universidade torna-se secularizada, à medida em que o método científico, juntamente com uma crença na neutralidade religiosa da razão, vem a expelir as convicções cristãs. Eventualmente, até mesmo as faculdades de teologia abandonam seus vínculos confessionais, abraçando completamente a cosmovisão positivista que sustenta as outras disciplinas não-teológicas.

E por essa história ter se repetido tantas vezes, muitas pessoas, incluindo cristãos e não cristãos, têm concluído que buscar a vida da mente implica necessariamente eliminar os supostos “grilhões” da crença, como demonstrado pelo triste caso de Philip Wentworth, há mais de oito décadas.

Por contraste, eu sugeriria que os cristãos estão em uma posição muito melhor do que a geralmente reconhecida para contribuírem com o atual debate intelectual. Por quê? As várias abordagens seculares à academia estão se vendo confrontadas com uma diversidade estonteante de coisas e aspectos que compõem o cosmos. A natureza do empreendimento acadêmico exige o trabalho de dar sentido a tudo isso de alguma forma sistemática. Se acreditamos no caráter unívoco da razão – que ela fala em uma só voz a todos os seres humanos –, devemos, a princípio, ser capazes de, através do seu exercício, chegar às mesmas conclusões quanto à natureza da realidade.

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Mas é claro que isso está longe de ser o caso. Os seguidores de Charles Darwin acreditam que a complexidade das formas de vida, incluindo a natureza multifacetada das atividades culturais humanas, tem sua origem no simples mecanismo biológico da seleção natural. Aqueles que seguem Sigmund Freud ligam as atitudes humanas – ou os seus comportamentos – à influência subconsciente de fatores psicossexuais com raízes na educação precoce. Marxistas traçam tal comportamento aos mecanismos autônomos das forças produtivas, com raízes na realidade econômica material e concreta. Obviamente, essas três escolas não podem estar todas corretas. No entanto, se a razão fala sempre e em toda parte com a mesma voz, então talvez o problema esteja nas faculdades mentais daqueles cujas interpretações do mundo estão em conflito.

Mas mais uma vez, não. Não é que Darwin, Freud e Marx sejam estúpidos ou defeituosos em seu exercício da razão. A dificuldade central, em vez disso, pode ser associada à tendência daqueles que não possuem um embasamento teísta a procurar um princípio de unidade no âmbito imanente do cosmos. Isso, eu argumentaria, só pode levar a becos sem saída intelectuais, porque a enorme complexidade do cosmos inevitavelmente irá desafiar tais tratamentos reducionistas. É certo que acadêmicos, tantas vezes em perigo de confundir suas teorias sobre a realidade com a realidade em si, tendem a defendê-las com a própria vida, enquanto aqueles que estão no chão encontram-se, eventualmente, dispostos a seguir em frente em direção a coisas mais promissoras.

Em contraste, porque nós reconhecemos, nas palavras do Apóstolo Paulo, que todas as coisas subsistem no Filho de Deus (Colossenses 1:17), estamos livres da necessidade de ter de encontrar um princípio de unidade dentro da própria criação. Reconhecendo, como Oliver O’Donovan, que “a unidade é própria do Criador, e a complexidade, do mundo criado”, nós entendemos que não temos nada a temer dessa complexidade. Não precisamos tentar, arbitrariamente, localizar um único princípio criado que mantenha todas as coisas juntas. Nosso mundo pertence a Deus e, no quadro mais amplo da soberania divina, podemos explorar livremente as complexas interligações entre os vários níveis de causalidade que operam, simultaneamente, em todas as circunstâncias. Podemos afirmar os fatores psicológicos, econômicos e biológicos onde e quando os encontrarmos sem cair na armadilha de supor que um deles representa a chave para a realidade como um todo.

Isto significa que cultivar a mente evangélica não pode simplesmente nos amoldar em versões cristãs de, digamos, rawlsianos, marxistas ou derrideanos. Se formos assim, não só não teremos nada distintivo para contribuir, como também estaremos simplesmente repetindo os erros reducionistas que deveríamos estar expondo. E pior: nós inevitavelmente seguiremos os caminhos de secularização percorridos por tantas instituições acadêmicas e acadêmicos individuais no passado. Deveríamos, pelo contrário, ser acadêmicos piedosos, explorando o mundo de Deus em toda a sua complexidade, afirmando as verdades parciais em muitas escolas de pensamento seculares e pagãs, enquanto definitivamente reconhecemos que as reivindicações abrangentes de Cristo para com a academia exigem uma abordagem distinta e fundamentalmente em desacordo com aquelas.

Buscar a vida intelectual como cristãos pode ou não chamar a atenção da mídia. Mas isso, em todo o caso, não pode ser a nossa principal consideração. Acima de tudo, em nossas motivações, deve estar o desejo de responder ao chamado de Deus à fidelidade em tudo que fazemos. Traga isso elogios ou a perseguição, aplausos ou vaias, devemos fazê-lo como ministros do reino de Deus, inspirados pelo mandamento de amar a Deus acima de tudo e de amar os nossos próximos, que são criados à sua imagem.

Cultivar a mente cristã não é um exercício opcional para a comunidade dos crentes, mas é uma atividade firmemente ancorada na famosa máxima de Sto. Anselmo da Cantuária, Credo ut intelligam (“Creio para que possa compreender”), que por sua vez está enraizada nas próprias Escrituras: “o temor do Senhor é o princípio da sabedoria” (Provérbios 1:7).

Traduzido por Fernando Pasquini Santos e revisado por Jonathan Silveira.

David T. Koyzis é doutor em Filosofia pela Universidade de Notre Dame e atualmente é professor de Ciência Política na Redeemer University College, em Ancaster, Ontário, onde leciona desde 1987. Em 2004, sua obra Visões e ilusões políticas, publicada por Edições Vida Nova, foi premiada em primeiro lugar na categoria não ficção/cultura pela The Word Guild Canadian Writing Awards.
Neste estudo abrangente e atualizado, o cientista político David Koyzis examina as principais ideologias políticas de nosso tempo, a saber, o liberalismo, o conservadorismo, o nacionalismo, o democratismo e o socialismo. Koyzis faz tanto uma análise filosófica quanto uma crítica honesta a cada ideologia, revelando os problemas de cosmovisão inerentes a cada uma delas, destacando seus pontos fortes e fracos. Além disso, ele oferece modelos alternativos que são fruto do engajamento histórico de cristãos na arena pública ao longo dos tempos.

Escrito sob uma perspectiva bastante ampla e analítica, Visões e ilusões políticas reafirma, em sua segunda edição ampliada e atualizada, o compromisso de ser um guia útil e sensível, sobretudo para aqueles que atuam na esfera pública, analistas culturais, eruditos, cientistas políticos, enfim, todos os que se interessam pelo pensamento político.

Publicado por Vida Nova.

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