A visão bíblica do trabalho | John Koessler
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24/maio/2024No artigo “Sexo e mais sexo o tempo todo”[1], Theodore Dalrymple ilustra um fenômeno crescente em nossos dias, a saber: o abandono da ordem e a liberalidade sexual. Nesse texto, um comentário feito por Dalrymple a respeito da crença que um médico inglês chamado Ellis defendia chama a atenção. Ele afirmou:
Ellis acreditava na completa fusão entre duas almas durante o ato sexual, as quais atingiriam união com o criador do universo. Mas para que essa fusão mística tivesse lugar, as relações entre homem e mulher tinham que, primeiro, se libertar de todos os resquícios de considerações piedosas, tais como leis, costumes, e aquilo que era chamado de moralidade.
Na primeira parte desse trecho, descreve-se um quadro do sexo, entre duas pessoas, que não somente os considera como “uma só carne” (usando um conceito bíblico), mas também os conecta com o “criador”. Até aqui, aparentemente, há certa semelhança com a fé cristã. No entanto, é preciso ter a percepção de qual criador Ellis estava se referindo. O trecho acima, em destaque, não nos dá uma resposta objetiva, ou seja, o nome do criador não aparece. Não obstante, os elementos que evidenciam tanto a conexão dos entes entre si quanto deles com o divino apontam para um deus pagão, tendo em vista que no paganismo não há espaço à ordem, à piedade e a tudo aquilo que se entende por moralidade.
Na obra “Casados para Deus“, de Christopher Ash, percebe-se que o escritor estava se referindo às consequências dessa crença ao afirmar: “O sexo chama a atenção em todos os filmes, anúncios e em todas as prateleiras das bancas de jornal. Na verdade não em todas, mas é o suficiente para causar uma forte impressão. A combinação dessa avalanche de exposição com os nossos desejos naturais é explosivo”. Ora, essa explosão é resultado dos desejos desenfreados oriundos de uma cultura pagã que é antagônica à piedade, à ordem e à moralidade.
Ash é autor e escritor residente da Tyndale House em Cambridge. Trabalhou por muitos anos na Proclamation Trust, um programa de treinamento para pregadores e possíveis expositores da Bíblia. Ele é formado em teologia pela Universidade de Oxford, onde, inclusive, recebeu o prêmio Denyer and Johnson após ter sido avaliado por seus examinadores como um dos melhores estudiosos da faculdade. É casado com Carolyn e escreveu vários livros, entre eles: Trusting God in the Darkness, Psalms for you, Job: The Wisdom of the Cross e Marriage: Sex in the Service of God.
Público-alvo
Antes de falarmos sobre o conteúdo do livro, é importante apresentar o público-alvo dessa obra. O autor a escreveu tendo em vista quatro perfis: (1) aqueles que não querem se casar, (2) os solteiros, (3) os noivos e (4) os casados. A respeito do primeiro, o autor afirmou: “Se alguém não tem a intenção de se casar, este livro pode ajudá-lo a compreender e a encorajar quem assim procede” (p. 10). Sobre os solteiros, Ash disse: “Se alguém está solteiro e se pergunta se deve se casar, espera-se que encontre aqui um ensino bíblico claro sobre o que é o casamento e qual é o objetivo e o propósito dele” (p. 10). Do mesmo modo, “Se alguém está solteiro e desapontado porque a oportunidade de se casar não apareceu, espera-se que também encontre aqui algum conforto e encorajamento para viver a vida atual de solteiro com todo o coração e com alegria para Cristo” (p. 10). Já para o terceiro perfil, o inglês usou as seguintes palavras: “Se alguém está noivo, espera-se que este livro o ajude a se preparar para o casamento” (p. 9). Por fim, o seu encorajamento aos casados foi à luz dos seguintes termos: “Se alguém está nos primeiros anos de casamento (ou até em um período posterior), espera-se que o livro o ajude a estabelecer as bases para um bom casamento” (p. 9).
O autor está ciente de que o tema do seu livro não é inédito. Pelo contrário, afirmou que há diversos outros livros e autores que buscaram pensar sobre o casamento, o marido e a esposa. No entanto, como deixou claro, embora o objeto de estudo seja o casamento, o tema central é Deus. A obra não foi escrita para dar dicas aos casais, mas para alertá-los de que além das suas relações há um Deus que é testemunha. Com suas palavras: “Quero que este livro comece, continue e termine com Deus firmemente no centro. Ele é o nosso Criador e será o nosso Juiz. Precisamos ouvi-lo” (p. 14). Portanto, não importa em qual perfil o leitor se identifique, o fundamental será se ele estará ou não disposto a ouvir os conselhos de Deus para sua vida individual ou familiar.
Ocasião
Anteriormente observamos (de forma sucinta) o contexto moderno no que diz respeito ao sexo e seus desdobramentos na produção desse livro. Agora buscarei conectar a ocasião que levou Ash a escrever o livro com a sua tese.
Segundo Ash, antes da existência de qualquer ser humano, já havia um Criador. Dito de outra forma, o Deus-trino sempre foi e continua sendo o Senhor que determina tudo a todos segundo a sua vontade. Não obstante, mesmo diante do Deus soberano, lidamos hoje com certas distorções no que diz respeito ao casamento. Como ele mesmo disse: “Os relacionamentos estão se desintegrando à nossa volta. As pessoas mudam de cônjuge mais rápido do que mudam de marca de máquina de lavar” (p. 15). Foi a partir disso que surgiu o espanto: “Por que os relacionamentos se rompem?”.
O leitor desse livro precisará se atentar na estrutura desta pergunta: Por que e como os relacionamentos se rompem? Explico. Esse livro não estará lidando com questões do tipo “como”. Por exemplo, como podemos ser um bom marido ou esposa? Como melhorar o relacionamento conjugal etc… Da mesma forma, o escritor não será guiado pelos problemas resultantes do “o quê”. Ou seja, perguntas do tipo: o que é o casamento? Viver com alguém é estar casado? Na verdade, o método de Ash no livro girará em torno da forma: “Por quê”. É por meio do “por quê” que encontraremos a sua tese: “Devemos querer o que Deus quer no casamento” (p. 16). Portanto, ao alinhar os nossos objetivos com os objetivos de Deus, receberemos a ajuda daquele que não observa apenas um lado, e sim todas as partes de um indivíduo quer seja casado quer seja solteiro.
Uma abordagem sintética do livro
Tendo em mente a tese do autor, passemos agora ao conteúdo. Nesta seção farei um comentário sintético. O livro contém oito capítulos. O primeiro intitulado : “Uma palavra sobre bagagem e graça”. Segundo: “Casados com um propósito”. Terceiro: “Qual o objetivo de ter filhos?”. Quarto: “Qual o objetivo do sexo e da intimidade?”. Quinto: “O padrão de Deus para o relacionamento matrimonial”. Sexto: “Qual é o objetivo da instituição do casamento?”. Sétimo: “É melhor permanecer solteiro?”. E o oitavo: “Qual é o cerne do casamento?”.
À medida que lemos, os perfis (não querem o casamento, os solteiros, os noivos e os casados) serão citados ora por meio de diagnósticos existenciais ora à luz dos conselhos e modelos bíblicos. No primeiro capítulo, por exemplo, a ideia da “bagagem” envolve todos os perfis. Em geral, seja qual for o estado civil, todos possuem uma história de alegrias e de tristezas quando o assunto é casamento ou relacionamento: seja dos nossos pais, seja dos nossos amigos. Portanto, embora o título defina o público, veja, por exemplo, os capítulos dois e três direcionados aos casados (o mesmo acontece em outros capítulos), Ash dará atenção aos demais perfis.
Por fim, na conclusão da obra, o autor trabalhará a imagem do grande casamento, isto é, quando Cristo vier buscar a sua noiva.
Uma abordagem analítica do livro
Nesta seção, destacarei os principais assuntos presentes em cada capítulo. O primeiro conteúdo desenvolvido por Ash foi à metáfora da “bagagem”. Basicamente, o leitor encontrará uma tríade temática que envolve passado, presente e futuro de um indivíduo. “Bagagem”, no contexto imediato, significa: “história”. Assim, segundo o autor, todos carregam sobre os ombros suas histórias, sejam elas boas ou ruins. Delimitando essas histórias ao contexto do casamento, a primeira seção defenderá que o evangelho é para aqueles que viveram histórias de fracasso na área sexual. No que se refere ao presente, Ash argumenta que em Jesus o fracassado encontra o perdão e a restauração. Com suas palavras: “Por mais arruinada e devastada que a sua vida possa estar na área do sexo, se você se voltar para Cristo, ele lhe promete restaurar os anos devorados pelos gafanhotos” (p. 26). Por fim, iluminados pela ação graciosa do Pai, o agraciado peregrina, rumo ao futuro, com a certeza de que em Cristo ele se torna santo, inclusive na área sexual.
O segundo capítulo é a “base do livro” (p. 33). Nesse momento, Ash irá desenvolver os fundamentos do casamento. Para cumprir esse objetivo, ele se debruça nos textos de Gênesis 1.26-31 e Gênesis 2.15-25, com o intuito de defender o seguinte princípio: no casamento há duas pessoas com um único propósito: “Servir ao Deus Criador” (p. 36). Outro tema que aparece nesse capítulo é a solidão. Após citar Jay Adans. Este alegou que: “O motivo do casamento consiste em resolver a solidão” (p. 38), Ash discordará desse pensamento e proporá que o casamento não é o antidoto para a solidão por duas razões: a primeira porque o contexto de Gênesis 2 não nos leva a esse antidoto; e segundo, os demais textos bíblicos não apoiam a ideia de Adams. Por fim, gostaria de fazer uma menção para a seção em que ele defende que o casamento não foi criado por Deus para suprir as necessidades dos cônjunges. Por que não? Porque, segundo o autor, um relacionamento nesses termos não representa um amor verdadeiro (p. 43-44) e pode destruí-lo (p. 44-47).
No parágrafo anterior, afirmei que o capítulo dois é a base do livro. Isso ficará mais evidente neste momento, pois, os capítulos três, quatro e seis estarão estritamente ligados ao capítulo dois. Explicarei a seguir. No capítulo 2, Ash fez a seguinte pergunta: “Por que Deus fez os seres humanos homem e mulher?” (p. 32). A resposta será o conteúdo dos capítulos posteriores. Vejamos: Resposta 1: sexo é para ter filhos, e filhos são uma coisa boa (Cap 3). Resposta 2: sexo é para a intimidade fiel e o relacionamento íntimo é uma coisa boa (Cap 4). Por fim, a resposta 3: “o casamento impede que os desejos sexuais destruam a sociedade, para que a sociedade não incorra no caos sexual” (Cap. 6). Com outras palavras esses capítulos abordarão três razões tradicionais do casamento: “Filhos, relacionamento e ordem social” (p. 54).
No quinto capítulo, Ash desenvolve o padrão de Deus para o relacionamento matrimonial. Baseado nos textos de Efésios 5.22-33 e Colossenses 3.18-19, 1 Pedro 3.1-7 a tese é: a mulher deve se submeter ao marido e este deve amar a mulher. Com o contexto moderno em mente, Ash continua: “Não precisamos ficar na defensiva. Esse é um lindo padrão. Ele mina da mesma forma a opressão do chauvinismo masculino e o falso alvorecer do feminismo secular agressivo. Precisamos prestar muita atenção a esse padrão. Deus criou o mundo assim: com homens e mulheres feitos igualmente à sua imagem, e aos quais foi igualmente confiada a alegre honra de governar seu mundo bom. Nós somos iguais e diferentes” (p. 92). Por fim, Ash desenvolve uma aplicação da tese. Com suas palavras: “No fundo, esse padrão é uma questão de atitudes e não de regras” (p. 104). Com outras palavras, tanto o homem quanto a mulher devem lembrar-se, diante da cruz, de suas tarefas e agirem. Nesse sentido, o movimento será de ação mútua e não de cobrança parcial.
No sétimo capítulo, o escritor se dedicará em pensar sobre aqueles que se encontram solteiros, seja por opção seja porque ainda não encontraram a pessoa certa. No entanto, ele deixa claro que a vida sexual envolve o serviço a Deus, e não simplesmente um mero prazer existencial. Nesse sentido, se a pessoa decide não se casar, mas continua com desejos sexuais, Ash orienta que se case (p. 145-147). Toda a reflexão sobre essa temática estará amparada pelo texto de 1Coríntios 7. 7-38 e, a meu ver, suas argumentações são claras e objetivas.
O último capítulo, ele responderá a seguinte pergunta: qual é o cerne do casamento? A minha resposta, tendo em vista o conteúdo já lido, é: estar ciente de que, casado ou não, nós estamos diante de Deus. A resposta de Ash é semelhante à minha, porém, ele destaca a importância de sermos fiéis: “O cerne do casamento é a fidelidade” (p. 158). Alguns poderiam concluir que essa fidelidade se resume apenas aos conjunges. Não obstante, o contexto deste capítulo provará que não. Com isso, surge a importância da minha resposta (influenciado pelo contexto geral do livro) que é: devemos ser fiéis ao nosso cônjuge por fidelidade a Deus. Isto é, por estarmos diante de Deus é que precisamos ser fiéis. De outra forma, não podemos ser fiéis sem Deus. Portanto, ser casados para Deus envolve sermos fiéis a Ele e à aliança que fizemos diante dele.
Em suma, o livro contém uma breve conclusão, em que o autor encoraja o seu leitor a pensar sobre o meta-casamento (O casamento eternal). Isto é, o casamento perfeito não é uma ilusão. Pelo contrário, ele está por vir. E o grande notícia é a de que o Noivo não levará em consideração a nossa bagagem (frustação, separação, fidelidade), mas, com sua graça, pegará sua noiva mesmo em seu estado de fracasso, e pela mão a levará para a sua casa eterna.
Considerações finais
O livro, Casados para Deus é mais um lançamento de edições Vida Nova e encorajo a todos, seja qual for o seu perfil (casado, solteiro, noivo), a lerem. Darei quatro razões: primeiro, porque Ash trabalha os temas com muita objetividade e clareza. Segundo, em cada capítulo, o escritor apresenta uma história (real ou fictícia) para ilustrar o problema que ele está trabalhando naquele bloco específico. Terceiro Ash é um cristão fiel. Isto é, ele não levou em consideração as crenças da cultura moderna (sobretudo sobre o homem e mulher), mas com maestria trabalhou textos difíceis aplicando-os com amor e convicção. Em quarto lugar, diferentemente de Ellis que defendia que a relação deveria ser sem leis, Ash, guiado pela Santa Escritura, mostrou a beleza que é sermos casados e obedientes ao padrão de Deus.
Notas
[1] DALRYMPLE, Theodore. Esse artigo se encontra na obra: Nossa Cultura… ou o Que Restou Dela. 26 ensaios sobre a degradação dos valores. São Paulo: É Realizações, 2015.
Gedimar Junior é professor de Teologia e Filosofia no Seminário Betel Brasileiro. Formado em Teologia e Mestre em Hermenêutica pelo Betel Brasileiro. Mestre em Divindade pelo Seminário Martin Bucer e bacharelando em Filosofia pela Academia Atlântico. Atualmente, é editor-chefe da Revista Reflexão Teológica e Missiológica, organizador do projeto de pesquisa: Pensamento e obra de John Webster. |