Retrospectiva Vida Nova 2018 | Jonathan Silveira
21/dez/2018A idolatria da relevância: Uma entrevista com Os Guinness
17/jan/2019This Is the Ritual: Stories
Rob Doyle
Bloomsbury, 2017
The Things We Do That Make No Sense: Stories
Adam Schuitema
Northern Illinois University Press, 2017
Um dos mitos mais persistentes da modernidade é a noção de que religião é algo em que você acredita, e não algo que você faz. A religião como um “sistema de crenças” foi a invenção de um Iluminismo que reduziu o cristianismo a um conjunto de proposições supersticiosas precisamente com o fim de descartá-lo. Isso, por sua vez, moldou a história que contamos a nós mesmos sobre a secularização. Somos “seculares” porque descartamos certos tipos de crenças (sobre Deus, os deuses e o sobrenatural), ou porque fugimos completamente da superstição da crença, chegando ao território da “racionalidade” dura e fria.
Há apenas um problema com isso: a religião nunca foi apenas uma constelação de crenças. O judaísmo, o cristianismo e o islamismo são “credos” não simplesmente porque envolvem afirmações proposicionais sobre entidades sobrenaturais, mas porque envolvem os crentes em um modo de vida, e os reúnem em uma narrativa demonstrada em um repertório de rituais que, por sua vez, definem uma postura que tomamos em relação ao mundo. Como o antropólogo Pierre Bourdieu disse certa vez: “A crença não é um ‘estado de espírito’, e muito menos um tipo de adesão arbitrária a um conjunto de dogmas e doutrinas instituídos (‘crenças’), mas sim um estado do corpo. Acreditar é algo que você faz, e algo que você faz com seu corpo.
Isso também significa que não somos tão seculares quanto gostamos de imaginar – não porque concordamos com proposições sobre entidades divinas, mas porque ainda somos animais rituais. Talvez nossas filosofias sonhem com menos e menos coisas no céu e na terra, mas isso não significa que não estamos mais nos devotando a algo, nos entregando às liturgias que nos rotulam e nos animam, dando-nos algum controle sobre o caos e administrando nossa angústia.
Assim, o que é que nos torna religiosos: nosso conjunto epistêmico ou nossos atos de devoção? Será que nossa secularização apagou nossa inclinação litúrgica? Ou será que a permanência e a migração do ritual atestam algo sobre a fome humana, ou ainda, sobre a natureza humana? E se a crítica literária observasse a presença permanente da religião na literatura não ao contar o número de referências a Deus, mas observando a persistência do ritual?
Recuperar a religião como ritual não é apenas outra maneira de domesticá-la ou de explicá-la. Em vez disso, o ponto é apreciar o encantamento de nossos ritmos, a encarnação da devoção, a maneira como os rituais são uma ligação final à sacramentalidade que diz algo sobre nós mesmos. Mesmo que uma era secular esteja cada vez mais disposta a jogar fora uma série de crenças e normas que associamos à religião – precisamente porque as associamos à religião –, estamos muito longe de desistir do ritual. Não é que somos não-religiosos; nós apenas habitamos em diferentes liturgias. Nossa propensão a encontrar frestas para nossos anseios e esperanças é um testemunho indireto de nossa natureza duradoura de adoradores. O Homo religiosis é fundamentalmente homo liturgicus.
Você pode ver essa persistência na ficção americana do século XX – e não apenas em Flannery O’Connor (como seria de esperar). Em uma de suas primeiras histórias, “Packed Dirt, Churchgoing, a Dying Cat, a Traded Car”, John Updike observa: “Nós, na América, precisamos de cerimônias, e isso, marinheiro, eu suponho que seja o cerne do que escrevi”. Em Infinite Jest, tanto a Academia de Tênis Enfield quanto a casa de recuperação Ennet House são locais de intensa observância ritual. Até mesmo o mundo esquecido por Deus de A Estrada de Cormac McCarthy, retrata personagens que, vivendo à beira da sobrevivência e da animalidade, se apegam ao ritual como uma forma de permanecer humanos:
O menino sentou-se cambaleando. O homem observou-o para não cair nas chamas. Ele abriu buracos na areia para os quadris e ombros do menino onde ele iria dormir, e sentou-se segurando-o enquanto despenteava seu cabelo, diante do fogo para secá-lo. Tudo isso parecia uma antiga unção. Que assim seja. Evoque as formas. No lugar onde você não é nada, construa cerimônias no ar e respire-as.
Se os rituais nos permitem ser humanos, é porque eles nos envolvem em algo maior, mais antigo e diferente de nós mesmos, carregando um sopro de transcendência e encantamento. Eles são um remanescente persistente de outra era, algo que afasta nossa autonomia e individualismo. Os rituais nunca são apenas algo que você faz; eles fazem algo com você.
Mas os rituais não são nem canais para o pensamento e nem repertórios de conhecimento. Eles nos lembram que existe um tipo de crença que expressamos com as mãos, de joelhos, deitados de lado. Ao tentar elaborar sobre essa forma corporal da crença, Bourdieu invoca um exemplo específico: a religião da cavalaria. Seguindo o trabalho de George Duby, Bourdieu critica o que ele chama de relatos “mentalistas” da religião que dominam os estudos religiosos, levando a religião a ser considerada um sistema de ideias e proposições. Tal quadro nunca poderia explicar a devoção dos cavaleiros, os rituais do romance e cavalaria. Como Bourdieu observa, citando Duby:
a religião dos cavaleiros “se resumia inteiramente a uma questão de ritos, gestos e fórmulas”, e ele enfatiza o caráter prático e corporal das práticas rituais: “Quando um guerreiro fazia um juramento, o que mais contava, a seu ver, não era o compromisso de sua alma, mas uma postura corporal, ou seja, o contato que sua mão, colocada na cruz, nas Escrituras ou em um saco de relíquias, tinha com o sagrado. Quando ele dava um passo à frente para se tornar o vassalo de um senhor, tratava-se novamente de uma atitude, uma posição das mãos, uma sequência ritual de palavras que tinham de ser apenas pronunciadas para vincular o contrato.
Não é que os cavaleiros fossem insinceros ou não quisessem dizer o que diziam; tais preocupações sobre sinceridade operam a partir de um dualismo que pressupõe que “passamos por” rituais porque “por dentro” acreditamos primeiro em algo – ou seja, que os rituais expressam externamente alguma interioridade mental prévia. Mas isso falha em reconhecer (e honrar) a integridade do ritual – a distintividade da “lógica da prática”, como coloca Bourdieu. Em contraste, Bourdieu está tentando honrar essa lógica distintiva reconhecendo a irredutibilidade da crença encenada. Ritual é a maneira como aprendemos a acreditar em nossos corpos.
Essa percepção – a irredutibilidade do saber como ao saber que – pode ser vista em dois dos textos seminais da filosofia do século XX: Ser e Tempo, de Martin Heidegger, e as Investigações Filosóficas de Ludwig Wittgenstein. Considere apenas um trecho sugestivo de Wittgenstein. Discutindo o know-how que precisamos para jogar um jogo – seja xadrez ou hóquei –, Wittgenstein mostra que esse tipo de conhecimento é mais apreendido do que ensinado. “Alguém pode… imaginar”, ele sugere, “um indivíduo que aprendeu o jogo sem nunca aprender ou formular [as] regras”. Muitas vezes nós pertencemos antes de acreditarmos; nós pertencemos a fim de acreditar; nós praticamos nosso caminho até a crença, e nossas práticas nos sustentam nos tempos sombrios, quando não conseguimos crer.
Essas mudanças de compreensão começaram a chegar à filosofia da religião de tal forma que os filósofos, em vez de meramente analisar as crenças ou fixar-se na coerência e nas implicações dos conjuntos epistêmicos, estão começando a recuperar uma apreciação da religião como algo que fazemos. Não deveria nos surpreender que os filósofos judeus, como Peter Ochs e Steven Kepnes, tenham liderado o caminho (Jewish Liturgical Reasoning [Raciocínio Litúrgico Judaico] de Kepnes é uma entrada exemplar nesses assuntos). Mas também filósofos cristãos, como Nicholas Wolterstorff (mais recentemente em Acting Liturgically: Philosophical Reflections on Religious Practice [Agindo Liturgicamente: Reflexões Filosóficas sobre a Prática Religiosa]), Sarah Coakley, Terence Cuneo (Ritualized Faith [Fé Ritualizada]) e outros, reequiparam a filosofia da religião para considerar a prioridade e irredutibilidade da liturgia e do ritual.
A próxima etapa de tal reflexão, eu sugeriria, seria dar esse mesmo tipo de atenção ao que poderíamos chamar, por falta de um termo melhor, de liturgias seculares. Se nossa devoção ritual migrou em vez de cessar, então não são apenas os religiosos institucionais que se entregam às liturgias. E talvez a literatura, em vez da filosofia, tenha apreciado melhor esse fato.
Foi essa perspectiva que me levou a ler, lado a lado, duas coleções de histórias bem diferentes: This Is the Ritual [Este é o Ritual], de Rob Doyle, e The Things We Do That Make No Sense [As Coisas que Fazemos que Não Fazem Sentido], de Adam Schuitema. Está bem claro que Doyle e Schuitema são escritores muito diferentes, com projetos muito diferentes: Doyle, um talentoso irlandês, é um filósofo de formação que fez um alarde com seu primeiro romance, Here Are the Young Men [Aqui Estão os Jovens Rapazes]. Corajoso e glorioso em transgressão, Doyle é experimental, tecendo junto (outros diriam obscurecendo) ficção e não-ficção, e trabalhando sob (e contra) o peso da literatura irlandesa (isto é, Beckett). Schuitema, que ainda não teve seus quinze minutos, é um escritor mais intencionalmente regional – e com isso não quero dizer provincial, mas sim, um autor localizado, refletindo sua formação no oeste de Michigan. Menos experimental que Doyle, ele é, não obstante, um mestre de sua arte que parece à vontade no conto epifânico sem o ônus da resolução ou da redenção.
Apesar dessas diferenças, pode-se detectar um ambiente compartilhado por trás dessas coleções. Seja o catolicismo da Irlanda de Doyle ou o ethos católico-holandês e católico-polonês do oeste de Michigan de Schuitema, ambas as suas imaginações foram incubadas em ambientes ritualizados, e mesmo quando estes se opuseram a elas. Ambas, de maneiras oblíquas, testemunham a persistência do ritual em uma era secular, mesmo que os mundos – e os rituais – que eles imaginam sejam muito diferentes.
Para Doyle, os rituais da religião são um aroma pairando sobre o mundo dessas histórias, como uma sombria nuvem irlandesa. A história de abertura é chamada de “John-Paul Finnegan, Paltry Realist” [John-Paul Finnegan, Realista Miserável]. Finnegan é um expatriado cheio de autodepreciarão na balsa de volta para Dublin, protestando contra a ambivalência desmotivada de seus conterrâneos em relação à literatura, da qual Finnegan é o único verdadeiro devoto. Seus discursos cheios de profanidades traem suas ilusões de grandeza, mas ele também recebe todas as melhores piadas do livro. Ele esteve se dedicando a uma escola de literatura da qual ele é o único discípulo: “realismo miserável”, que evita qualquer uma das pretensões do ofício e até mesmo qualquer interesse pelos leitores. Em vez disso, o realismo miserável revela-se em “escrever merda”, que, como Finnegan coloca, é a única maneira honesta de encarar a morte. Escrever bem, esperar pela imortalidade literária por meio da excelência, é uma pretensão semelhante a imaginar que Deus ainda está vivo (Nietzsche faz várias aparições na coleção de Doyle). Assim, Finnegan dedica-se à sua magnum opus, Nevah Trust a Christian [Nunca Confie em um Cristão], que ele descreve como seu romance em onze volumes, “com perversidade sem fim, sendo que não havia menos de treze volumes neste romance, se sequer isso podia ser chamado de romance.”
Esta história de abertura, com a sua previsível insulta da religião, é característica de grande parte da coleção de Doyle. As pessoas que possuem crenças religiosas nessas histórias tendem a ser loucas (literalmente). É um pouco como encontrar um estudante do segundo ano que frequentou a escola católica a vida toda e acaba de ler o Crepúsculo dos Ídolos, de Nietzsche. Doyle (como a Irlanda, talvez?) ainda está preso na emoção adolescente de demonstrar transgressão, algo previsível e monótono. As supostamente excitantes descrições de uma menage à trois e outras aventuras sexuais só servem a essa função se você ainda estiver com medo do padre Patrick e da irmã Mary Katherine o reprovando por cima de seu ombro. Em outras palavras: eu me pergunto se Doyle percebe o quanto essa suposta emoção alimenta a persistência da religião.
E, no entanto, até mesmo essa coleção continua assombrada por um tipo diferente de ritual em alguns pontos. Em “No Man’s Land”, a melhor história da coleção, um jovem acaba de voltar da universidade após um episódio de saúde mental (“uma grave aflição nervosa”). Eu achei que fosse a minha própria imaginação encharcada de Agostinho que me trouxe à mente o jovem Agostinho saindo da escola de Cartago e voltando para Tagaste – até que no próximo parágrafo encontramos uma mãe chorosa que se parece com Mônica nos seus últimos dias. A mãe do jovem deixa seu trabalho para cuidar de seu filho em sua depressão. “Em várias ocasiões, eu entrava e via ela chorando na cozinha ou no quintal de cimento, que estava escondido dos vizinhos por paredes altas de tijolos cinza. Às vezes eu a ouvia chorando no banheiro. Ela sempre tentou esconder o choro de mim.” Nós já conhecemos um filho de lágrimas assim.
Ela envolve-o em sua depressão; ela se torna para ele (novamente) um saco amniótico de compaixão, esperando, contra a esperança, de trazê-lo de volta à vida. Sua letargia é aliviada, como você poderia adivinhar, com um ritual de passeios diários numa propriedade industrial abandonada, vagando contemplativamente entre os corredores labirínticos deste local enferrujado da antiga indústria. Aqui ele encontra regularmente um homem de trinta e poucos anos que enlouqueceu, proferindo provérbios sem sentido (“Não há pai. Não há terapia ”). O jovem está abalado e perturbado em grande parte porque vê nesse transeunte delirante um futuro possível para si mesmo. E depois de um sonho arrepiante, uma revelação quebrantadora dá origem a uma nova resolução.
Eu acordei soluçando, encharcando o travesseiro com lágrimas que saíam de mim como nunca antes ou depois, perfuradas com uma desolação que eu sabia ser incurável, uma condição que eu carregaria comigo para sempre. Eu me levantei da cama, apalpando pelo caminho através da escuridão. Eu encontrei o caminho para o quarto da minha mãe e virei a maçaneta da porta. Eu a ouvi suspirando no escuro. “Não se preocupe”, eu disse. “Volte a dormir. Eu sinto muito. Apenas deixe-me deitar aqui no chão, assim mesmo.” Eu podia ouvi-la hesitando, querendo levantar e consertar isso, mas isso não podia ser consertado, e ela se deitou de novo. Eu sabia que ela estava olhando para o alto no escuro, com o rosto desolado de preocupação. Depois de um tempo, ela se levantou e colocou algumas cobertas sobre mim, então voltou para a cama. Fechei meus olhos e tentei ouvir sua respiração.
Rituais não são soluções. Eles não consertam as coisas. Eles são a forma de vivermos com aquilo que não podemos consertar, canais para enfrentar nossa finitude, a maneira como tentamos navegar pelo vale de lágrimas nesse meio tempo. Mas é precisamente por essa razão que eles também podem ser canais de esperança e ritmos de aliança. A mãe-Mônica não precisava dizer nada; ela só precisava estar lá, presente, respirando, cobrindo o menino com cobertas.
Quando ele acorda mais tarde, ele diz a sua mãe que vai ligar para a universidade para falar sobre seu retorno. “Olhando para mim com os olhos arregalados sobre a curva da xícara de chá, minha mãe assentiu vagamente.” (Existem poços indescritíveis de constrangimento e medo nesse “vagamente”.) “Ela hesitou, com medo de esperanças frustradas. Então ela disse: ‘Eu sabia que você faria isso. Eu nunca parei de orar por você. Lágrimas brotaram, sua voz estava rachando. ‘Eu nunca paro de orar por você. É verdade. Eu nunca vou parar.'” Esse é o ritual; e é outra pessoa que faz isso. Assim seja: a mãe como uma monástica, uma beneditina silenciosa em sua oração diária pelo mundo que a esquece, mantendo um fogo vivo para o futuro quando o brilho da transgressão é embotado e a arrogância de nosso Iluminismo se desgasta.
A persistência do ritual nas histórias de Schuitema é menos relutante e mais explícito, mas sem nostalgia ou romantismo. É o mesmo mundo pós-cristão. Mas os cenários de Schuitema também são de pós-guerra e pós-trabalho, ambientes destruídos pela proverbial “nova economia”, pontilhada com os detritos de fábricas fechadas (tudo o que resta de uma fábrica GM fechada é uma ponte para pedestres que não leva a lugar nenhum). O mundo de suas histórias será familiar para vastas multidões de classe trabalhadora em todo o país, a um milhão de quilômetros dos programas de MFA das Ivy Leagues.
Mas uma das diferenças mais marcantes entre os mundos criados por Doyle e Schuitema é o capital social comunitário que persiste no oeste de Schuitema, em Michigan. Como os tênues, mas tenazes tendões de uma teia de aranha, os relacionamentos e as amizades perduram. Há todo tipo de quebrantamento aqui, mas as pessoas não são solitárias. Ao passo que as empresas foram embora, as instituições sobreviveram: o salão da VFW; o beisebol; a paróquia local com o seu peixe frito às sextas-feiras durante a Quaresma; a Peacock Tavern na Cherry Street; a Northcentral Reformed, na rua que silenciosamente brilha com sua vida interior em uma noite de quarta-feira de cinzas; até pais que ainda estão juntos, depois de todos esses anos, ainda tentando descobrir como amar seus filhos pródigos. Essas instituições são as incubadoras de relacionamentos, guardiões da comunidade que sustentam uma rede de segurança para as almas quebradas que se desmoronam em seu abraço. Cada uma dessas instituições organiza seu próprio conjunto de rituais que criam os ritmos de uma vida – o que, na maioria das vezes, mais se parece uma desculpa para aparecer em algum lugar e ser bem-vindo.
A escrita de Schuitema é uma representação maravilhosa da concretude, e isso em dois sentidos. Em primeiro, como já mencionei, essas histórias são localizadas, imersas em lugares, inseridas em bairros que você vem a conhecer. Admito que minha experiência de leitura é condicionada pelo fato de eu ter vivido em uma cidade como a dele; eu fui aos lugares que ele descreve e renomeia. Mas não acho que você tenha que reconhecer esses lugares para sentir essa concretude; a própria escrita evoca a sensação de um lugar. Existe algo encarnacional nisso.
Em segundo lugar, sua escrita é sutil, mas muito tangível, fazendo o leitor participar não apenas com a visão, mas também com o tato e o paladar. Por exemplo, em “Stone Dust”, um chalé em Puerto Vallarta, que fica sobre um estúdio de escultura em pedra, quando Luke, um arremessador da liga principal de beisebol, sai da piscina, a água escorre dele “pontilhando o concreto e desaparecendo segundos depois sob o sol de verão mexicano”. Ele não apenas bebe sua tequila; ouvimos o “gelo batendo nos seus dentes” enquanto ele faz isso. Na boate da rua, onde um Luke mais jovem poderia ter se aventurado, o “pulsar da batida da dança” da música é “mais rápido que o pulso de um homem adulto”. O pó de pedra surge em seu quarto através das ripas no chão. “Ele se misturou com as lâminas do sol e, na obscuridade, se tornou uma fumaça brilhante.” Durante todo o tempo em que ele está no apartamento, ele prova “o grão de pó de pedra em seus dentes”. Quando ele olha de relance para uma jovem mulher na praia, sua “coxa parecia tão lisa quanto o interior de uma concha”.
Essa concretude nos ajuda a imaginar, sentir, ouvir os rituais que governam a vida dos personagens dessas histórias. E esse quadro ritual é dificilmente acidental. Sua importância é sinalizada na história de abertura, “All Your Vanished Men [Todos os Seus Homens Sumidos]”, que é sobre um mistério – mas não um do tipo “quem matou”, mas do tipo por quê. Um professor do ensino médio de 30 e poucos anos vem à competição de culinária no VFW local [clube de veteranos de guerra] exatamente um ano depois que seu pai desapareceu, deixando uma nota: Nenhum jogo sujo. Nenhum crime. Nenhuma mulher envolvida. Em outras palavras: não venha me procurar.
A essa altura, o narrador sabe onde está o pai dele: ele “escolheu o deserto”. O filho não irá atrás dele. Mas ele gostaria de entender o porquê. “Eu não estou procurando por nostalgia. Estou à procura de pistas – para qualquer vestígio de seus planos silenciosos.
E assim ele tenta reviver os rituais do pai antes de partir, para poder habitar em seus ritmos e tentar entrar em seu pensamento. O VFW é uma espécie de santuário: “Às vezes, venho aqui sozinho para assistir ao futebol e me sentar no meio da conversa ambiente dos velhos”. Quando ele volta para a competição, que foi, há um ano, a última ceia de seu pai, por assim dizer, o narrador reconhece equipes familiares: as senhoras mais velhas, vestidas com saias e colocando abacaxi no chili; os metaleiros cujo segredo é carne de búfalo; o time camuflado cozinhando com veado. Mas há um novo time neste ano, um par de freiras, uma velha, e outra mais jovem e “estranhamente bronzeada”. Ele se aproxima da mesa delas por último. A freira mais velha o instrui a comer uma tortilha primeiro. “Limpe o paladar”, ela diz.
Ela olha de novo e alcança a mesa, oferecendo a tortilha para mim – não para minhas mãos, mas para cima, em direção à minha boca. E sem pensar eu estou abrindo a boca, estendendo um pouco a minha língua, onde ela gentilmente coloca a tortilha. Eu fecho minha boca, mas nunca dou uma mordida, deixando-a dissolver lentamente.
Com relação ao chili, eles estão sem copos e colheres. Então a freira mais jovem
pega o cálice de ouro que fica em meio às velas e troféus. Então ela o afunda na travessa e puxa para fora, com filetes de chili escorrendo pelo lado. Ela segura o cálice à minha frente e as freiras mais velhas acenam com a cabeça. “Beba, meu filho.” Eu abaixo minha cerveja, agarro o cálice com as duas mãos e levo-o em direção à boca, parando por um momento para encarar sua escuridão. Eu não quero beber ainda – eu quero ficar neste momento – então eu mantenho minha boca fechada e deixo o chili se acumular em volta dos meus lábios fechados. Então eu engulo.
Talvez em um workshop sobre escrita criativa, alguém poderia se preocupar dizendo que a metáfora seja um pouco simplista, com a alusão eucarística muito direta. Mas é interessante encontrar isso em uma coleção de uma editora universitária, não uma editora religiosa. A fome fala sobre algo humano. De fato, é nesse ponto que o narrador observa: “Essas são as coisas que fazemos, e elas não fazem sentido”. Mas a conclusão dessa coleção de histórias sugere algo diferente: essas são as coisas que fazemos que fazem sentido de outra forma, como uma lógica do coração que tem suas próprias razões.
Às vezes as coisas sem sentido que fazemos são as coisas que precisávamos fazer para suportar o desgosto daquilo que não faz sentido, a tragédia que não deveria acontecer, o mal que não merece um lugar no cosmos. Esses rituais – as coisas que fazemos repetidas vezes “sem motivo” – misteriosamente integram a capacidade de fazermos as coisas que nunca sonharíamos fazer – as coisas que temos que fazer que tentaremos esquecer e esperar nunca mais fazer. Isso é poderosamente retratado em “Last Year’s Palms”, uma história sobre um casal lutando contra as consequências da depressão de seu filho devido ao abuso na infância. A esposa de Larry Jacobsen, Elizabeth, firmou um acordo com seu marido enquanto caminhavam por este vale com Ben: ele se juntaria a ela na igreja aos domingos. Mas nesta mesma noite, num dia de semana, ele foi além das expectativas e se juntou a ela em um culto de quarta-feira de cinzas, deixando seus amigos no bar Peacock. Ele é cético, mas não resistente.
Se há alguma coisa, é sua autoconsciência o incomodando. Durante os longos silêncios, ele se lembra do horror de deixar o filho gritando na unidade de saúde mental, com sua mente o dirigindo às lembranças de Ben voltando do primeiro dia no jardim de infância. Isso o deixa preocupado de que sua adoração seja falsa, de que sua cabeça, que se inclina com tais pensamentos, não esteja orando. “Ela cresceu com rituais”, ele reflete. “Ele não.” Ele se sente ridículo; ele acha que os outros parecem absurdos. Mas mal ele percebe que o dom do ritual é uma fuga do culto da sinceridade e uma libertação das cadeias paralisantes da autoconsciência. Liturgia é a forma de nos perdermos para sermos encontrados.
A epígrafe da coleção de Schuitema é uma linha de “A Father’s Story”, de Andre Dubus, que resumidamente expõe aquilo em que tenho andado em volta: “Pois o ritual permite que aqueles que não podem sair do secular realizem o espiritual, da mesma forma que a dança permite ao homem calado uma cerimônia de amor”.
Há uma maravilhosa subdeterminação a essa sugestão. Seriam esses rituais ficções? (Seria a ficção um dos nossos rituais duradouros?) Até a própria pergunta é ambígua. E se imaginássemos esses rituais como ficções? Isso os tornaria menos reais, coisas inventadas? Seriam eles imposições de ordem em um caos que é supostamente real? Ou seriam eles reveladores: desvelando uma ordem, da mesma forma como a ficção nos diz a verdade? E se os rituais fossem a maneira como dançamos junto com o amor que dirige o cosmos?
Traduzido por Fernando Pasquini Santos e revisado por Jonathan Silveira.
Texto original: Homo Liturgicus: On the Persistence of Ritual in Contemporary Fiction. Image Journal.
James K. A. Smith (PhD, Villanova University) é professor de Filosofia na Calvin College, onde também ocupa a cátedra Gary e Henrietta Byker de Teologia e Cosmovisão Reformadas Aplicadas. É editor da revista Comment, além de autor e organizador de vários livros, entre eles 'Você é aquilo que ama' e 'Desejando o Reino', publicados por Vida Nova. |
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Uma Teologia Filosófica da Cultura Em Desejando o reino, o filósofo James K. A. Smith reformula todo o projeto da educação cristã focando o processo de aprendizado por meio da análise de três temas principais: liturgia, formação e desejo. Neste livro — o primeiro de uma trilogia que traz uma abrangente teologia da cultura —, ao mesmo tempo que o autor repensa a educação cristã como um processo formativo que reorienta nosso desejo em direção ao reino de Deus, defende a ideia de que a adoração cristã é, na realidade, uma prática pedagógica que treina nosso amor. Publicado por Vida Nova. |
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