Sofrimento, alegria e presença encarnada | Michael Sacasas

A regularidade das leis da natureza elimina os milagres? | Roberto Covolan
12/dez/2014
Por que a filosofia é importante para a teologia protestante? | Jonas Madureira
15/dez/2014

“Muitas coisas tinha que te escrever; todavia, não quis fazê-lo com tinta e pena, pois, em breve, espero ver-te. Então, conversaremos de viva voz.” Com estas palavras João termina a terceira epístola do Novo Testamento que leva seu nome. A carta foi escrita há quase 1.900 anos, mas o sentimento ainda é totalmente reconhecível. De fato, provavelmente muitos de nós já expressamos sentimentos semelhantes; só que para nós é mais provável que tenhamos preferido renunciar a um meio eletrônico em favor de uma comunicação face a face. Há coisas que são melhores ditas pessoalmente; e, sem dúvida, esta não é uma ideia na qual só tropeçam os interlocutores do século 21 cansados do mundo digital.

Ainda assim, João de fato escreveu sua carta. Havia coisas que o meio não poderia transmitir muito bem, mas ainda assim ele disse tudo o que poderia ser dito usando caneta e tinta. Ele reconheceu os limites do meio e usou-o em conformidade com isso, mas não o menosprezou por causa desses limites. Caneta e tinta não eram menos autênticos, nem menos reais, nem foram considerados antinaturais. Eles eram simplesmente inadequados para o que quer que João queria comunicar. Para isso, a plenitude da presença física foi considerada necessária. Foi, penso eu, uma aplicação prática de uma convicção teológica que João já tinha memoravelmente articulado em outros textos.

No primeiro capítulo do seu Evangelho, João escreveu: “E o Verbo se fez carne e habitou entre nós.” Isso é uma declaração sucinta da doutrina da encarnação, que cristãos de todo o mundo celebram na época do Natal. A obra de Deus exigiu a personificação da presença divina. As palavras não foram suficientes, e por isso o Verbo se fez carne. Ele chorou com aqueles que choravam, segurou a mão daqueles que outros não tocariam, partiu o pão e comeu com marginalizados, e sofreu. Tudo isso exigiu a plenitude da presença física. João entendeu isso, e tal doutrina tornou-se uma característica marcante de sua teologia.

Da minha parte, esses pensamentos estiveram vagando dentro e fora de minha mente, de forma incipiente e inarticulada, desde o tiroteio de Newtown, e, especificamente, enquanto eu pensava sobre os comentários acerca disso em todo o nosso ambiente de mídia. Eu estava perturbado pelo impulso de postar algum comentário sobre o tiroteio, mas, inicialmente, não acho que entendi completamente o que me perturbava. A princípio, foi só uma sensação de que eu tinha que dizer alguma coisa, mas então comecei a crer que eu tinha, sim, que dizer alguma coisa.

Pensar nisso como uma questão de “ter que dizer alguma coisa” foi algo que fez reconhecer-me como um autoindulgente sem justificativa. E eu ainda acredito que isso é parte do quadro geral, mas ainda há mais. Pensar nisso como uma questão de “ter que dizer alguma coisa” apontou para as limitações dos meios de comunicação através dos quais estamos acostumados a interagir com o mundo. E não importa o quanto as imagens aumentem na mídia digital, a palavra ainda é proeminente nela. Na maioria dos casos, se temos que interagir com o mundo através da mídia digital, nós precisamos usar nossas palavras.

No entanto, nós sabemos que nossas palavras muitas vezes nos enganam e se revelam inadequadas em face das mais profundas experiências humanas, sejam elas trágicas, extáticas, ou sublimes. E ainda são nesses momentos, talvez especialmente nesses momentos, que sentimos a necessidade de existir (por falta de uma palavra melhor), quer para confortar, ou para compartilhar, ou para participar. Mas o meio mais adequado para fazê-lo é o corpo, e é o corpo que é, por necessidade, abstraído de tantas coisas em nossa interação digital com o mundo. Com nossos corpos, podemos nos comunicar sem falar. É uma comunicação pelo “ser” e talvez também pelo “fazer”, ao invés de pelo falar.

Leia também  Como Jonathan Edwards ajudou a salvar meu ministério | Jason Meyer

É claro que a presença física pode parecer, em comparação às suas contrapartes menos “corpóreas”, tanto menos eficaz quanto mais cheia de riscos. A presença física não goza de nenhuma das amplificações que as tecnologias de comunicação proporcionam. Ela não pode, afinal, ir além do lugar e tempo imediatos e é uma presença vulnerável. A presença física nos envolve com os outros, e muitas vezes de formas incontroláveis e confusas que são desconfortáveis e embaraçosas. Mas essa estranheza é também uma medida do poder latente da presença física.

A presença física também nos liberta da necessidade de buscar prematuramente explicações racionais, soluções e respostas. Se eu só posso falar, então o uso de palavras vai me obrigar a procurar um sentido. O silêncio pode contemplar o misterioso, o absurdo, e o ato de graça, mas as palavras procuram apenas razões e resoluções. E quando elas aparecem no seu devido momento, não são um empreendimento totalmente inútil; no entanto, este devido momento geralmente não está em situações como as de um evento trágico. No contexto após uma situação trágica, quando o silêncio, e o “estar com” e o toque podem ser as únicas respostas adequadas, então somente a presença física pode funcionar. Seus consolos são irredutíveis. Acredito que isso é parte do significado da Encarnação: o abraço da plenitude de nossa humanidade.

As palavras e os meios de comunicação que as transmitem têm o seu lugar, é claro, sendo necessários e, por vezes, até mesmo bons e belos. Mas as palavras são muitas vezes incompletas, insuficientes. Não podemos nos contentar em sermos os “usuários desencarnados” de mídia eletrônica com os quais Marshall McLuhan se preocupava, nem podemos permitir que os pressupostos e prioridades da mídia desencarnada restrinjam nossa compreensão do que significa ser um humano neste mundo.

No final da segunda epístola que leva seu nome, João também escreveu: “Ainda tinha muitas coisas que vos escrever; não quis fazê-lo com papel e tinta”. Mas, neste caso, ele acrescentou mais uma cláusula. “Pois”, ele continua, “espero ir ter convosco, e conversaremos de viva voz, para que a nossa alegria seja completa”. Alegria completa. Seja o que signifique “a nossa alegria seja completa”, ela é uma função da presença física, com todos os seus riscos inerentes e limitações.

Que a sua alegria seja completa.

Traduzido por Fernando Pasquini Santos e revisado por Jonathan Silveira.

Texto original aqui.

Michael Sacasas é diretor do Center for Study of Ethics and Technology. Obteve seu MA em estudos teológicos no Reformed Theological Seminary e está concluindo seu Ph.D. em Textos e Tecnologia na University of Central Florida.

Deixe uma resposta

%d blogueiros gostam disto: