Um poema estranho sobre Noé | Silas Chosen

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Há mais ou menos 31 anos, uma professora pediu para seus alunos escreverem um poema sobre a paz. E um dos alunos, tendo crescido numa família judia, olhou para a história clássica de Noé e escreveu um poema que impactou tanto sua professora que ela inscreveu-o num concurso literário, que o garoto ganhou. O estudante então decidiu que não iria mais perseguir a carreira de matemático. Quinze anos mais tarde, ele estreava seu primeiro longa-metragem como diretor. Um thriller psicológico sobre um matemático que enxerga um código secreto na Torá, e começa a ser perseguido, e a sofrer efeitos de paranoia extrema, numa trama que envolve judaísmo antigo, a cabala e computadores futuristas.

Darren Arenofsky, no entanto, nunca esqueceu aquele poema que iniciou sua carreira artística. Um poema que usou a história de Noé para contar sobre como o próprio Noé não foi capaz de barrar a maldade do mundo, levando-a para dentro da Arca e carregando-a ao povoar o resto da Terra. E hoje, conformando-se com sua versão do ateísmo, Aronofsky lança uma superprodução hollywoodiana que exprime suas inspirações sobre a história do Dilúvio.

Falo sobre isso para expressar um ponto que já era muito claro para mim antes de assistir o filme Noé, e que ficou ainda mais claro após assisti-lo: Aronofsky não tinha a menor intenção de discutir teologia ou Bíblia com seu filme. Uma das frases que tenho lido em inúmeros lugares na internet, nessa semana depois do lançamento do filme, diz que “não deveríamos procurar teologia em Hollywood, nem entretenimento em Igrejas”. Inúmeras pessoas ficaram enfurecidas com as distorções teológicas do filme, e elas têm todo o direito de ficarem enfurecidas. Mas não tem o direito de ficarem surpresas. Defendo que, nesses casos, informação prévia não machuca: este é o diretor que escreveu e dirigiu Cisne Negro. É, aquele filme de terror da moça com perturbadores problemas psicológicos, que tem fantasias lésbicas e zoomórficas.

Antes mesmo de qualquer coisa, o filme de Noé já deixa claro que não vai seguir a Bíblia: um texto explica que anjos tentaram ajudar a humanidade, contrariando a vontade de Deus, e por isso foram aprisionados em corpos bizarros de pedra. Foi uma mão na consciência que fez Aronofsky colocar isso logo na abertura do filme. Você sabe desde o começo que o filme não vai seguir as Escrituras.

Conta a história de Noé, interpretado pelo Gladiador Russell Crowe, aqui um defensor da natureza (isto é, plantas e animais), que a enxerga como ápice da criação. Serve ao Criador como seu pai, Lameque, como o pai dele, Matusalém, também servia. Se mantém longe da civilização industrial e sodomita que dominou toda a Terra (ainda na forma da Pangeia), quando, através de sonhos, descobre que O Criador irá destruir tudo. Até aí tudo bem.

Mas quando Noé viaja até encontrar seu avô, e precisa de um “chazinho especial” para ver o resto do sonho, as coisas começam a se tornar um pouco menos “aceitáveis”. Aronofsky vai deixando cada vez mais claro a influência de versões apócrifas e cabalísticas da história de Noé, que incluem os poderes mágicos de Matusalém (que, num toque de inspiração acidental, está igualzinho ao Mestre dos Magos do desenho Caverna do Dragão), a presença de uma estranha “relíquia de família”, e anjos caídos bizarros que alcançam a redenção divina.

A história, porém, toca assuntos interessantes, que estão lá para engrossar o lado humano de Noé. Em todos os seus filmes, Aronofsky explora a paranoia e devoção doentia de seus personagens centrais. E aqui não é diferente. Noé não tem uma devoção doentia a Deus, mas sim à sua missão, que interpretou terrivelmente mal a partir dos sonhos. Este é um dos pontos que eu realmente acho negativos como perversão Bíblica, embora interessantes do ponto de vista dramático e humano desse Noé Gladiador.

Noé acredita que Deus quer destruir a humanidade inteira. Isso inclui a si próprio e sua família. Acredita que os animais é que são inocentes e precisam ser salvos. No final do filme Noé revê seu conceito e entende que sua missão também era salvar sua família. E é um ponto crucial para a saga da humanidade, como um todo, que Noé entenda claramente a mensagem de Deus. Apesar do filme não descartar, em nenhum momento, a presença do Criador como uma força ativa e presente, a ideia de que foi a escolha de Noé que salvou a humanidade é muito fraca. Noé era um homem pecaminoso como qualquer outro, e como você pode ver todo dia no jornal, pela janela ou até mesmo olhando para dentro de si, os descendentes dele também são. E esse é um questionamento que, embora não esteja na Bíblia, traz uma ideia que abrange mais do que a narrativa em Gênesis: a de que todo homem é um pecador, até aqueles que Deus usa em suas missões. O Noé do filme é humilde o suficiente para enxergar isso. O problema está em ele ultrapassar essa linha e se tornar um psicopata que se arrepende antes do final.

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Outro problema sério da mensagem do filme é o seu vilão. Descendente orgulhoso de Caim, o papel do ator Ray Winstone é o de líder da civilização maldosa. É um rei que não tem nenhum valor moral. Porém, é este o personagem que entende que o Homem foi feito à imagem e semelhança de Deus. Entende que é do Homem o domínio sobre os animais e sobre o planeta (precisamente o contrário de Noé). E esse é o rei que quer usar esse “direito” para destruir egoistamente o que estiver em seu caminho, e colecionar mulheres e riquezas.

A mensagem do filme fica clara: a natureza é tão importante ou mais até do que o ser humano. Não me lembro de ter visto essa vertente “vamos abraçar as árvores” nos outros filmes do Aronofsky, mas aqui está ela, distorcendo valores milenares em prol da preciosidade new age do meio ambiente.

Ouvi que muita gente achou que o filme mostra que Deus é o vilão da história, destruindo a humanidade inocente por um simples capricho. Respeito, porém discordo dessa leitura. O filme usa muito de seu tempo de tela para demonstrar não só como a humanidade é corrupta, mas como está distante dos desígnios de Deus (ou pelo menos, dos desígnios eco-friendly do herói da história). Pesquisei entre algumas pessoas, e encontrei não-cristãos que acharam o retrato de Deus no filme coerente com a ideia tradicional: Deus estava em seu direito de puxar a descarga e liberar sua fúria contra a humanidade pecaminosa.

Isso não impede, e nem acho que deveria impedir, de ter os filhos de Noé questionando-o quanto à inocência das vítimas do Dilúvio, de maneira às vezes semelhante a Abraão, antes da destruição de Sodoma e Gomorra (embora Abraão demonstre muito mais reverência do que os filhos de Noé). O filme, talvez aí pela falta de reverência do próprio diretor, não faz julgamentos acerca de Deus. Deus fez o que fez, principalmente porque podia. E eu saí do cinema achando que Ele tinha (e tem) todo o direito de fazer o que fez.

O diretor tem até a ousadia de mesclar a criação de Gênesis com o Big Bang e o evolucionismo, numa sequência esteticamente bonita, que está lá para mostrar não só seu ponto de vista mediador entre fé e ciência acerca da origem de tudo (do qual discordo, apesar de achar positivo), mas para reforçar a ideia de que Caim e Abel ainda existem dentro de cada um de nós.

No final, novamente, o filme não traz uma história bíblica. Mas traz questionamentos interessantes de uma maneira que deve ser apreciada por pessoas maduras, entendedoras da linguagem que Aronofsky usou, e que não se deixariam levar por sugestões estapafúrdias de mitologias adversas. Como entretenimento, não é um filme tão engajador, apesar de ter uma atuação forte de Russel Crowe e uma direção de arte muito inspirada. E gostando ou não do filme, dados da desenvolvedora do aplicativo de Bíblia para smartphones YouVersion, o filme aumentou cerca de 300% a procura pelo livro de Gênesis nos EUA, e cerca de 240% no resto do mundo.

Aronofsky não queria levar as pessoas a Deus. Queria investigar um pouco mais da alma humana e dos fundamentos da fé. A tentativa foi válida, e discussões sadias e humildes devem sempre ser bem-vindas. Não malhem tanto o pobre Darren. Não parece que ele quis desrespeitar Deus, ou pelo menos essa é a minha visão otimista. Ele só fez um poema que mudava o foco da história de Noé. Se ele foi sincero e humilde nisso, ou se não foi, Deus ainda pode usar seu poema para alcançar pessoas. Deus é Deus, e filme nenhum mudará isso.

Link onde pode-se ler o poema original de Darren Aronofsky sobre Noé.

Notícia sobre aumento das leituras de Gênesis por causa do filme Noé neste link.

Silas Chosen é roteirista, cineasta, publicitário, ilustrador e é viciado em cinema e histórias. Escreve para sites e programas de rádio sobre cinema, cultura pop e cristianismo desde 2004. Faz parte da 4U Films, ministério de cinema independente.

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