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Solomon Northup, personagem de Chiwetel Ejifor

A História nos mostra qual a distância percorrida pelo Homem durante sua Queda. Nos explica qual o nível doentio de maldade de qual cada um de nós é capaz, quando bem motivado quer seja por necessidade, quer seja por promessa de ganhos, quer seja por “justiça”. Estudar História requer estômago forte e uma dose enorme de humildade. Porque nem Jesus escapou de ser usado como motivo para feitos nefastos.

História com H maiúsculo é uma das principais preocupações do filme 12 Anos de Escravidão, e você precisa assistir esse filme. Não só é um drama poderoso, que conta a triste e dolorosa saga de Solomon Northup, um músico negro e livre que vivia no norte estadunidense, no século XIX, e é raptado para ser vendido como escravo para fazendeiros no sul. Não só porque o filme tem uma fotografia exemplar e atuações inesquecíveis. Mas, 12 Anos de Escravidão retrata com uma fidelidade extrema uma das áreas mais terríveis do coração humano.

Solomon, interpretado com paixão por Chiwetel Ejifor, perde primeiro sua liberdade. Mas vai aos poucos perdendo também sua esperança. O filme não amacia nem um pouco o tratamento que era dado a qualquer pessoa de pele escura sendo usados como mercadoria. E um dono de fazenda pode fazer o que bem entende com sua mercadoria. Pode espancá-la, pode matá-la, pode estuprá-la. Pode torturá-la por puro prazer. Pode castigar porque está bêbado e de mau humor. A legislação o protege de qualquer problema judicial, e a Bíblia o guarda de qualquer acusação divina.

Os dois donos de fazenda que Solomon conhece em sua jornada fazem uso da Palavra de Deus. O primeiro, interpretado por Benedict Cumberbatch, não é uma pessoa tão má. Ele só passa por dificuldades financeiras e precisa dos escravos para sobreviver a elas. Demonstra algum respeito por seus escravos e até tenta proteger Solomon dos ataques de um capataz enfurecido. O segundo, papel de Michael Fassbender, é um psicopata alcoólatra. É a epítome do racista rico que manda na vida e na morte de todos dentro de seu terreno.

Ambos pregam a Bíblia para seus escravos. Enquanto o personagem de Fassbender distorce as palavras de Deus, aniquilando o contexto de sua leitura para melhor doutrinar seus escravos, o personagem de Cumberbatch faz uma leitura mais calma e justa. Mas nem por isso o filme o apresenta como um salvador, pois, como dizem no filme, “ele é um homem bom, mas ainda assim, um senhor de escravos”.

A cena em que o “senhor bom” lê para seus escravos é feita em paralelo com uma cena em que o capataz maníaco está cantando para os escravos. A canção explica, sem deixar dúvida, qual o destino de um escravo rebelde. A leitura de Cumberbatch é intercalada com a canção. Uma mensagem sutil, mas terrível, que o filme nos traz: a leitura da palavra de Deus não tinha a intenção de evangelizar, mas sim de prender e manter o escravo obediente ao mestre da fazenda.

O fato de que as Escrituras eram usadas como um lavar de mãos pela humanidade nunca foi tão atroz quanto nessa época. E nem isso impede Solomon de perder as esperanças em Deus. O canto gospel nasceu dessa última geração de escravos, que não tinham mais para onde recorrer do que o Deus que fazia todos os homens iguais em Jesus Cristo. Solomon canta um hino num dos seus momentos de maior fraqueza. E, em um dos abusos insanos do personagem de Fassbender, o protagonista aponta o dedo e diz: “Deus há de cobrar por isso um dia”. Fassbender dá de ombros: “a propriedade é minha por lei. Não há pecado.”

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E esse é o ponto crucial do filme. Essa é a razão pela qual o filme entrou para a matéria escolar no ensino estadunidense. A humanidade como um todo acatou o tratamento dado aos africanos simplesmente porque “essa era a lei”.  Então, legitimou-se a barbárie com a mensagem da Bíblia, e assim seguiu-se a humanidade. E isso não pode ser diminuído ou esquecido. Há pouco tempo houve uma polêmica sobre o filme ter vencido o Oscar de Melhor Filme: nem todas as pessoas que votaram no filme sequer o assistiram. Votaram assim porque acreditaram na importância histórica que o filme tem. 12 Anos de Escravidão faz perguntas muito difíceis para qualquer expectador.

A Lei seria suficiente para nos isentar de culpa diante de alguma atrocidade? Posso arcar com as consequências de algo que não me será cobrado em vida? Numa sociedade que faz do horror a norma, o que eu faria? Crescendo numa família racista, dentro de uma cidade racista, num país racista, onde busco fundamentos para ser um ser humano digno?

Perto do final do filme, um carpinteiro interpretado por Brad Pitt faz uma pergunta: e se mudarem a lei amanhã? E se, daqui a uma semana, tudo o que é a base do seu poder, da sua segurança, não existir mais? E alerta: “Há um pecado terrível sobre essa nação, e ele não sairá impune para sempre”.

Nos faz pensar onde colocar a base de nossa segurança. Nos faz pensar se somos culpados por aproveitar alguma “facilitação moral” de nossa sociedade em busca de algo condenado por Deus. Nos faz pensar no quanto de gerações de negros sofreram e ainda sofrem por causa de um ódio que não só nasce do pecado, mas é ensinado em lugares fechados, por muitos que acreditam fazer o trabalho de Deus.

12 Anos de Escravidão nos apresenta um espelho sujo, e o horror do realismo violento no filme nos impede de desviar o olhar. Talvez porque reconhecemos um pouco de nós ali, à procura de facilidades e em busca de mais riquezas, não importa o custo.

Solomon nunca deixou de ter fé em Deus, e nunca deixou de fazer o máximo para sobreviver até o momento em que sua salvação seria oportuna.  Dezesseis décadas depois de sua libertação, qual a posição que a humanidade tem sobre os problemas dos quais a Escravidão é um sintoma, ódio, ganância, apatia? Você ainda lê notícias que envergonham você?

Não, Solomon. Jesus não curou esse mundo todo até agora porque a humanidade não achou que isso seria  rentável. Que Deus nos ajude, porque Ele volta já, já.

Silas Chosen é roteirista, cineasta, publicitário, ilustrador e é viciado em cinema e histórias. Escreve para sites e programas de rádio sobre cinema, cultura pop e cristianismo desde 2004. Faz parte da 4U Films, ministério de cinema independente.

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