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Jordan Peterson

Como havia prometido e não cumprido no primeiro artigo, inicio a segunda parte dessa reflexão sobre a obra 12 Regras para a Vida, de Jordan Peterson, pontuando cinco fontes bibliográficas que são fundamentais para a compreensão de seu pensamento. Adianto, entretanto, que elas não são as únicas e também que não farei jus aqui às suas complexidades, nuances e idiossincrasias, mas elas nos dão pistas bem claras dos fundamentos da perspectiva do psicólogo canadense. Em seguida, faço uma aproximação inicial no que concerne ao motivo-base religioso que está no centro da psico-filo-teologia de Peterson. Espero que na descrição das regras 1 e 2, ele fique explícito. Finalmente, depois de situar algumas diferenças centrais entre a perspectiva do psicólogo canadense e uma perspectiva cristã da realidade, partirei para algumas sugestões de cobeligerância, com as quais podemos engajar na leitura da cultura contemporânea. Lamento que, por falta de espaço, essa última parte, fique para o(s) próximo(s) artigo(s).

Carl Jung (1875-1961)

Do psicólogo suíço advém, dentre outros conceitos, a ideia de arquétipo – modelos ideais que tanto servem para pessoas, comportamentos e/ou personalidades. Arquétipos, como sugerido por Jung, podem ser compreendidos como tendências inatas que desempenham um papel importante sobre o comportamento humano. “(…) os arquétipos representam padrões universais e imagens que são parte do inconsciente coletivo. Jung acreditava que nós os herdamos da mesma forma em que herdamos padrões instintivos de comportamento.” Por ancorar a sua perspectiva na psicologia profunda de Jung, e por defender a ideia de que o inconsciente coletivo é parte central na compreensão de nossa antropologia é que Jordan Peterson se valerá de uma outra corrente dentro da psicologia, a psicologia evolucionária, como uma forma de desvelar essas categorias arquetípicas do inconsciente coletivo, que estariam escondidas do olhar imediato. Espero que isso fique mais claro especialmente na medida em que analisamos o capítulo 1, notadamente, em seu exemplo sobre o comportamento das lagostas, e como bio-psico-evolutivamente (neologismo?) há um continuum entre o mundo animal e humano, que para JP não pode ser deixado de lado e nem negado – como o tem feito, paulatinamente, boa parte das ciências humanas.

Fiódor Dostoiévski (1821-1881)

Com as obras e personagens do romancista russo, JP povoa suas ilustrações e exercícios imaginativos. Inúmeros insights sobre os lugares tenebrosos que o ser humano pode habitar, bem como os caminhos obscuros da mente moderna, como expresso mais claramente na obra Memórias do Subsolo, de Dostoiévski. A “pegada” russa de Peterson intersecciona um realismo místico, que dá um tom quasi religioso à leitura. Ademais, os personagens arquetípicos, especialmente em Os Irmãos Karamázov e em Crime e Castigo fornecem a 12 Regras um tom menos cientificista e, por vezes, mais literário. Do novelista russo, JP explora, por exemplo, a ideia de que o ateísmo é impossível, seguindo os passos do personagem Raskólnikov, que tenta sem sucesso se livrar do fardo da culpa moral e religiosa. Peterson explora esse tema vastamente no livro. Voltaremos a ele mais adiante.

Alexander Soljenítsin (1918-2008)

De outro autor russo, romancista e historiador, JP deriva sua fonte de reflexão sobre as possibilidades e inclinações humanas para o mal, especialmente aquele produzido à sombra de regimes e de ideologias totalitárias, nesse caso, a do comunismo soviético. Em sua extensa obra Arquipélago Gulag, Soljenítsin descreve os horrores da experiência vivida por muitos nos campos de concentração de trabalhos forçados da antiga União Soviética. Peterson usa constantemente as narrativas ali presentes para lembrar o leitor da capacidade humana para a destruição e, em última instância, para a própria realidade do mal. Ademais, JP nos lembra que tais acontecimentos se deram ontem na história humana – incluindo os regimes nazi-fascistas – e de que as ideias (filosofias) que os dirigiram não estão mortas, mas continuam ativas em vários níveis da sociedade contemporânea.

Friedrich Nietzsche (1844-1900)

Parece-me que o relacionamento de Jordan Peterson com as ideias do filósofo alemão do século XIX contém, para dizer o mínimo, certa ambiguidade. Se, por um lado, ele parece enfatizar a grande importância que Nietzsche dá ao indivíduo e à necessidade deste tomar a responsabilidade sobre si mesmo na gestão – na ausência de um termo melhor – de sua própria vida, por outro, JP denuncia o niilismo como forma de se viver, tecendo duras críticas a qualquer filosofia que envereda para esse caminho, que, de acordo com ele, levaria somente à destruição e ao caos. Apesar de constantemente usar a linguagem Deus em 12 Regras, fica evidente que ela é a linguagem arquetípica jungiana, ou o que Francis Schaeffer chamou de misticismo semântico (volto a isso mais tarde). Com o filósofo alemão, JP assume que na era pós-morte-de-Deus, o único caminho viável, e aceitável, é assumir a responsabilidade do fardo do ser. Se não há significado, que o façamos. Esse é, para ele, a única saída para o niilismo e seu consequente, o caos.

Bíblia

Eis um dos pontos nevrálgicos para se compreender o pensamento de Peterson a partir de uma visão cristã: entender de que forma ele engaja com as Escrituras. Tenho a impressão de que esse é um ponto notório e bem curioso da obra 12 Regras. Nos últimos anos aqui no L’Abri vi não cristãos começando ou voltando a ler a Bíblia depois de encontrar JP e vi cristãos desconstruindo pilares da visão clássica da Bíblia depois de JP, como a relativização da realidade sobrenatural – clássico projeto da teologia liberal (nada de novo até aqui), e também, a perda da (importância da) historicidade. Bom, here we go again de volta a clássicos temas, como o da busca pelo Jesus Histórico versus o Cristo da Fé, por exemplo. Por vezes, tem-se a impressão de se estar lendo um teólogo bultmaniano. Nesse sentido, como minha amiga Judy Raines comentou, ler Peterson (por vezes) é como ler teologia liberal num contexto que é tão secular, materialista e imanentista, que JP soa como um pregador místico transcendentalista, quando na verdade ele continua sendo um materialista, ainda que com refinamentos jungianos.

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Faço a ressalva, entretanto, de que a assim chamada teologia liberal produziu grandes pensadores, com insights interessantíssimos – a saber o próprio Rudolf Bultmann (1884-19776), Paul Tillich (1886-1965) dentre outros. Da mesma maneira, os insights de Peterson podem também ter valor na contribuição em nosso engajamento com as Escrituras. Todavia, é importante – principalmente para uma visão cristã informada sobre o autor canadense – que se situe claramente que tipo de interpretação das Escrituras Peterson busca. Como bom discípulo de Jung, ele está atrás das categorias arquetípicas das narrativas bíblicas que moldaram profundamente o modo de pensar e de imaginar, notadamente no mundo ocidental. JP está atrás dos mitos fundadores, assim como os antropólogos o fazem quando se valem dos métodos etnográficos com vistas a compreender como uma cultura/sociedade opera, vide por exemplo a obra de Claude Levi-Strauss. Peterson vê no texto bíblico uma espécie de etnografia da psicologia profunda da alma humana. Ele mesmo a expressa em 12 Regras dessa forma:

A Bíblia é, para o bem ou para o mal, o documento fundador da civilização ocidental (dos valores ocidentais, da moralidade ocidental, e das concepções de bem e mal no ocidente). Ela é o produto de processos que permanecem fundamentalmente além de nossa compreensão. A Bíblia é uma biblioteca composta de muitos livros, cada um escrito e editado por muitas pessoas. Ela consiste em um verdadeiro documento emergente – selecionado, sequenciado, contendo uma história (story) coerente escrita por ninguém e por todos, ao longos de muitos milhares de anos. A Bíblia emergiu das profundezas, pela imaginação coletiva humana, que em si mesma é o produto de forças inimagináveis operando através de uma quantidade de tempo incompreensível. O estudo cuidadoso e respeitoso da Bíblia pode revelar coisa a nós sobre o que cremos […] e de que forma devemos agir, cujo desvelamento não poderia ser atingido quase de nenhuma outra forma.

Em certo sentido, me parece que ainda é válida a crítica que Schaeffer fez à teologia liberal da década de 1960 também quando aplicada à visão de Peterson das Escrituras: há certo misticismo semântico em operação aqui. Quando a historicidade e a realidade do texto passam a não ter mais importância, o que sobra são os efeitos que o texto produz ao bel prazer dos usos e desusos de qualquer leitura que se queira. O Cristo dos Evangelhos sem realidade e sem corpo (história) pode ser manipulado pra virar qualquer coisa, do maior psicólogo de todos os tempos, um ícone revolucionário libertador ou o noivo apaixonado radical e espontâneo das 24h de adoração presentes no novo gênero do gospel brasileiro, o fogo afetivo (Jesxs mxu amigx). Outra categoria que pode ser mobilizada aqui pra explicar a visão da Bíblia de JP é a de reducionismo. Para Peterson, tenho a impressão de que a esfera pística (fé) – nesse caso, a revelação divina – é um epifenômeno da esfera psicológica. Bom, mas isso abriria um outro flanco que não está no escopo desta análise. Seguimos.

Mas, afinal, qual é o motivo-base religioso em Peterson?

Estou convencido de que as regras 1 e 2 expõem de forma muita clara a perspectiva religiosa de JP. Para ele, a realidade mais fundamental existente é a eterna justaposição entre ordem e caos. Se quisermos, com os devidos cuidados, podemos dizer que a sua ontologia está fincada em um dualismo indissolúvel e necessário. Sua metanarrativa principal dentro da qual todas as outras narrativas se encaixam é esse eterno conflito e constante ajuste entre os polos da ordem e do caos. Nada existe fora desse dualismo: emoções, relacionamentos, a cultura, a psicologia humana, o bem e o mal, o diabo, textos sagrados e o próprio Deus. Em realidade, esse dualismo é a própria divindade, entendido aqui como o centro religioso de toda a explicação do real, seu arche e telos.

Em 12 Regras, a realidade é concebida como dada e não como dádiva, pois, em última instância, não há um doador. Por isso, como expresso por ele mesmo nas regras iniciais, o ser é fundamentalmente um fardo. Mas, ao invés de propor uma saída niilista, ele advoga uma atitude de responsabilidade diante do ser. JP defende que devemos ficar de pé metafisicamente (stand up metaphysically) a fim de carregarmos o fardo do ser, haja vista que, para ele, habitar a ordem  é muito melhor do que viver no caos. Uma outra forma de interpretar isso seria: Deus está morto, mas precisamos viver como se ele não estivesse, ou seja, não há real razão para nos pormos de pé metafisicamente, mas esse é o melhor jeito de viver, então o façamos.

Bem, meu objetivo é desenvolver mais essas ideias na medida em que exploramos com maior atenção as regras 1 e 2. Mas isso fica para o próximo texto. Prometo que ainda chego na questão da cobeligerância. Aguentem firme aí.

Josué K. Reichow é mestre em Teologia pela Faculdades EST (2014), concentrando seus estudos em Teologia e História, com interface entre teologia e filosofia. É especialista em História da Filosofia pela UNISINOS (2013). É bacharel em Ciências Sociais, com ênfase em Sociologia pela UFPEL (2010). É obreiro no L’Abri Inglaterra com sua esposa Lili e autor do livro "Reformai a vossa mente: a filosofia cristã de Herman Dooyeweerd”.

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2 Comments

  1. Natan Fantin disse:

    Excelente seus artigos Josué Reichow. Você não acrescentaria nesta lista de influências bibliográficas o filósofo alemão Martin Heidegger? Levando em consideração às condições ontológicas de responsabilidade diante do ser.

  2. Josué Reichow disse:

    Obrigado pelo comentário Natan. Pois então, acho que tens razão ao apontares para o relacionamento entre a ideia de responsabilidade diante do ser e Heidegger. Penso que JP tenha lido sua obra. Entretanto, como me ative exclusivamente aos autores citados diretamente por JP na obra 12 Regras para a Vida, Heidegger não figura em nenhuma passagem. Mas claro, não quer dizer que não seja uma influência sobre Peterson.

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