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Existem hoje dois “discursos” que ocupam as redes sociais evangélicas, ou pelo menos as redes sociais que observo. Um deles é a questão do engajamento político evangélico, isto é, se os cristãos devem buscar efetuar mudanças políticas em sua(s) nação(ões) e, se sim, como isso deve ser feito. O outro é o do resgate teológico, isto é, até que ponto as ideias derivadas de gerações mais antigas (muito mais antigas) de cristãos exercem autoridade sobre nossa doutrina de Deus. À primeira vista, nenhum dos discursos parece conectado ao outro e, dos dois, o primeiro é mais urgente que o segundo. O que os prognósticos filosóficos abstrusos de teólogos cristãos mortos há muito tempo têm a ver com a batalha contra o “wokismo” ou a luta pela vida do nascituro? Neste artigo, quero sugerir que os dois discursos estão, de fato, interligados e que as nossas lutas políticas atuais somente podem prosseguir com sucesso se recuperarmos a perfeição divina ensinada no passado.
Tomo como ponto de partida a análise convincente de Joshua Mitchell sobre nosso momento político em seu livro de 2020, American Awakening: identity politics and other afflictions of our time. A tese central de Mitchell é que a ascensão da política identitária pode ser explicada como uma tentativa de transitar entre a inocência e a transgressão. Essa necessidade surge porque a crença cristã de que a transgressão pode ser tratada por meio do bode expiatório divino, Jesus Cristo, deixou a praça pública. Nessa ausência, a “política identitária da inocência” tem “transformado a política em um local religioso de oferta de sacrifício” (xxi). Um novo bode expiatório deve ser encontrado para expurgar os pecados e “o bode expiatório que a política identitária oferece para sacrifício é o homem branco e heterossexual. Se ele for expurgado, imaginam seus adeptos, o próprio mundo, juntamente com os demais grupos nele contidos, será limpo de suas máculas.” (xxi)
Um ponto que Mitchell enfatiza no livro é que a fraqueza dessa abordagem, entre muitas, é que esse bode expiatório nunca será suficiente. A mácula de um mundo imperfeito nunca é suficientemente tratada, a perfeição nunca é alcançada. Uma vez que os homens heterossexuais brancos tenham sido expurgados, “um novo grupo de inocentes deve surgir para tomar (seu) lugar” (121). A política identitária nunca pode alcançar a inocência que seus adeptos anseiam, não importa quantos sacrifícios eles ofereçam. Mitchell conclui,
Com apenas um pouco de imaginação, podemos antecipar qual será a última acusação: a acusação do próprio homem… A revelação final da política identitária nos oferece o transumanismo ou a extinção humana; o primeiro elimina a herança transgressora de Adão para que ele finalmente — literalmente — seja “sem mácula ou mancha”, e a segunda restaura a inocência da natureza matando completamente os herdeiros de Adão. (121-122)
E, no entanto, mesmo essas soluções não serão suficientes. Em uma passagem poderosa, Mitchell satiriza:
Mas, espere! Talvez para limpar a mancha completamente precisamos ir mais longe. Talvez o homo sapiens como espécie seja apenas a manifestação superficial de uma mancha mais profunda. A família Hominidae e a ordem dos primatas também podem não ser suficientemente profundas. Talvez a classe Mammalia nos leve aonde precisamos chegar… Talvez a era atual de domínio dos mamíferos, que começou depois que o asteroide Chicxulub eliminou os dinossauros há sessenta e seis milhões de anos, deva chegar ao fim… A boa notícia, devemos agora reconhecer, é que a mudança climática radical poderia acabar com todos os mamíferos, sendo que após isso, uma classe dentro do filo Chordata surgirá — talvez sejam os répteis. Mas aqui nesse ponto também devemos ser maçantes: e se todos os membros dos Chordata também estiverem envolvidos? Criaturas com coluna vertebral não são confiáveis…
Este estranho experimento mental não foi uma brincadeira. Até onde devemos ir, com toda a honestidade, antes de o homem ser limpo de sua mácula? Essa é a pergunta lancinante de nossos tempos.
Mitchell identifica uma questão importante — qual a profundidade da mácula? Existe algum ponto na realidade em que encontramos a perfeição imaculada, algum ponto em que o trabalho de purgação e purificação pode ser deixado de lado e a satisfação começar?
A tradição cristã histórica tinha uma resposta clara a esta pergunta. No coração da realidade estava o Deus Triúno das Escrituras que existia em simples perfeição. A compreensão clássica de Deus era que ele é perfeito em bondade, infinito em poder, ilimitado em alegria. A imensidão sem limites de Deus é tal que a sabedoria, a bondade, a justiça e a verdade, que em nós existem como categorias distintas e muitas vezes estão em tensão umas com as outras, são nele as mesmas, cada uma idêntica ao puro ato de existência de Deus. Portanto, a existência e o ser não eram neutros em termos de valor, mas intrinsecamente bons. De fato, Deus era entendido como sendo ele mesmo, ipsum esse subsistens, do qual todos os outros seres procedem como um efeito finito de uma causa infinita. Quaisquer que sejam as questões filosóficas que esse resumo possa suscitar, deve ser óbvio que esse entendimento forneceu uma base sólida para a crença de que, quaisquer que fossem as vicissitudes do tempo e da iniquidade humana, no final prevaleceriam a justiça, a bondade e a alegria. Todas as outras preocupações humanas são relativizadas à luz desse pano de fundo metafísico fundamental.
A sociedade secular moderna não tem essa vantagem. Se nossa sociedade tem pensamentos metafísicos, eles são vagos e incoerentes. Existe a visão materialista de que o estrato fundamental da realidade é ao mesmo tempo caótico e vazio, um nada sem valor que ainda consegue gerar mudança e fluxo. Ou há a visão neo-hegeliana, de que valores transcendentes são incorporados no tempo através do misterioso Geist, ou emergem no proverbial arco da história pela constante dialética do ser e do não-ser produzindo o devir. Que esses pensamentos sejam vagos e de coerência duvidosa é precisamente o ponto. No entanto, uma coisa sobre eles é clara e certa, eles postulam que no fundo da realidade está o limite, a negação, a ausência, a escuridão. Todas as visões modernas da metafísica concordam que a noção de perfeição simples, seja ética, metafísica, intelectual ou existencial, é uma fantasia. Ou é assim, ou isso existe apenas como uma realização potencial ainda não alcançada. Em suma, eles concordam que a mancha, a presença da negação, vai até o fim.
Não é de admirar que tal concepção produzisse o tipo de vida política que Mitchell descreve. Como Lady Macbeth, procuramos limpar uma mancha que não pode ser removida, usando detergentes cada vez mais poderosos, por mais que queimem, em um esforço frenético para alcançar uma pureza que nunca experimentamos, mas que desesperadamente desejamos. A reviravolta constitucional, os testes de pureza, a cultura do cancelamento e os tumultos são sintomas de um mal-estar que flui de nossa percepção do próprio cerne da realidade. Estamos em busca de um lar que não acreditamos mais existir: o lugar onde bondade, verdade e alegria se harmonizam e proporcionam descanso para nossas almas. Já que tal lugar não existe, devemos construí-lo. Assim, a metafísica do niilismo fornece a base para a política do utopismo. A imperfeição deve ser expurgada, os transgressores devem ser eliminados, a paciência deve ser evitada. O crescente apelo a “soluções globais” que de alguma forma nos protegerão de ameaças nas escalas de níveis macro e micro imagináveis, clima e vírus, é apenas uma expressão dessa tendência. No entanto, essa energia utópica tem um lado sombrio de negação e desespero. Abortos eletivos, taxa de natalidade em declínio e a opinião da moda de que limitar o tamanho das famílias é a maneira de salvar o planeta refletem a convicção de que para muitos seres humanos é melhor não ser. O ser não é mais um bem inqualificável, mas só vale a pena se de alguma forma puder ser purificado de sua mancha intrínseca.
Em contraste, no livro que se tornaria a fonte do pensamento político cristão, Cidade de Deus, Agostinho gasta um tempo considerável mostrando que a existência é essencialmente boa. Sua base teológica para isso é a doutrina cristã da criação: Deus é bom e, portanto, nada que procede dele pode ser mau em si mesmo. Mesmo a existência intrínseca dos demônios é boa, tornando-se má apenas pelo vício de seu orgulho. O que é então o mal? Não uma substância, uma existência, mas uma falta do que algo foi feito para ser, como um pneu flácido em uma bicicleta. O pneu não é ruim porque tem alguma qualidade positiva de “planicidade”, mas sim porque está destituído do ar necessário para poder rolar na estrada. Seja esse relato convincente ou não para nós, ele fornece para Agostinho a base para uma ordem política que valoriza a paz, a humildade e a paciência. Paz, porque a ordem intrínseca da realidade é boa; humildade, porque a existência, juntamente com todas as outras coisas, deve ser recebida como um presente; e paciência, porque, para aqueles que buscam a Deus, os males do presente século passarão um dia. Uma comunidade política caracterizada por essas virtudes possuirá a estabilidade e a segurança que faltam às políticas contemporâneas.
Muitas habilidades são necessárias para a tarefa de reforma e restauração de nossa ordem política decadente. O estadista, o artista, o sociólogo e o historiador, todos têm seu papel a desempenhar. Mas talvez seja a tarefa do teólogo, engajado no trabalho aparentemente esotérico e abstruso de extirpar de nossa concepção de Deus qualquer limitação, finitude ou imperfeição, que é a dobradiça sobre a qual todos os outros esforços dependem. Pois é o teólogo que testemunha a presença de pureza simples e infinita de bondade, alegria e verdade no coração da realidade. A paciência com as imperfeições deste mundo — uma paciência que é o único antídoto para o totalitarismo utópico — só pode ser mantida acreditando que existe um reino eterno que é perfeito, imaculado e puro, um lugar ao qual podemos chegar um dia.
Joshua Mitchell considera até que ponto os modernos irão para limpar a mancha da humanidade, mas que perspectiva há de fazer isso se a própria realidade está manchada? A única esperança da purificação de que precisamos é se crermos em um Deus que é perfeito, sem mácula ou limitação de criatura, pois “todo o que tem nele essa esperança purifica a si mesmo, assim como ele é puro” (1Jo 3.3). A única esperança para a política, portanto, é uma visão renovada da perfeita pureza de Deus.
Traduzido e publicado com permissão.
Texto original: A Politics of Divine Perfection. American Reformer.
Graham Shearer é candidato a PhD na Union Theological College em Belfast, onde vive com sua esposa e filhos. |