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Em “The imago Dei meets superhuman potential” [A imagem de Deus encontra o potencial sobre-humano], Dorcas Cheng-Tozun define transumanismo como “fé na tecnologia para expandir enormemente as capacidades dos humanos”.[1] Seus defensores mais entusiastas são, entre outros, Mark Zuckerberg, do Facebook, e os fundadores do Google, Sergey Brin e Larry Page. Nas palavras de Cheng-Tozun:

Eles dedicam bilhões de dólares e as mentes mais brilhantes da ciência e da engenharia para desenvolver uma série de inovações que ampliarão as capacidades humanas. A realidade virtual promete nos levar a qualquer parte. Os aparelhos vestíveis nos deixam mais perto de conectar a mente humana à nuvem digital. A possibilidade de editar o genoma nos permite projetar nossos bebês e curar qualquer doença ou deficiência, e até mesmo a própria morte.[2]

Se queremos ser seguidores fiéis de Cristo neste mundo, temos de compreender essa perspectiva.

DEFININDO O TRANSUMANISMO

Explicaremos inicialmente o transumanismo de uma maneira simples, embora não se trate de um tópico simples e isolado: há nele uma filosofia de vida, um movimento intelectual e cultural, bem como uma área de estudos.[3] Ele cresce e muda continuamente, compreendendo diferentes perspectivas, motivações e aspirações. Contudo, se passarmos em revista essa variedade, encontraremos alguns temas e valores fundamentais que caracterizam o transumanismo.[4] Embora sejamos tentados inicialmente a descartar essas perspectivas por considerá-las extremistas, precisamos nos lembrar, como o faz a especialista Christina Bieber Lake, de que tal “pensamento é simplesmente uma extensão lógica da confiança cada vez maior que indivíduos modernos contemporâneos depositam nas soluções tecnológicas para os problemas”.[5] Estamos todos mais próximos de ser transumanistas do que gostaríamos de admitir.

Definições

O transumanismo, em essência, transforma. Basicamente, “o movimento transumanistas procura aperfeiçoar a inteligência humana, a força física e os cinco sentidos por meios tecnológicos”.[6]

Ele demanda a evolução contínua da vida inteligente além de sua forma humana atual — e, portanto, para além das limitações humanas — por meio da ciência e da tecnologia, as quais são guiadas por princípios e valores que promovem a vida.[7] O transumanismo é a “humanidade que assume o controle de seu destino evolucionário”.[8] Para o transumanista, todo aprimoramento é, por definição, bom.[9]

Portanto, em primeiro lugar, o transumanismo é uma cosmovisão e está relacionado a outras cosmovisões. É complexo, mas com implicações simples e práticas para a vida cotidiana. Ele rejeita o sobrenatural (embora não faltem notas de transcendência o tempo todo), e, em seu lugar, enfatiza que descobrimos o sentido e a ética por meio da razão, do progresso e do valor da própria existência.

Além disso, o “humanismo” do transumanismo nos lembra que tal filosofia tem raízes no humanismo iluminista. O humanismo iluminista tendia a se concentrar na educação e no refinamento cultural como meios de aperfeiçoar a condição humana, porém o transumanismo usa a razão, a tecnologia avançada e a ciência para transformar de forma criativa a natureza humana. O humanismo iluminista promovia os temas do progresso, da autonomia pessoal e da ação, em vez de confiar em forças sobrenaturais. O transumanismo conserva esses elementos e ênfases principais;[10] o processo, porém, é diferente, e o objetivo é mais otimista.

O prefixo “trans” em transumanismo acentua esse processo e esse objetivo alterados. O transumanismo expande a caixa de ferramentas do humanismo ao ir além da educação e do refinamento cultural aplicando a tecnologia ao propósito de sobrepujar os limites contra os quais o ser humano se defronta. Ele nos permite vencer nossa herança biológica e genética.

De acordo com essa perspectiva, a natureza humana não é uma coisa estática, imutável, mas simplesmente um ponto no caminho do desenvolvimento. Portanto, o objetivo do transumanismo não é o humano ideal do humanismo iluminista, mas algo que transcende o que rotularíamos atualmente de “humano”. Ao aplicar a tecnologia a nós mesmos, vamos além e nos tornamos algo que é pós-humano. De fato, uma forma de distinguir entre transumanismo e pós-humanismo é que o transumanismo se detém no processo em constante mutação de desenvolvimento e de crescimento, ao passo que o pós-humanismo se concentra em um ponto além do humano. O pós-humanismo se fixa no produto, ao passo que o transumanismo ressalta o processo que leva ao pós-humanismo enquanto objetivo. Outra maneira pela qual os estudiosos distinguem os dois se dá pela observação de que o transumanismo diz respeito primordialmente às discussões em torno do aperfeiçoamento, enquanto o pós-humanismo está associado à filosofia continental e ao pós-modernismo.[11] Contudo, os especialistas ainda se referem ao humanismo/transumanismo em conjunto.[12]

O pós-humanismo, como objetivo, significa exceder as limitações que definem os aspectos “menos desejáveis” da condição humana.[13] Podemos e devemos vencer a doença, o envelhecimento e a morte. Os pós-humanos terão grandes capacidades físicas, cognitivas e emocionais, bem como a liberdade de escolher exatamente que forma e que capacidades querem ter (analisaremos mais cuidadosamente essa liberdade mais adiante e no próximo capítulo). O transumanismo, portanto, recorre à razão e à tecnologia para expandir as possibilidades do contínuo aperfeiçoamento da condição humana nessas áreas.

Há pensadores que tratam desses temas sem meias-palavras. Yuval Noah Harari, historiador e futurista, é um bom exemplo disso. Para ele, “o ser humano morre devido a uma falha técnica. O coração para de bombear sangue. A artéria principal fica obstruída por depósitos de gordura”.[14] Além disso, “todo problema técnico tem uma solução técnica. Não é preciso esperar pela Segunda Vinda para vencer a morte. Para isso, bastam alguns nerds em um laboratório. Se antigamente a morte era especialidade de sacerdotes e de teólogos, agora ela foi confiada aos engenheiros”.[15] A mudança virá gradativamente:

É provável que a atualização do Homo sapiens ocorra passo a passo, fundindo-se no processo com robôs e computadores, até que nossos descendentes olhem para trás e se deem conta de que não são mais o tipo de animal que escreveu a Bíblia, construiu a Grande Muralha da China e riu das graças de Charles Chaplin. Isso não vai acontecer em um dia nem em um ano. Na verdade, já está acontecendo neste momento como resultado de inúmeras ações cotidianas. Todo dia, milhões de pessoas decidem dar a seu smartphone um pouco mais de controle sobre suas vidas, ou experimentam uma droga antidepressiva nova e mais eficaz. Na busca por saúde, felicidade e poder, os humanos gradualmente modificarão primeiro uma de suas características, depois outra, e outra, até não serem mais humanos.[16]

Para Harari, essa mudança é inevitável, e quem não “embarcar nesse trem” do progresso que está deixando a estação estará — juntamente com seus descendentes — destinado a uma existência de segunda classe.[17]

A tecnologia também traz consigo mais do que ferramentas físicas. Ela vai além da definição estreita que a limita a coisas físicas e propõe “projetos para as empresas, economias, regimes e o uso de ferramentas e de métodos psicológicos”.[18] É claro que o desejo do transumanista de usar a tecnologia está relacionado com a ideia que geralmente temos dela, mas também vai além disso. É possível observar de que maneira ocorre essa extensão ao analisarmos os princípios do transumanismo.

Princípios

O “Principles of extropy” [Princípios da extropia], publicado originalmente em 1990, é considerado a primeira filosofia transumanista plenamente desenvolvida. Ela enfatiza o conceito de extropia, ou “a extensão da inteligência, da ordem funcional, da vitalidade, da capacidade e do impulso de aperfeiçoamento de um sistema vivo ou organizacional”.[19] Em outras palavras, os temas predominantes giram em torno da habilidade de melhoramento (capacidade), além de uma forte motivação para fazê-lo (impulso). Nesse texto, nos deparamos com sete elementos cruciais que estão em todas as formas existentes de transumanismo, de acordo com seu destacado defensor, Max More.

Em primeiro lugar, o transumanismo ressalta o progresso perpétuo. Os transumanistas sempre querem mais: mais inteligência, mais vida, mais experiência. Esse desejo ocorre no plano individual por meio do segundo princípio, a transformação pessoal — o que significa “a ratificação contínua da ética, do intelecto e do autoaperfeiçoamento físico por meio do pensamento crítico e criativo, da aprendizagem perpétua, da responsabilidade pessoal, da proatividade e da experimentação”.[20] Esses dois princípios dependem de um terceiro, de um otimismo prático em relação a esse processo. Vai dar certo.

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Outras quatro marcas unem as várias filosofias transumanistas. São elas o uso da tecnologia inteligente, uma sociedade aberta, autodirecionamento e pensamento racional. A tecnologia inteligente está produzindo tecnologias que não são fins em si mesmas; antes, são meios para o aperfeiçoamento da vida e para a superação das limitações. Promover uma sociedade aberta é buscar ordens sociais que estimulem a liberdade de comunicação, a ação, a experimentação, a inovação, o questionamento e a aprendizagem.[21] O autodirecionamento valoriza o pensamento independente, a liberdade, a responsabilidade e o respeito pelo eu e pelos outros. Por fim, pensar racionalmente significa “favorecer a razão em detrimento da fé cega e a inquirição em detrimento do dogma. Significa compreender, experimentar, aprender, desafiar e inovar, em vez de agarrar-se a crenças”.[22]

Esses princípios expansionistas resultam em objetivos igualmente expansivos. Às vezes, a natureza desses objetivos pode levar a mal-entendidos e a conceitos errôneos.[23]

Conceitos errôneos

Max More identifica e refuta quatro conceitos errôneos comuns acerca do transumanismo.[24] Em primeiro lugar, os transumanistas não buscam a perfeição. O conceito transumanista de extropia ressalta o progresso perpétuo, não um estado imutável que se possa alcançar. Essa busca perpétua é a prioridade do transumanismo, e não a conquista da perfeição. Os que rejeitam o transumanismo porque creem que ele esteja associado exclusivamente à possibilidade de se alcançar a perfeição não compreendem o que há de fundamental no empenho transumanista.

Em segundo lugar, o transumanista não prediz com exatidão quando o pós-humanismo ocorrerá, quando surgirá o primeiro pós-humano. O transumanismo não se deixa definir por nenhuma predição específica. Pelo contrário, ele está empenhado em produzir um futuro melhor, não em fixar o momento em que isso ocorrerá; tampouco está preocupado em explicar como será esse futuro.[25]

Em terceiro lugar, o transumanista não odeia o corpo. Estar insatisfeito com as limitações do corpo não implica, necessariamente, odiá-lo. Em vez disso, “o verdadeiro transumanismo procura, de fato, nos capacitar para que possamos mudar e melhorar (de acordo com nossos padrões) o corpo humano […]. Em vez de negar o corpo, o transumanismo deseja, via de regra, escolher sua forma e ser capaz de habitar diferentes corpos, inclusive corpos virtuais”.[26] Embora isso dê margem a outras preocupações, a esta altura é importante observar simplesmente que muitos transumanistas valorizam o corpo e se esforçam para ampliar a corporeidade, não abandoná-la.

Em quarto lugar, o transumanista não teme a morte. Ele pode ter receio da morte dolorosa e prolongada, mas, dada a sua compreensão não religiosa e materialista da realidade, para o transumanista a morte não é nada. Trata-se simplesmente do fim da existência. A morte é indesejável porque “significa o fim da nossa capacidade de ter experiências, de criar, de explorar, de melhorar e de viver”.[27]

Agora que nos livramos das concepções errôneas, podemos prosseguir com o desenvolvimento da nossa compreensão do que seja o transumanismo, associando-o ao seu contexto histórico.


[1] Dorcas Cheng-Tozun, “The imago Dei meets superhuman potential”, Christianity Today, March 17, 2016, disponível em: www.christianitytoday.com/ct/2016/march-web-only/imago-dei-meets-superhuman-potential.html, acesso em: 29 dez. 2021.

[2] Dorcas Cheng-Tozun, “The imago Dei meets superhuman potential”, Christianity Today, March 17, 2016, disponível em: www.christianitytoday.com/ct/2016/march-web-only/imago-dei-meets-superhuman-potential.html, acesso em: 29 dez. 2021.

[3] Max More, “Philosophy of transhumanism”, in: The transhumanist reader: classical and contemporary essays on the science, technology, and philosophy of the human future (Malden: Wiley-Blackwell, 2013), p. 4. Além disso, alguns teólogos cristãos têm analisado as semelhanças e diferenças entre o cristianismo e o transumanismo no plano teórico. Para uma boa análise do assunto, veja Ronald Cole-Turner, “Transhumanism and christianity”, in: Ronald Cole-Turner, org., Transhumanism and transcendence: christian hope in an age of technological enhancement (Washington: Georgetown University Press, 2011), p. 193-203.

[4] Dependo aqui sobretudo do trabalho de Max More, cujo proveitoso ensaio “The philosophy of transhumanism” abre seu Transhumanist reader.

[5] Christina Bieber Lake, Prophets of the posthuman: american fiction, biotechnology, and the ethics of personhood (Notre Dame: University of Notre Dame Press, 2013), p. xii.

[6] Michael Plato, “The immortality machine: transhumanism and the race to beat death”, Plough Quarterly (Winter 2018), p. 21.

[7] More, “Philosophy of transhumanism”, p. 3.

[8] Alex Hamilton, “Transhumanism: morphological freedom is individual liberty”, Medium, February 14, 2015, disponível em: https://medium.com/wire-head/transhumanism-morphological-freedom-is-individual-liberty-b51ea31de129, acesso em: 29 dez. 2021.

[9] Michael Hauskeller, Better humans? Understanding the enhancement project (Durham: Acumen, 2013), p. 85.

[10] Para outros, o pós-humanismo é uma reação aos conceitos tradicionais de “humano” promovidos pelo Iluminismo. A atenção está voltada para outras maneiras de conceber o sujeito humano. Estas tendem a ser menos impulsionadas pela tecnologia e mais pela teoria. Veja Rosi Braidotti, The posthuman (Malden: Polity, 2013), p. 37.

[11] Stefan Lorenz Sorgner, “The future of education: genetic enhancement and metahumanities”, Journal of Evolution & Technology 25, n. 1 (May 2015): 32.

[12] Veja, por exemplo, Calvin Mercer, “Bodies and persons: theological reflections on transhumanism”, Dialog: A Journal of Theology 54, n. 1 (Spring 2015): 29.

[13] More, “Philosophy of transhumanism”, p. 4.

[14] Yuval Noah Harari, Homo Deus: a brief history of tomorrow (London: Penguin Random House, 2016), p. 22 [publicado em português por Companhia das Letras sob o título Homo Deus: uma breve história do amanhã].

[15] Harari, Homo Deus, p. 23.

[16] Harari, Homo Deus, p. 49.

[17] Ibidem, p. 273

[18] More, “Philosophy of transhumanism”, p. 4.

[19] Ibidem, p. 5.

[20] More, “Philosophy of transhumanism”, p. 5.

[21] Idem.

[22] Idem.

[23] Para outra análise a esse respeito, veja More, “True transhumanism,” in: Gregory R. Hansell; William Grassie, orgs., H+/: Transhumanism and its critics (San Francisco: Metanexus Institute, 2011).

[24] More, “Philosophy of transhumanism”, p. 14-15.

[25] Ibidem, p. 15.

[26] Idem.

[27] More, “Philosophy of transhumanism”, p. 15.

Trecho extraído da obra “Transumanismo e a imagem de Deus: a tecnologia de hoje e o futuro do discipulado cristão”, de Jacob Shatzer, publicado por Vida Nova: São Paulo, 2022, p. 63-71. Traduzido por A. G. Mendes. Publicado no site Cruciforme com permissão.

Jacob Shatzer (PhD, Marquette University) é professor assistente e reitor adjunto da Escola de Teologia e Missões da Union University. É ministro ordenado da Convenção Batista do Sul e autor de A spreading and abiding hope, editor de um volume de ensaios de A. J. Conyers e editor assistente de Ethics and medicine.
Jacob Shatzer, especialista em ética bíblica, nos conduz por uma análise cuidadosa acerca do futuro do discipulado cristão em um ambiente tecnológico disruptivo. Em Transumanismo e a imagem de Deus, ele explica o desenvolvimento e a influência do movimento transumanista, dedicado ao estágio seguinte da evolução humana.
Ao investigar tópicos como inteligência artificial, robótica, tecnologia médica e ferramentas de comunicação, o autor expõe de que maneira as transformações tecnológicas do cotidiano já modificaram e continuarão modificando a forma que pensamos, nos relacionamos e compreendemos a realidade. Em sua análise da doutrina da encarnação e de suas implicações para a identidade humana, Shatzer nos ajuda a compreender melhor o lugar apropriado da tecnologia na vida do discípulo e a evitar as falsas promessas da perspectiva transumanista.

Publicado por Vida Nova.

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