C. S. Lewis como um leitor | Manfred Svensson

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Lembremo-nos de que o trabalho de Lewis era o de um crítico literário. Mas também nos recordemos de que, além disso, ele era um leitor. Uma ilustração eloquente do papel que os livros desempenharam em sua vida é dada ao comentar o que lhe ocorreu ao ser enviado para lutar na Primeira Guerra Mundial. Ele se lembra de que, ao entrar no campo de batalha e ouvir uma bala passar por ele pela primeira vez, seu pensamento foi: “Isto é uma guerra. Foi sobre isto que Homero escreveu”.[1] Essa não é a reação mais comum ao fogo inimigo. Mas quem percorre os três grossos volumes que hoje reúnem a correspondência de Lewis encontra-se ali com o registro da vida passada quase ininterruptamente entre os livros. São também estes que o orientam em algumas reviravoltas decisivas: “Se um jovem quiser permanecer ateu”, escreveu na autobiografia, “terá de ter muito cuidado na seleção das leituras”.[2] Ao ler Chesterton, ele continua, “eu não sabia no que estava me metendo”.[3]

Agora, é importante notar desde já que o gosto pelos livros não tem nada em comum com o “mundo da cultura”: Lewis confessa ter passado anos lendo antes de saber da existência desse mundo.[4] Ele não é do mundo da cultura, mas dos livros e das realidades descritas e reveladas por eles. Mas que tipo de amor à leitura ele está interessado em transmitir? A predileção pela boa literatura pode ser promovida de maneira compatível com a apreciação de Lewis da perspectiva do homem comum? A resposta parece-nos afirmativa e gradual. Implica afirmar que existe boa e má literatura, e que a boa literatura em geral é acessível a qualquer pessoa educada, porém é claro que isso não é válido em termos absolutos.

Vamos começar pela primeira parte, a literatura boa e a má. É possível encarar sua disjunção como mais que uma questão de gosto? A posição de Lewis é afirmar a existência dessa distinção como algo a ser avaliado não pela forma como os livros são escritos, mas pela resposta do leitor: a boa literatura, diz seu teste simples, é a que pode ser relida.[5] Nesse sentido, ele afirma, nem mesmo os bons e os maus leitores divergem em suas opiniões: os leitores de literatura ruim não a releem de fato e, dessa forma, estão de acordo com a avaliação dos leitores de bons livros. “Eu já li” seria uma resposta que, por definição, o bom leitor jamais daria: quem leu Jane Austen pode continuar relendo-a por toda a vida. Mas essa menção a Jane Austen nos lembra de que esses livros legíveis de novo não se limitam ao conjunto restrito de clássicos difíceis: incluem uma ampla gama de livros ao alcance de qualquer pessoa razoavelmente instruída. Logo, Lewis está longe do purismo que ele mesmo designou “escola vigilante” da crítica literária.

Mas é claro que também há obras difíceis no cânon.[6] Ao ser convidado para fazer uma série de palestras sobre O paraíso perdido, de Milton — após o sucesso de suas palestras no rádio sobre o cristianismo —, sua resposta simples à BBC foi: “E que sentido há em dizer às pessoas que elas desfrutarão a leitura, se eu e você sabemos que não será assim?”.[7]

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Dificilmente pode haver qualquer dúvida quanto à apreciação de Lewis do tipo de obras difíceis às quais ele dedicou a maior parte de sua obra. Elas integram o cânon. Mas o seu cânon é ao mesmo tempo um programa “popular” que convida a ler de acordo com o gosto pessoal. Em suma, pelo tipo de teste proposto, Lewis evidentemente tenta combinar a realidade da distinção entre boa e má literatura com a possibilidade de um cânon muito aberto.[8]


Notas

[1] C. S. Lewis, Surprised by joy, p. 158.

[2] Ibidem, p. 154.

[3] Ibidem

[4] C. S. Lewis, Surprised by joy, p. 85.

[5] Veja C. S. Lewis, An experiment in criticism (Cambridge: Cambridge University Press, 1965) [publicado em português por Thomas Nelson Brasil sob o título Um experimento em crítica literária].

[6] No contexto da obra, a palavra “cânon” refere-se à coleção de obras clássicas da literatura ocidental. Um exemplo é “O Paraíso Perdido” de Milton, que Lewis considera digno de ser um clássico. [Acréscimo do editor]

[7] CL, vol. II, p. 571-2.

[8] Para uma reformulação de tal perspectiva de forma conscientemente inspirada por Lewis, veja Alan Jacobs, The pleasures of reading in an age of distraction (Oxford: Oxford University Press, 2011).

Trecho extraído e adaptado da obra “C. S. Lewis: uma introdução“, do autor Manfred Svensson, publicado por Vida Nova: São Paulo, 2024, p. 57-59.  Publicado no site Cruciforme com permissão.

Manfred Svensson é professor do Instituto de Filosofia da Universidad de los Andes e autor de livros introdutórios a C. S. Lewis (Clie, 2011), Dietrich Bonhoeffer (Clie, 2011) e Soren Kierkegaard (Clie, 2013).
Conhecido por fazer de um guarda-roupa a entrada para um mundo épico e fantástico, C. S. Lewis, no entanto, foi além do campo literário. O britânico, autor de As crônicas de Nárnia e Cartas de um diabo a seu aprendiz, foi muito mais do que um romancista. Proveniente de uma Europa entremeada por duas Guerras Mundiais, Lewis envolveu-se intensamente nos debates do seu tempo.

Caminhou com tranquilidade por diversos temas como o poder de expressão da linguagem política, o valor da argumentação e o papel da vida espiritual na esfera pública. Com simplicidade e clareza características, suas reflexões foram sempre guiadas pela honestidade e pelo espírito crítico.

Esta introdução apresenta o intelectual multifacetado, empenhado de maneira franca nos debates contemporâneos. Ao recorrer a uma vasta gama de fontes, incluindo cartas e artigos de jornal, bem como textos famosos como Os quatro amores e Cristianismo puro e simples, ela nos mostra o pensador moral e político na tentativa de “recuperar o encanto do mundo”. O resultado é um perfil lúcido que permitirá ao leitor não só se aproximar de uma das principais figuras do mundo literário do século 20, mas também descobrir o quanto Lewis tem a dizer à sociedade atual.

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