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Na cena de abertura de “O Príncipe do Egito”, animação de estreia dos estúdios Dreamworks, aparece uma mensagem que diz algo como “Este filme é baseado numa das pedras fundamentais de três das maiores fés religiosas do mundo. Tentamos adaptar o material mantendo o máximo de respeito”. No encargo da produção, Steven Spielberg, um dos mais bem sucedidos magnatas do cinema, também um respeitoso membro da comunidade judaica de Hollywood. A produção queria recriar “Os Dez Mandamentos”, e fez isso num estilo Disney de desenho animado musical. Mas manteve uma respeitosa reverência. O princípio de “Deus não tem forma” se aplica com a tradição dramatúrgica de não creditar o intérprete de Deus (dublado pelo mesmo dublador de Moisés, Val Kilmer no original, Guilherme Briggs na versão brasileira). E é claro, pelo fato de que a Voz de Deus vem da sarça ardente, e nada mais.

De maneira que o novo filme de “viés religioso” a chegar aos cinemas, “Êxodo: Deuses e Reis”, dirigido por Ridley Scott (Gladiador, Cruzada, Blade Runner), pode fazer as pessoas imaginarem que não houve nenhuma tentativa de manter-se o “respeito” e a “reverência”, simplesmente por mudarem inúmeros fatos descritos na Bíblia sobre a saga de Moisés para libertar o povo hebreu do domínio egípcio. A questão é que se não for haver uma nova visão, um novo ângulo, novos questionamentos, não há a necessidade de refilmar uma história tão difundida. O problema é que na tentativa de tentar encontrar esse “novo ângulo”, o filme se perde em pequenas bobagens pós-modernistas e acaba minguando a principal função do cinema: entreter.

Depois de 400 anos de escravidão, o povo hebreu sofre mais do que nunca nas mãos do faraó Seti (John Turturro), que precisa da ajuda de seu filho Ramesés (Joel Edgerton) e de seu sobrinho Moisés (Christian Bale) para conter as ideias revolucionárias dos hebreus. No meio disso, Moisés descobre que não é um filho legítimo da nobreza egípcia, mas sim um hebreu.

Então Moisés inicia uma jornada que o levará a encontrar o Deus dos hebreus, que o ordenará a missão de libertar seu povo, com a ajuda de pragas cientificamente corretas.

A ideia de Ridley Scott, confesso agnóstico, era criar mais um “se aconteceu, aconteceu assim”, viés do cinema histórico que tenta diminuir o sobrenatural das histórias e achar “razão” nas narrativas. Ele declara que era a pessoa perfeita para essa história, já que, sendo agnóstico, precisaria criar um filme capaz de convencer a si mesmo. Naturalmente, isso cria problemas de interpretação, já que para convencer a si mesmo, ele cria um “Deus” humano demais, vaidoso e infantil. Mas já falamos dele.

No começo, pode-se estranhar a posição de Moisés como general egípcio, o que é uma versão mais arqueologicamente aceita, e não necessariamente antibíblica. Moisés não cresceu como filho do faraó simplesmente comendo melão e chupando o dedo na corte. E o filme dá uma carga interessante a Moisés a partir disso. Quando tenta libertar o povo, Moisés quer criar uma guerrilha, uma rede de guerreiros treinados que tenta sabotar o Egito de dentro para fora. Esse aspecto “faço com minhas próprias mãos” combina com o Moisés do filme, que é apresentado como uma pessoa racional e cética. Ele passa a acreditar que Deus (ou “algum deus”) existe só depois de ter uma experiência de diálogo que envolve uma árvore pegando fogo. E mesmo assim, tenta fazer tudo com as próprias mãos, e falha.

O Faraó novo, Ramesés, é o antagonista chave. É quem impede a libertação, e que começa a executar famílias inteiras na tentativa de reprimir a rebelião. Infelizmente, o ator que o interpreta, tão bem em outros filmes, aqui emprega um repertório de cacoetes inexpressivos de vilões comuns. Aliás, pelo menos Christian Bale segura o filme com sua crise de fé e a personalidade forte. Quase todo o elenco de apoio está estranhamente ruim. Atores de talento renomado como John Turturro, Sigourney Weaver, Ben Kingsley e Aaron Paul se perdem no filme, sendo somente pessoas que falam coisas importantes à trama. E nada mais. Não é muito legal também que quase todo o elenco principal seja de atores ingleses, americanos, completamente brancos, para interpretar egípcios e judeus do Norte da África. Até o Príncipe do Egito se atentou a isso.

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Depois de Moisés tentar e não conseguir nada, Deus intervém, e as pragas do Egito começam. A moda revisionista de “ciência” acaba sendo bem vinda. Novamente, sem um novo ponto de vista, o filme é inútil. Deus simplesmente dá um empurrãozinho, e cria um efeito dominó no qual uma praga leva à outra, obras da natureza que, nas mentes dos sábios do Egito, não passam de terríveis coincidências. O que acaba também sendo improvável, já que ciência nenhuma explicaria aquela nuvem de gafanhotos, aquela escuridão, ou aquela morte de primogênitos.

O Deus de “Êxodo: Deuses e Reis” não é um deus de coincidências. Ao escolher dar uma forma ao personagem de Jeová, Ridley Scott está fazendo uma crítica à fé, cometendo uma gafe, ou ambos. Moisés vê um garoto de oito anos, bem zangado, que quer destruir o Egito e levar o povo à Terra Prometida. O fato de que ninguém além de Moisés enxerga o garoto é uma indicação de que Moisés talvez estivesse louco. Scott tenta transmitir o autoritarismo de Deus como a fúria de uma criança mimada, a quem nem Moisés parece dar tanta importância. Numa hora, é um moleque birrento. Na outra, chama para si a autoridade e o poder sobre a natureza. Na outra, é um assistente à criação dos Dez Mandamentos.

A ciência das pragas, Deus e até a fé de Moisés, que numa hora é um homem cético, na outra um homem de profunda fé, e na outra trata o personagem de Deus com desdém, ficam nesse vai-e-vem de indefinição até o fim. Dá para enxergar uma tentativa de sutileza, o cineasta tentando fazer você ir para casa com aquela dúvida de “será que é real ou não?”, mas Ridley Scott não é sutil já há muitos anos.

No começo de 2014, saiu um filme sobre Noé que não usava a Bíblia como principal fonte de inspiração. Naquele filme, a crise interna de Noé e seu debate de fé eram tão verdadeiros e seu questionamento tão prático, o retrato de Deus era tão isento de julgamento (permitindo ao público fazer seus próprios julgamentos), que pouco importava a presença de anjos caídos e de um intruso na arca, ou ainda de uma mensagem Eco-Friendly. Ao invés de ser encarado como um sacrilégio, aquele filme deveria ser encarado como uma reflexão. “Êxodo: Deuses e Reis”, infelizmente, não convida o espectador a fazer nenhuma reflexão. É um perfeito espetáculo Hollywoodiano: o visual é fantástico, os efeitos são surpreendentes, e o roteiro é fraco. As ideias por trás do filme se sustentam somente sobre os ombros do carisma do protagonista, e nem mesmo o Batman consegue reverter essa situação.

O filme, no final, é melhor do que eu esperava (as expectativas estavam realmente baixas). Mas com o medo de fazer um filme irrelevante, o diretor e os produtores acabam lançando um filme irrelevante. E é isso o que ele é. Não é o fim da Bíblia, como pregavam alguns absurdistas na internet. Não vai acabar com a fé e a igreja e as sinagogas. Não vai nem acabar com a carreira do Ridley Scott, que é um diretor genial, que todos querem ver voltar realmente à ativa.

Além de atuações esquecíveis e uma jornada inconstante, o que o filme tem realmente de ruim é um retrato pós-moderno e agnóstico de um Deus de “talvezes”. Aquele Que É, como o próprio personagem diz no filme, sobrevive a qualquer crítica. Mas deve ser representado com a majestade que Lhe é devida, ou com uma crítica fundada, que nos faça entender mais sobre a nossa condição distante dEle, e não a comparação gratuita com um garoto descontrolado. Se essa é a sua ideia de Deus, respeito sua opinião, mas está na hora de crescer.

Silas Chosen é roteirista, cineasta, publicitário, ilustrador e é viciado em cinema e histórias. Escreve para sites e programas de rádio sobre cinema, cultura pop e cristianismo desde 2004. Faz parte da 4U Films, ministério de cinema independente.

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