A história do nascimento de Jesus | Kenneth E. Bailey

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Os acontecimentos tradicionais da história do Natal são bem conhecidos de todos os cristãos. Fazem parte da história do nascimento de Jesus três magos trazendo presentes, pastores no campo em pleno inverno, um recém-nascido numa manjedoura e “nenhum lugar na estalagem”. Esses aspectos do relato estão bem firmados na mente das pessoas. A questão é: existe uma diferença fundamental entre o texto e o entendimento tradicional dele? Teriam os séculos acrescentado significados ao nosso entendimento do texto que não estão presentes nele?[1]

Um anel de brilhante é admirado e dá orgulho de usar, mas com o passar do tempo ele precisa ser levado ao joalheiro para ser limpo e recuperar o brilho original. Quanto mais se usa o anel, maior a necessidade de o polir de vez em quando. Quanto mais habituados estamos com uma história bíblica, mais difícil é enxergá-la fora do modo que ela sempre foi entendida. E quanto mais tempo a imprecisão permanece incontestada na tradição, mais as suas raízes se aprofundam na consciência cristã. A história do nascimento de Jesus é um desses casos.

O entendimento tradicional do relato de Lucas 2.1-18 contém uma série de falhas críticas, entre elas:

  1. José estava voltando para a sua aldeia de origem. No Oriente Médio, as memórias históricas são extensas, e a parentela, com sua ligação com sua aldeia de origem, é importante. Num contexto como esse, um homem como José poderia ter aparecido em Belém e dito às pessoas: “Eu sou José, filho de Eli, filho de Matate, o filho de Levi”, que a maioria das casas na cidade abriria as portas para ele.

  2. José era um “nobre”. Isto é, ele era da família do rei Davi. A família de Davi era tão famosa em Belém que o povo local aparentemente chamava a cidade de “Cidade de Davi” (como em geral ocorre). O nome oficial do lugar era Belém. Todo mundo sabia que as Escrituras hebraicas se referiam a Jerusalém como a “Cidade de Davi”. Entretanto, ao que tudo indica, muitos chamavam localmente Belém de a “Cidade de Davi” (Lc 2.4). Pertencendo a essa família famosa, José teria sido bem recebido em qualquer lugar da cidade.

  3. Em toda cultura se dá atenção especial a uma mulher prestes a dar à luz. As comunidades rurais simples em todo o mundo sempre ajudam no parto das suas mulheres, não importa quais sejam as circunstâncias. Devemos imaginar que Belém era uma exceção? Não havia nenhum senso de honra em Belém? Certamente a comunidade teria percebido sua responsabilidade de ajudar José a encontrar um abrigo adequado para Maria e providenciar os cuidados de que ela precisava. Virar as costas para um descendente de Davi na “Cidade de Davi” seria uma vergonha indescritível para a vila inteira.

  4. Maria tinha parentes numa vila próxima. Poucos meses antes do nascimento de Jesus, Maria visitara sua prima Isabel “na região montanhosa da Judeia” e havia sido saudada por ela. Belém localizava-se no centro da Judeia. Portanto, quando Maria e José chegaram a Belém, eles se encontravam a uma curta distância da casa de Zacarias e Isabel. Se José não tivesse conseguido encontrar um albergue em Belém, ele naturalmente procuraria Zacarias e Isabel. Mas será que ele tinha tempo para esses quilômetros a mais?

  5. José teve tempo de fazer os preparativos necessários. Lucas 2.4 diz que José e Maria subiram da Galileia para a Judeia, e o versículo 6 afirma: “enquanto estavam lá, os dias se completaram em que ela devia dar à luz” (KJV, itálicos acrescentados).[2] O cristão comum pensa que Jesus nasceu na mesma noite em que a família sagrada chegou — por isso a pressa e a disposição de José para aceitar qualquer tipo de abrigo, mesmo um estábulo. As encenações tradicionais do Natal reforçam essa ideia ano após ano.

O texto não especifica quanto tempo o casal passou em Belém antes do nascimento do menino. Mas certamente houve tempo suficiente para encontrar acomodações adequadas ou para procurar a família de Maria. Esse mito da “chegada tarde da noite e com a iminência do nascimento” está tão enraizado na mente popular cristã que é importante investigar sua origem. De onde veio essa ideia?

Um romance cristão

A fonte dessa interpretação errada se originou cerca de duzentos anos depois do nascimento de Jesus, quando um cristão anônimo escreveu um relato ampliado do nascimento de Jesus que sobreviveu ao tempo e se chama Protoevangelho de Tiago.[3] Tiago não teve nada com isso. O autor não era judeu e não conhecia a geografia da Palestina nem a tradição judaica.[4] Nesse período, muitos escreviam livros e atribuíam a autoria a pessoas famosas.

Os estudiosos datam esse “romance” em particular em torno do ano 200 d.C., e ele é cheio de detalhes fantasiosos. Jerônimo, o famoso erudito latino, o atacou, assim como fizeram muitos papas.[5] Foi redigido em grego, mas traduzido para o latim, o siríaco, o armênio, o georgiano, o etíope, o copta e o eslavônico antigo. O autor sem dúvida tinha lido as histórias do Evangelho, mas ele (ou ela) não conhecia a geografia da Terra Santa. No romance, por exemplo, o autor descreve a estrada entre Jerusalém e Belém como um deserto. Não é um deserto, mas, sim, uma terra bem fértil.[6] Segundo essa narrativa, quando o casal se aproximava de Belém, Maria disse a José: “José, desça-me do burro, pois a criança está pressionando para nascer”.[7] Atendendo ao pedido, José deixa Maria numa caverna e corre para Belém a fim de encontrar uma parteira. Depois de ter visões fantasiosas pelo caminho, José retorna com a parteira (o bebê já havia nascido) e depara com uma nuvem escura e, em seguida, uma luz brilhante pairando sobre a caverna. Uma mulher de nome Salomé aparece do nada e encontra a parteira, que lhe diz que uma virgem deu à luz e ainda continua virgem. Salomé manifesta dúvida sobre esse prodígio e por isso sua mão fica leprosa. Após um exame, a afirmação de Maria se justifica. Então, um anjo subitamente “se põe” diante de Salomé e lhe diz para tocar a criança. Ela toca, e a mão doente é milagrosamente curada — e o romance se estende a partir daí. Os autores de romances populares normalmente têm muita criatividade. Uma parte importante do enredo desse romance é que Jesus nasceu antes mesmo de seus pais chegarem a Belém. O romance é a referência mais antiga que se conhece da noção de que Jesus nasceu na mesma noite que Maria e José chegaram a Belém ou perto da cidade. O cristão comum, que nunca ouviu falar desse livro, não deixa de ser inconscientemente influenciado por ele.[8] Trata-se de uma expansão fantasiosa da narrativa do Evangelho; não se trata da própria história do Evangelho.

Resumindo os problemas da interpretação tradicional de Lucas 2.1-7: José estava voltando a sua aldeia natal, onde poderia facilmente encontrar hospedagem. Por ser um descendente do rei Davi, quase todas as portas da aldeia se abririam para ele. Maria tinha parentes próximos que poderia ter procurado, mas não os procurou. Houve tempo suficiente para arrumar um alojamento adequado. Como uma cidade judaica deixou de ajudar uma jovem mãe judia prestes a dar à luz? Considerando essas realidades históricas e culturais, como devemos entender o texto? Duas perguntas surgem: Onde estava a manjedoura? e O que era a “hospedaria”?

Em resposta às duas perguntas, é evidente que a história do nascimento de Jesus (em Lucas) é autêntica quanto à geografia e à história da Terra Santa. Os textos registram que Maria e José “subiram” de Nazaré para Belém. Belém foi construída sobre uma cordilheira e é consideravelmente mais elevada que Nazaré.[9] Em segundo lugar, o título “Cidade de Davi” era provavelmente um nome local, a que Lucas acrescenta “chamada Belém”, em favor dos leitores que não fossem do local. Em terceiro lugar, o texto informa ao leitor que José era “da casa e linhagem de Davi”. No Oriente Médio, “a casa de fulano” significa “a família de fulano”. Os leitores gregos desse relato poderiam visualizar um edifício quando liam “casa de Davi”. Lucas talvez tenha acrescentado o termo linhagem/família para ter certeza de que seus leitores o entendessem. Ele não alterou o texto, que aparentemente já estava fixado na tradição quando ele o recebeu (Lc 1.2), mas teve liberdade para acrescentar algumas notas explicativas. Em quarto lugar, Lucas menciona que a criança foi enrolada em faixas. Esse costume antigo é mencionado em Ezequiel 16.4 e ainda é praticado pelo povo das aldeias da Síria e da Palestina. Finalmente, no relato aflora uma cristologia davídica. Esses cinco pontos enfatizam que a história foi redigida por um judeu messiânico num estágio bem inicial da vida da igreja.

Para a mente ocidental, a palavra manjedoura invoca as palavras estábulo ou celeiro com estabulo anexo. Mas nos vilarejos tradicionais do Oriente Médio não é isso. Na Parábola do Rico Insensato (Lc 12.13-21), há menção de “depósitos”, mas não de celeiros. As pessoas muito ricas naturalmente tinham alojamentos separados para os animais.[10] Mas as casas simples das aldeias da Palestina em geral não tinham mais que dois cômodos. Um deles era exclusivamente para os hóspedes. Esse cômodo podia ser anexado ao fim da casa ou ser um “quarto para profetas” na parte superior da casa, como na história de Elias (1Rs 17.19). O cômodo principal era o “cômodo da família”, onde toda a família cozinhava, comia, dormia e vivia. A extremidade do cômodo próxima da porta ou tinha o piso rebaixado cerca de um metro em relação ao restante desse aposento ou era cercada com madeira pesada. Toda noite os animais da família, como a vaca, o burro e algumas ovelhas eram conduzidos para essa área. E todas as manhãs, os mesmos animais eram levados para fora e amarrados no pátio da casa. Assim, o estábulo dos animais seria limpo durante o dia. Essas casas simples existiram desde o tempo de Davi até a metade do século 20. Eu as vi na Alta Galileia e em Belém. A figura 1.1 ilustra uma dessas casas vista de lado.

A cobertura da casa é plana e pode ter um quarto de hóspede construído sobre ela, ou então pode-se construir o quarto de hóspede anexo à extremidade da casa. A porta no andar inferior serve de entrada para pessoas e animais. O camponês quer os animais na casa todas as noites porque eles fornecem calor no inverno e ficam protegidos de roubo.

A mesma casa vista de cima é ilustrada na figura 1.2.

Os círculos representam manjedouras cavadas na extremidade inferior do cômodo principal. O “cômodo da família” tem uma ligeira inclinação na direção do estábulo, o que facilita a varrição e a lavagem do local. A água e a sujeira escorrem naturalmente para baixo, para o espaço dos animais, e podem ser varridas para fora da porta. Se a vaca da família tivesse fome durante a noite, podia se levantar e comer nas manjedouras do piso do cômodo. As manjedouras para ovelhas podiam ser de madeira e colocadas no chão do piso inferior.

Esse estilo de casa tradicional se enquadra naturalmente na história do nascimento de Jesus. E também está implícito em histórias do Antigo Testamento. Em 1Samuel 28, Saul, hospedado na casa da médium de Endor, recusava-se a comer. A médium então pegou um novilho cevado que tinha “na casa” (v. 24), matou-o e preparou uma refeição para o rei e seus servos. Ela não foi buscar o bezerro no campo nem no estábulo, mas o pegou de dentro da casa.

A história de Jefté em Juízes 11.29-40 pressupõe o mesmo tipo de casa de um só cômodo. Quando partiu para a guerra, Jefté fez o voto de que, se Deus lhe concedesse a vitória, quando voltasse ele sacrificaria a primeira coisa que saísse de sua casa. Jefté venceu a batalha, mas quando voltou para casa, tragicamente, para seu horror, sua filha é a primeira a pôr os pés para fora da casa. É bem provável que ele tenha voltado bem cedo e esperava que um dos animais saísse do cômodo em que passara a noite com os demais. O texto não está contando a história de um carniceiro brutal. O leitor é obrigado a supor que jamais passara pela cabeça de Jefté que um membro de sua família ia sair primeiro. Só com esse pressuposto é que a história pode fazer sentido. Se a casa dele abrigasse apenas gente, ele nunca teria feito um voto desse. E, se vivessem apenas pessoas na casa, a quem ele planejava assassinar e por quê? Essa história é uma tragédia, porque ele esperava que saísse da casa um animal.

Essas mesmas casas simples também aparecem no Novo Testamento. Em Mateus 5.14,15, Jesus diz:

… Nem ninguém que acende uma lâmpada a coloca debaixo de um cesto, mas num velador, e assim ela iluminará todos que estão na casa.

Obviamente, Jesus está pensando em uma casa típica de aldeia, com um cômodo só. Se uma única candeia ilumina todos na casa, essa casa só pode ter um cômodo.

Outro exemplo da mesma suposição aparece em Lucas 13.10-17, quando Jesus curou no sábado uma mulher que “era encurvada e não conseguia endireitar-se de modo algum”. Jesus a chamou e disse: “Mulher, estás livre [lit., desamarrada] da tua enfermidade”. O chefe da sinagoga ficou zangado porque Jesus havia “trabalhado” no sábado. Jesus respondeu: “Hipócritas! No sábado cada um de vocês não desamarra da manjedoura o seu boi ou o jumento para levá-lo a beber água?” (v. 15). O que ele quis dizer é: hoje, no sábado, vocês desamarraram um animal. Eu “desamarrei” uma mulher. Como vocês podem me culpar? O texto relata que “todos os seus adversários ficaram envergonhados” (v. 17).

Jesus obviamente sabia que toda noite os seus adversários tinham pelo menos um boi ou um jumento em casa. Naquela manhã, todos do lugar tinham levado seus animais para fora da casa, amarrando-os no pátio. O chefe da sinagoga não respondeu: “Não, eu nunca toco nos animais no sábado”. É inconcebível deixar os animais na casa durante o dia, e não havia estábulos. Uma das primeiras e mais bem traduzidas versões árabes do Novo Testamento foi feita provavelmente na Palestina, no nono século. Apenas oito cópias sobreviveram. Essa excelente versão (traduzida do grego) registra esse versículo assim: “…vocês todos não desamarram o boi ou o jumento de vocês da manjedoura na casa e o levam para fora para lhe dar de beber?”.[11] Nenhum manuscrito grego tem as palavras “na casa” nesse texto. Mas esse tradutor cristão do nono século de língua árabe entendeu o texto corretamente. Não é verdade que todos têm uma manjedoura em casa? No mundo dele, as casas simples dos vilarejos do Oriente Médio sempre tinham!

A casa de aldeia de um cômodo com manjedouras também foi observada por estudiosos modernos. William Thompson, um missionário erudito presbiteriano de língua árabe que viveu na metade do século 19, observou casas de aldeia em Belém e escreveu: “Minha impressão é que o nascimento ocorreu realmente numa casa comum de algum camponês e que deitaram o bebê numa das manjedouras, que ainda são encontradas em casas de agricultores da região”.[12]

O erudito anglicano E. F. F. Bishop, que viveu em Jerusalém de 1922 a 1950, escreveu:

Talvez […] tenham recorrido a uma das casas de Belém com a parte inferior reservada para os animais, com manjedouras “cavadas na pedra”, e o estrado, na parte superior, reservado para a família. Uma manjedoura assim imóvel e revestida de palha amassada teria servido de berço.[13]

Durante mais de cem anos, os estudiosos residentes no Oriente Médio entenderam que Lucas 2.7 se refere ao cômodo da família, com manjedouras escavadas no piso de uma das extremidades desse cômodo. Se essa interpretação for seguida, resta a questão da identidade da “hospedaria”. O que exatamente estava cheio?

Se José e Maria estavam hospedados numa casa particular, e Jesus, quando nasceu, foi colocado em uma das manjedouras dessa casa, como a palavra hospedaria em Lucas 2.7 deve ser entendida? A maioria das traduções afirma que, depois de nascer, a criança foi deitada em uma manjedoura “porque não havia lugar para eles na hospedaria”. É como se tivessem sido rejeitados pelo povo de Belém. Será que foi isso mesmo que ocorreu?

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A linguagem tradicional tem uma armadilha. “Não havia lugar na hospedaria” adquiriu o sentido de “a hospedaria tinha vários quartos, e todos estavam ocupados”. A plaquinha de “não há vagas” já estava colocada quando José e Maria chegaram a Belém. Porém, a palavra grega não se refere a “um quarto de uma hospedaria”, mas, sim, a “espaço” (topos) como na oração “Não há espaço na minha escrivaninha para o meu novo computador”. É importante ter em mente essa correção quando nos voltamos para a palavra que, segundo nos foi dito, significa “hospedaria”.

A palavra grega de Lucas 2.7 comumente traduzida por “hospedaria” é katalyma. Não é a palavra em geral empregada para designar uma hospedaria comercial. Na Parábola do Bom Samaritano (Lc 10.25-37), o samaritano leva o homem ferido para uma hospedaria. A palavra grega nesse texto é pandocheion, cuja primeira parte significa “todos”. A segunda parte, radical de verbo, significa “receber”. Pandocheion, portanto, é o lugar que recebe todos, ou seja, uma hospedaria comercial. Esse termo grego comum para designar uma hospedaria era tão conhecido em todo o Oriente Médio que ao longo dos séculos foi assimilado como uma palavra grega emprestada ao armênio, ao copta, ao árabe e ao turco com o mesmo significado — uma hospedaria comercial.

Se Lucas esperava que seus leitores entendessem que José fora rejeitado por uma “hospedaria”, ele teria usado a palavra pandocheion, que significava claramente hospedaria comercial. Em Lucas 2.7, porém, o que estava lotado era uma katalyma. Então, o que significa essa palavra?

Em seu sentido literal, katalyma significa simplesmente “um lugar para ficar” e pode se referir a muitos tipos de abrigo. As três opções para essa narrativa são hospedaria (a tradução mais conhecida), casa (tradição bíblica árabe de mais de mil anos) e quarto de hóspedes (escolha de Lucas). De fato, Lucas usou esse termo-chave em outra ocorrência no seu Evangelho, quando a palavra se define no próprio texto. Em Lucas 22, Jesus diz a seus discípulos:

Quando vocês entrarem na cidade, um homem carregando um pote de água vai encontrar vocês. Sigam-no até a casa em que ele entrar e digam ao dono da casa: “O Mestre te pergunta: ‘Onde fica o quarto de hóspedes [katalyma] onde vou comer a Páscoa com meus discípulos?’”. E ele lhes mostrará uma grande sala superior [cenáculo] mobiliada; façam ali os preparativos. (v. 10-12)

Aqui a palavra-chave, katalyma, é definida como “uma sala superior”, que é sem dúvida um quarto de hospedes de uma casa particular. Esse significado preciso faz todo o sentido quando aplicado à história do nascimento. Em Lucas 2.7, o evangelista diz a seus leitores que Jesus foi colocado em uma manjedoura (no cômodo da família), pois naquela casa o quarto de hospedes já estava ocupado.

Se no final do Evangelho de Lucas a palavra katalyma significa um quarto de hóspedes anexo a uma casa particular (22.11), por que não teria o mesmo significado no início de seu Evangelho? O cômodo da família, com um quarto de hóspedes anexo, seria algo parecido com o desenho abaixo:

Essa opção para katalyma foi a escolha de Alfred Plummer em seu influente comentário, publicado no final do século 19. Plummer escreve: “É um pouco duvidoso que a conhecida tradução ‘na hospedaria’ esteja correta […] É possível que José tenha dependido da hospitalidade de algum amigo em Belém cujo “quarto de hóspedes”, porém, já estivesse ocupado quando ele e Maria chegaram”.[14]

I. Howard Marshall faz a mesma observação, mas não se estende sobre sua importância.[15] Fitzmyer chama katalyma de “alojamento”, o que para ele é uma “hospedaria pública para caravanas”.[16] Estou convencido de que Plummer estava certo. Nesse caso, por que esse entendimento não foi adotado pela igreja, nem no Oriente, nem no Ocidente?

No Ocidente, a igreja não notou os problemas que já enumerei. Portanto, quando não se vê problema no entendimento tradicional da história, parece que o melhor a fazer é não corrigi-lo. Contudo, uma vez que os problemas da visão tradicional do texto são aclarados, eles clamam por soluções. Por sua vez, no Oriente, a presença cristã predominante é a venerada Igreja Ortodoxa, em suas várias ramificações. E o que dizer de suas tradições?

O cristianismo no Oriente Médio tradicionalmente deu destaque ao fato do nascimento ter ocorrido em uma caverna. Muitas casas simples de aldeias tradicionais na Terra Santa começam em cavernas e depois são expandidas. A tradição da caverna remonta a Justino Mártir, autor da metade do segundo século. O que eu já propus está de acordo com essa tradição. A tradição oriental sempre sustentou que Maria estava sozinha quando a criança nasceu. Na adoração, até o altar fica escondido dos olhos dos fiéis, e a transformação dos elementos no corpo e no sangue de Jesus (na Eucaristia) ocorre fora da vista. O quanto mais deveria o “Verbo que se fez carne” acontecer sem testemunhas? O padre Matta al-Miskin, um erudito e monge ortodoxo copta do século 20 que escreveu seis grandes comentários em árabe sobre os quatro Evangelhos, reflete maravilhado sobre santa Maria sozinha na gruta. Ele escreve:

Meu coração está com essa mãe solitária.

Como ela suportou as dores do parto sozinha?

Como ela recebeu o filho com as próprias mãos?

Como ela o envolveu em faixas estando totalmente esgotada?

O que tinha para comer e beber?

Ó mulheres do mundo, vejam a mãe do Salvador.

Quanto ela sofreu e quanta honra ela merece,

… junto com nosso carinho e amor?[17]

Naturalmente, essa piedade genuína e comovente não está interessada em refletir sobre o nascimento em uma casa particular com todo o cuidado e o apoio que outras mulheres teriam dado. Portanto, entre os cristãos, do Oriente e do Ocidente, houve motivos compreensíveis para ignorar um novo entendimento desse texto.

Resumindo, uma parte do que Lucas nos conta sobre o nascimento de Jesus é que a sagrada família viajou para Belém, onde foram recebidos em uma residência particular. A criança nasceu, foi envolta e (literalmente) “colocada na cama” (anaklinō) no cômodo principal da casa, numa manjedoura cavada no piso ou feita de madeira e colocada no espaço de vivência da família. Por que não foram convidados para ficar no quarto de hóspedes? O leitor poderia naturalmente perguntar. A resposta é que o quarto de hóspede já estava ocupado por outros convidados. A família anfitriã recebeu Maria e José generosamente no cômodo da família da casa.

Naturalmente, os homens teriam saído do cômodo da família para o nascimento da criança, e a parteira da aldeia e outras mulheres teriam ajudado no parto. Depois que a criança nasceu e foi envolvida com faixas, Maria pôs seu recém-nascido para dormir em uma manjedoura cheia de palha fresca e o cobriu com um cobertor. Quando Jesus, já adulto, iniciou seu ministério, “as pessoas comuns o ouviam com prazer” (Mc 12.37, KJV). Essa mesma aceitação foi evidente no seu nascimento. E o que dizer dos pastores de ovelhas?

A história dos pastores reforça a imagem que apresentei. Os pastores na Palestina do primeiro século eram pobres, e as tradições rabínicas os rotulam de impuros.[18] Isso pode parecer estranho, porque o salmo 23 começa com “O Senhor é meu pastor”. Não fica claro como uma metáfora tão nobre passou a ser uma profissão impura. A questão principal talvez seja que o rebanho comia propriedade particular.[19] A literatura rabínica registra cinco listas de “ofícios proibidos”, em três delas aparece o ofício de pastor.[20] Essas listas têm origem nos tempos posteriores ao Novo Testamento, mas podem refletir ideias em desenvolvimento na época de Jesus. De qualquer modo, os pastores eram gente humilde, sem instrução.

Em Lucas 2.8-14, as primeiras pessoas a ouvirem a mensagem do nascimento de Jesus foi um grupo de pastores que beiravam a base da pirâmide social da nação. Os pastores ouviram e ficaram com medo. A princípio, eles provavelmente ficaram amedrontados com a visão dos anjos, mas depois foram convidados a visitar a criança! Do ponto de vista deles, se a criança fosse de fato o Messias, os pais os rejeitariam se eles tentassem visitá-la! Como os pastores poderiam ser convencidos de que seriam recebidos?

Os anjos previram essa inquietação e disseram aos pastores que eles encontrariam o bebê envolto em panos (o que os camponeses, como os pastores, faziam com seus bebês recém-nascidos). Além disso, os anjos disseram que ele estava deitado em uma manjedoura! Isto é, eles iam encontrar o menino Cristo em uma simples casa camponesa como a deles. Ele não estava na mansão de um governador nem na sala de convidados de um rico comerciante, mas numa casa simples de dois cômodos igual à deles. Isso eram boas-novas de fato. Provavelmente, não se diria a eles: “Pastores impuros — vão embora!”. Esse era o sinal deles, um sinal para pastores humildes.

Com esse sinal especial de incentivo, os pastores seguiram para Belém apesar de sua “baixa posição” social (Lc 1.52). Quando chegaram, contaram a história e todos ficaram maravilhados. Depois eles voltaram “louvando a Deus por tudo o que tinham visto e ouvido”. A palavra tudo obviamente incluía a qualidade da hospitalidade que testemunharam quando chegaram. Sem dúvida, eles encontraram a família sagrada em acomodações perfeitamente adequadas, não em um estábulo sujo. Se, quando chegaram, tivessem encontrado um estábulo malcheiroso, uma jovem mãe assustada e um José desesperado, eles teriam dito: “Isso é revoltante! Venham para nossa casa! Nossas mulheres vão cuidar de vocês!”. Em cinco minutos, os pastores teriam levado a pequena família para a casa deles. A honra da aldeia toda dependeria disso, e eles teriam consciência da responsabilidade de cumprir seu dever. O fato de os pastores terem saído sem levar a jovem família indica a percepção de não poderem oferecer hospitalidade melhor do que aquela que a família já estava recebendo.

As pessoas do Oriente Médio têm enorme capacidade de tratar seus hóspedes com honra. Observa-se isso já na história de Abraão e seus hóspedes (Gn 18.1-8), e o costume continua até hoje. Os pastores deixaram a sagrada família e partiram louvando a Deus pelo nascimento do Messias e pela qualidade da hospitalidade da casa em que ele nasceu. Isso é o coroamento da narrativa dos pastores. A criança nasceu para os semelhantes aos pastores — os pobres, os humildes, os rejeitados. Ela também veio para os ricos e para os magos, que depois vieram com ouro, incenso e mirra.

Mateus informa aos seus leitores que os magos entraram na casa, onde viram Maria e o menino (Mt 2.1-12). A narrativa de Mateus confirma a ideia de que o relato de Lucas fala do nascimento em uma casa particular.

Com esse entendimento em mente, todos os problemas culturais que observei se resolvem. José não foi obrigado a procurar uma hospedaria comercial. Ele não aparece como um marido incompetente e inepto, que não consegue suprir as necessidades de Maria. Do mesmo modo, José não irritou os parentes de Maria por deixar de procurá-los no momento difícil. O menino nasceu no ambiente normal de um lar de camponeses algum tempo depois que o casal chegou a Belém, e eles não tiveram de lidar com nenhum estalajadeiro sem coração. O membro da linhagem de Davi não foi humilhado com rejeição quando voltou à aldeia natal de sua família. O povo de Belém ofereceu o melhor que tinha e preservou a honra de sua comunidade. Os pastores não eram tolos insensíveis sem presença de espírito para ajudar uma família de desconhecidos necessitada.

Os nossos presépios continuam sendo como são porque canções de Natal dizem algo como “o boi e o burro diante dele se curvam, pois ele está na manjedoura”. Mas a manjedoura estava em uma casa aquecida e acolhedora, não em um estábulo frio e solitário. Observar a história por esse ângulo remove as camadas de mitologia na interpretação que se acumularam sobre a narrativa. Jesus nasceu em uma casa simples de dois cômodos de um vilarejo como as que o Oriente Médio conhece há pelo menos três mil anos. Sem dúvida, precisamos reescrever nossas peças natalinas, porém, ao reescrevê-las, a história se enriquece, não empobrece.[21]


[1] Para uma discussão técnica desse texto, veja Kenneth E. Bailey, “The manger and the inn: the cultural background of Luke 2:7”, Theological Review 2 (1979): 33-44.

[2] Algumas traduções modernas omitem que se passaram vários dias em Belém antes de Jesus nascer. O texto original (juntamente com a Versão King James) é preciso sobre isso.

[3] Oscar Cullman, “Infancy Gospels”, in: Wilhelm Schneemelcher, org., New Testament Apocrypha (Philadelphia: Westminster, 1963), 1:370-88.

[4] Ibidem, p. 372.

[5] Ibidem, p. 373.

[6] Morei dez anos nessa estrada, que na época era cheia de ricos olivais.

[7] The Protevangelium of James 17.3, in: Wilhelm Schneemelcher, org., New Testament Apocrypha (Philadelphia: Westminster, 1963).

[8] Curiosamente, o Códice de Beza (quinto a sexto século d.C.) altera o texto para “quando eles chegaram, ela deu à luz…”. Essa alteração no texto grego afirma a ideia de que Jesus nasceu assim que eles chegaram.

[9] Nazaré fica a cerca de 490 metros acima do nível do mar, enquanto Belém foi construída em um monte e fica a 700 metros acima do nível do mar.

[10] Yizhar Hirschfeld; M. F. Vamosh, “A country gentleman’s estate: unearthing the splendors of Ramat Hanadiv”, Biblical Archaeology Review 31, n. 2 (2005): 18-31.

[11] Vatican Arabic MSS 95, folio 71 (grifo do autor).

[12] William Thompson, The land and the Book (New York: Harper & Brothers, 1871), 2:503.

[13] E. F. F. Bishop, Jesus of Palestine (London: Lutterworth, 1955), p. 42.

[14] Alfred Plummer, Gospel according to S. Luke, 5. ed., International Critical Commentary (1922; reimpr., Edinburgh: T & T Clark, 1960), p. 54.

[15] Marshall, Gospel of Luke, p. 107.

[16] Fitzmyer, Gospel according to Luke (I-IX), p. 408.

[17] Matta al-Miskin, al-Injil, bi-Hasab Bisharat al-Qiddis Luqa (Cairo: Dayr al-Qiddis Anba Maqar, 1998), p. 128 (tradução do autor).

[18] Joachim Jeremias, “Despised trades and Jewish slaves”, in: Jerusalem in the time of Jesus (Philadelphia: Fortress, 1969), p. 303-4 [edição em português: Jerusalem no tempo de Jesus (São Paulo: Paulus, 2010)].

[19] J. D. M. Derrett, “Law in the New Testament: the Parable of the Prodigal Son”, New Testament Studies 14 (1967): 66, n. 1.

[20] Jeremias, Jerusalem in the time of Jesus, p. 303-12.

[21] Cf. Kenneth E. Bailey, Open hearts in Bethlehem (Louisville: Westminster/John Knox, 2005). Trata-se de um musical de Natal concebido com base nas ideias aqui apresentadas.

Trecho extraído e adaptado da obra “Jesus pela ótica do Oriente Médio: estudos culturais sobre os Evangelhos”, de Kenneth E. Bailey, publicada por Vida Nova: São Paulo, 2016, p. 27-38. Traduzido por Carlos E. S. Lopes. Publicado no site Cruciforme com permissão.

Kenneth Bailey (1930-2016) obteve seu doutorado em Teologia pelo Concordia Theological Seminary. Foi autor de inúmeros livros em inglês e árabe, além de palestrante e professor pesquisador emérito de Estudos do Novo Testamento e Oriente Médio no Tantur Ecumenical Institute for Theological Research, em Jerusalém. Passou mais de quarenta anos ensinando em seminários e institutos de pesquisa no Egito, no Líbano, em Jerusalém e em Chipre. É autor do magistral Jesus pela ótica do Oriente Médio, publicado por Vida Nova.
Kenneth Bailey guia o leitor em um estudo caleidoscópico de Jesus ao longo dos quatro Evangelhos. O autor examina a vida e o ministério de Jesus atentando para a Oração do Senhor, as Bem-Aventuranças, a interação de Jesus com as mulheres e especialmente as parábolas de Cristo.

Em tudo isso, Bailey emprega sua habilidade de especialista da cultura do Oriente Médio para nos levar a uma compreensão mais aprofundada da pessoa e do significado de Jesus dentro de seu contexto histórico e cultural. Para isso, o autor dissipa as nebulosas camadas da interpretação ocidental moderna.

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