Ser cristão envolve crer no inacreditável: a pessoa humana histórica chamada Jesus, nascida em um estábulo em uma aldeia atrasada, fora de Jerusalém, cerca de dois mil anos atrás, era na verdade Deus em carne e osso. Essa afirmação inconcebível, a encarnação,[1] significa que, desde o nascimento, o bebê humano chamado Jesus era “plenamente Deus e plenamente homem em uma só pessoa, e assim será eternamente”.[2] Deus se tornou homem — para sempre. Aquele bebê na manjedoura era Emanuel, Deus conosco!
Paulo exprimiu a encarnação assim: “Nele habita corporalmente toda a plenitude da Divindade” (Cl 2.9). Imagine isso! Jesus não era apenas uma aparição especial de Deus, uma teofania. Nem tampouco ele era só um mestre incompreendido que ensinava o amor e acabou sendo crucificado. Ele era o Deus encarnado — imortal; espírito invisível revestido de cabelos, pele e sangue humanos; com uma estrutura de ossos e músculos. Ao se humilhar, Deus teve de respirar, comer, beber e dormir. Sangrava quando se cortava. Desejava companheirismo e sofreu verdadeiramente quando seus amigos o abandonaram. Ele é um de nós, da nossa espécie, e, assim como nós participamos da carne e do sangue, “ele também participou das mesmas coisas” (Hb 2.14).
Até hoje ele continua sendo um de nós. Essa verdade é “o fundamento de toda a nossa consolação” para sempre.[3] A encarnação traz esperança incessante e põe fim ao nosso exílio, à nossa constante peregrinação e ao nosso desespero. Excelente conforto para nossa alma é a verdade de que ele é como nós. Por quê? Porque a encarnação nos faz saber que, apesar de pecarmos, não estamos sozinhos; apesar de sermos fracos e finitos, ele sabe o que é fraqueza e mortalidade, uma vez que também foi fraco e mortal como nós; e, apesar de constantemente falharmos, ele se comprometeu a ser parte de uma raça de fracassados — e assumiu esse compromisso para sempre. Ele não usa nossa carne simplesmente como uma hospedaria impessoal, como um quarto de hotel imundo de onde não se vê a hora de sair. Ao contrário! Ele assume a nossa natureza totalmente e será o Deus-homem para sempre, por toda a eternidade!
A encarnação separa o cristianismo de todas as outras religiões. A ideia de Deus se tornar homem simplesmente não tem paralelo em nenhuma outra fé. Em nenhuma outra religião um deus faz algo além de dizer a seus adoradores o que fazer para ser como ele, para ganhar seu favor ou, pelo menos, para evitar enfurecê-lo. Em nenhuma outra religião um deus criador se humilha e se torna uma parte indistinguível de sua criação.
Na encarnação, Deus se tornou tão completamente um de nós que as pessoas com quem convivia não percebiam nada de especial nele; a Divindade de Jesus estava perfeitamente velada em carne humana. De fato, quando ele foi a seu próprio vilarejo, Nazaré, “as pessoas que o haviam conhecido por muitos anos não o receberam”.[4] “Não é este o filho do carpinteiro?”, perguntaram. “Sua mãe não se chama Maria…?” (Mt 13.55). Nem sua própria família sabia que ele era o Deus encarnado. Imagine só: “… nem seus irmãos criam nele” (Jo 7.5).
Qual era a aparência de Jesus? A de um homem comum. A forma dele era exatamente como a nossa. Ponha o livro de lado um momento e olhe em volta. Você vê alguém? Pois Jesus era assim, totalmente comum. Melhor ainda, olhe-se no espelho. Ele era assim como você! Tinha olhos, poros, cabelos e dentes. Se você o visse, não ia achar que ele tinha algo especial. Ele não tinha nenhum tipo de magnetismo que provocasse um segundo olhar nos outros. Era parecido com qualquer carpinteiro de vinte e poucos ou trinta anos que vemos todos os dias trabalhando numa construção qualquer.
A completa identificação dele conosco não devia ter surpreendido seus contemporâneos, pois, setecentos anos antes de seu nascimento, o profeta Isaías falou da aparência comum do Messias: “Não tinha aparência nem formosura para que olhássemos para ele, e nenhuma beleza para que o desejássemos” (Is 53.2, ESV). Ele assumiu por sua própria vontade a forma de servo e nasceu à semelhança dos homens. Ele era totalmente humano (Fp 2.7,8).
Como era o bebê Jesus? Será que ele tinha algum tipo de brilho radioativo? Quem sabe uma aureolazinha ou querubins pairando em volta da cabeça? Não. Ele era como qualquer outro bebê do Oriente Médio, enrolado em panos e mamando no peito da mãe. E, ao contrário do que diz a canção de natal Away in the manger [Na manjedoura], ele chorou, sim, ao ser acordado pelo mugido das vacas. Ele chorava exatamente como nós.
À diferença dos deuses mitológicos antigos, Jesus não era nenhum semideus malvado despojado de seus superpoderes e banido para a terra como castigo. Jesus não é Thor. Não. Deus Filho se ofereceu espontaneamente para ser um de nós e assumir para sempre tudo o que significa ser humano. “Sendo rico, fez-se pobre [voluntariamente] por amor de vocês, para que, por meio da pobreza dele, vocês se tornassem ricos” (2Co 8.9, ESV). A encarnação não foi um castigo para o Filho; foi um ato de amor dele, foi uma “humilhação voluntária”.[5] De bom grado, ele “se fez nada” (Fp 2.7, NIV). Aquele que tinha tudo, que era Senhor de tudo, Deus Altíssimo, Criador, tornou-se um simples servo — seu servo — por amor a você. Ele veio para servir você e o conquistar com seu amor. Ele se fez um de nós para podermos ser dele.
[1] Martin Chemnitz , seguidor de Martinho Lutero, assim definiu a encarnação: “O Filho de Deus, na plenitude dos tempos, reuniu em si mesmo, em união perpétua indissolúvel por toda a eternidade, a natureza humana, verdadeira, completa e inteiramente da mesma substância que a nossa, tendo um corpo e uma alma racional com todas as condições, desejos, capacidades e faculdades próprias e características da natureza humana. Essa natureza é pura, sem pecado, incorrupta e santa, mas carrega todas as enfermidades que sobrevieram à nossa natureza decaída como penalidade pelo pecado. Isso ele assumiu voluntariamente e sem imperfeição no momento de sua humilhação, pelo nosso bem, para que pudesse ser feito vítima por nós” (Martin Chemnitz, The two natures in Christ, tradução para o inglês por J. A. O. Preus [St. Louis: Concordia, 1971], p. 64-5).
[2] Wayne Grudem, Systematic theology: an introduction to biblical doctrine (Grand Rapids: Zondervan, 1994), p. 529 [edição em português: Teologia sistemática, 2. ed. com índices, tradução de Norio Yamakami; Lucy Yamakami; Luiz A. T. Sayão; Eduardo Pereira e Ferreira (São Paulo: Vida Nova, 2010)].
[3] Chemnitz, Two natures, p. 41.
[4] Grudem, Systematic theology, p. 534.
[5] Charles Hodge, Systematic theology, ed. condensada, edição de Edward N. Gross (Phillipsburg: P&R, 1992), p. 363 [edição em português: Teologia sistemática, tradução de Valter Martins (São Paulo: Hagnos, 2001)].
Trecho extraído e adaptado da obra “Encontrados nele: a alegria da encarnação e de nossa união com Cristo”, de Elyse Fitzpatrick, publicada por Vida Nova: São Paulo, 2018, p. 49-52. Traduzido por Lucília Marques. Publicado no site Cruciforme com permissão.
Elyse Fitzpatrick (MA em aconselhamento bíblico,Trinity Theological Seminary) trabalha como conselheira no Instituto de Aconselhamento Bíblico e Discipulado (anteriormente CCEF West) e frequentemente dá palestras em retiros e conferências. É autora de Ídolos do coração, Aconselhamento a partir da cruz, Encontrados nele e Por que ele me ama (Vida Nova), além de vários artigos em periódicos sobre o tema dos distúrbios alimentares. Elyse e o marido, Philip, têm três filhos e dois netos. |