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Martinho Lutero e sua família, por Gustav Adolf Spangenberg (1866), Musée de Leipzig

O louvor protestante convoca o mesmo ritmo do adorado para os adoradores: se Deus faz e acontece, aqueles que o adoram têm de expressar o que na vida deles foi feito e aconteceu. Logo, os cânticos protestantes trazem história. Era cego e agora vejo. Era miserável, mas Cristo resgatou-me. Morava no abismo e agora terei uma casa celeste. Todas as expressões são mais da ordem da narração que da ordem da quietude. Essa mudança no paradigma do que se comunica na igreja acabou por alastrar-se a todos os lugares fora dela. O protestantismo, ao louvar de um modo diferente, deu origem a uma cultura globalmente diferente.

A Reforma estabelece o contar uma história como o dispositivo fundamental da sua cultura. Isso vai da música à literatura. Não teríamos o chamado romance moderno sem a Reforma protestante. Nesse sentido, também é o protestantismo o pai do cinema, que é um condensado de imagens, é certo, mas com o intuito de contar uma história. Também é o protestantismo o pai da cantiga contemporânea na sua estrutura tradicional de estrofe e refrão (e às vezes com o acréscimo de uma ponte). Antes do protestantismo, o canto exigia da parte do ouvinte que ele sossegasse e se entregasse ao êxtase. Depois do protestantismo, o canto convida o ouvinte a juntar-se e, se possível, introjetar a sua própria experiência. Por todas as razões e mais algumas, o rock’n’roll é filho da Reforma. Pelas óbvias ligações ao gospel afro-americano e pelas óbvias ligações com a ideia de replicação a partir de uma estrutura sonora simplificada. O Diabo pode dizer que a música moderna lhe pertence, mas só acredita no Diabo quem não quiser saber a verdade.

A fé que produz o pop

Encontrar os efeitos do protestantismo na nossa cultura popular, vá ela da música ao cinema, passando pela literatura, é uma oportunidade para reconhecer que não precisamos abraçar a dicotomia que põe as palavras a lutar contra a ação, ou a dicotomia que põe o sagrado a lutar contra o profano, ou a dicotomia que põe o que é bom a lutar contra o que é popular. Para Lutero, a simplicidade era um atributo divino. Logo, a pessoa tocada por Deus tem meios à disposição para testemunhar esse contato. Mais ainda: a pessoa tocada por Deus não tem como, na sua simplicidade, não querer testemunhar esse contato. Aquilo que de intelectualmente claro acontece é também aquilo que acontece emocionalmente.

Se Deus se revela em sua palavra, a Bíblia, há muito de novo que se vai pensar. Mas, se Deus se revela em sua palavra, também há muito de novo que se vai sentir. Aquilo que se percebe das Escrituras é aquilo que se exerce na adoração: a perspicuidade da Bíblia é tão intelectual quanto emocional. Os protestantes não têm como não querer cantar a sua teologia. Como já vimos, não querer cantar é o sinal mais certo de que nada de teológico aconteceu. Por isso, os protestantes desconfiam daqueles que vivem o seu encontro com o sublime em silêncio — como é possível fazê-lo se Deus criou em nós línguas? Os protestantes desconfiam do silêncio uma vez que o silêncio lhes inspira uma relação menos simples e desnecessariamente distante entre o adorador e o adorado.

O barulho protestante vem da centralidade que é dada a Cristo. Com a Bíblia aberta, é difícil ter Jesus nublado; logo, existe uma multidão de sons para dar sequência a esse sentido cristológico de todas as coisas. A cristologia protestante é um motivo de unir sentido a som, num trânsito que se torna fértil e criativo. São muitos os livros que são escritos e os hinos que são cantados só nesse período inicial da Reforma protestante. Não é, portanto, de estranhar que as culturas que foram influenciadas pelo protestantismo sejam de uma grande abundância literária e musical. Não há estalido que não esteja sendo convocado para afirmar uma fé renovada. A fé faz o pop.

Engolidos pela palavra

A centralidade da música na cultura protestante não acontece porque a boca dos protestantes é naturalmente grande. Acontece porque os protestantes se sentem engolidos pela própria palavra. E, para ilustrar isso, talvez valha a pena falar de um escritor que era também um pastor protestante: Lewis Carroll.

Lewis Carroll é conhecido sobretudo pela sua obra Alice no país das maravilhas, um livro que não é menos que maravilhoso. Li-o há poucos meses, numa involuntária prova de que às vezes é preciso ser bem crescido para ser capaz de admirar aquilo que injustamente se considera literatura de gente pequena. Alice no país das maravilhas é um clássico que deve ser lido por toda gente, filhos e pais. E, para os efeitos deste livro sobre Lutero, ilustra bem a relação do protestantismo com a literatura no geral e com a música em particular. Alice no país das maravilhas é um disco de rock psicodélico que demonstra que o protestantismo só sobrevive na barriga da palavra. É curioso e revelador que qualquer adaptação para o cinema (seja de animação ou mais real) não consiga fazer justiça à exuberância logocêntrica do livro.

Exuberância logocêntrica em Alice no país das maravilhas? Como assim? O primeiro capítulo de Alice no país das maravilhas começa com a protagonista aborrecida por não ter nada para fazer, e o único livro que tem por perto, que estava sendo lido pela irmã, estava despido de ilustrações ou diálogos. Pergunta então Alice: “Para que serve um livro sem figuras ou conversas?”. A partir dessa queixa contra a suposta chatice da literatura, Alice acaba por ser engolida para um mundo literário irrequieto e indomável. É como se ela se tivesse queixado contra os livros e os livros se vingassem dela metendo-a pela boca abaixo. Lewis Carroll, protestante que era como Lutero, sabia que as letras mordem e deixam marcas naqueles que se expõem a elas. Alice no país das maravilhas é a prova de que a literatura é vingativa. Se a tomamos como inofensiva, ela vai nos morder.

Em certo sentido, as aventuras de Alice no país das maravilhas funcionam como uma espécie de reedição da história do profeta Jonas na barriga do peixe. Jonas não queria pensar no mundo à volta dele, nesse caso na cidade de Nínive, que era a capital do cruel Império Assírio. Então Deus fez com que ele fosse parar no centro desse mundo, de carona na barriga de um peixe. Da mesma maneira, Alice, indiferente a livros sem desenhos e diálogos, cai para um buraco revestido de prateleiras de livros: Alice é engolida por uma biblioteca. Tanto Jonas quanto Alice fogem da palavra, mas a palavra come-os devolvendo-os a uma relação restaurada com a realidade. No protestantismo, as palavras não são o que se faz para nos distrairmos da realidade; as palavras são o que a realidade faz conosco. Não somos nós que falamos, mas é a palavra que fala a nós.

A música é no protestantismo uma rendição a essa boca cósmica que nos engole e que é a salvação em Cristo revelado nas Escrituras. No livro A peculiar glory [Uma glória singular], o pastor americano John Piper fala a respeito disso da seguinte maneira: “A minha perspectiva sobre a Bíblia foi sempre uma perspectiva através da Bíblia […], a realidade vista através dela tornava-se cada vez mais clara, e brilhante, e profunda”. No protestantismo, não é o cristão que se prende a uma visão da Bíblia, mas é a Bíblia que o prende por aquilo que ele consegue enxergar dela. Não somos nós que vamos até Deus, mas, sim, foi Deus que veio até nós. Numa viagem com esse tipo de temperatura, não é possível vestir uma roupa muito quente, própria de encontros mais frios. O protestantismo despe-se de pudores litúrgicos para ler, pregar e cantar, aumentando consideravelmente os níveis decibelimétricos. Possivelmente porque, quando nos sentimos engolidos, gritamos. Não dá para calar o protestantismo — se ele se comporta, já deixou de ser protestantismo.

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Uma santidade que passa das marcas

Douglas Wilson, outro pastor protestante americano, escreveu um texto enérgico sobre os puritanos. Esse texto chama-se The Puritan greatness with words. Apesar de o nosso objetivo não ser aqui examinar os puritanos em particular, eles oferecem um bom exemplo da paixão vigorosa do protestantismo pela palavra e do consequente estardalhaço que daí sai. Não é possível falar de protestantismo sem acabar falando do barulho que eles fazem musicalmente à custa do amor que têm à palavra.

Como vimos sobretudo quando falamos de O cativeiro babilônico da igreja, o protestantismo parte de uma consciência de liberdade recém-adquirida. O protestante é sempre uma pessoa que se sente agora livre, mas que até este momento não se sentia assim. No discurso e na música protestante, há sempre um passado, um presente e um futuro — a tal narrativa. Isso permite que o momento presente seja por necessidade um momento de exuberante declaração de que a pessoa que fala é agora liberta. Com essa consciência de liberdade vem uma alegria irrefreável, que naturalmente torna o protestantismo vibrante no modo que cultua.

Seguindo o que Douglas Wilson diz acerca dos puritanos e aplicando-o a todos os protestantes, “eles eram seriamente alegres, que é uma forma de seriedade, creio. A alegria deles era contagiosa e a lógica, incontestável. No centro da sua grandeza, estava uma grandeza com as palavras, fossem prosa, fossem poesia”. E Wilson dá exemplos nos escritores Tyndale, Spenser, Milton, Herbert, Donne, Marvell, Sidney, Taylor, Bradstreet e Bunyan: “A natureza da inundação literária protestante veio do fato de que o evangelho (entendido no sentido antigo de boas notícias) tinha-se libertado e estava solto nas ruas”. Por trás da revolução cultural do protestantismo está uma voracidade: novas palavras são colocadas em texto e em canção porque se crê que uma insurreição aconteceu na alma dos seus autores.

Douglas Wilson passa então a citar um ensaio de C. S. Lewis chamado English literature in the 16th century. Nele, o autor de As crônicas de Nárnia explica que, na guerra inglesa entre protestantes e papistas, o conflito não se dividia entre os da Reforma, que eram muito rigorosos, e os de Roma, que eram muito indulgentes — como geralmente o choque é retratado. Lewis diz que os protestantes, por exemplo, nos assuntos da cama, é que eram os indulgentes — os atrevidos. Os puritanos, herdeiros de Lutero, eram persistentes no aviso de que o sexo era um dever do bom cristão casado. Era ao protestantismo que cabia sugerir uma vida santa que parecia passar das convenções estabelecidas. A cultura protestante inaugura uma poética que é bastante produtiva e diz que somos maus, mas que, por causa disso mesmo, a graça de Deus é ainda mais surpreendente do que julgávamos. A arte protestante não dá com uma mão e tira com a outra: tira primeiro e dá depois. Esse é o jogo caprichoso em que se alinha. Para ser protestante é preciso ter algum humor negro.

C. S. Lewis remata:

“Se havia algo que os primeiros protestantes não eram, era azedos, sombrios ou severos; nem os seus inimigos os acusavam disso. O protestantismo não era demasiado austero, mas demasiado alegre. Em abono da verdade, os protestantes não eram ascetas, mas, sim, sensualistas.”

A iconoclastia protestante, ao livrar-se das imagens nas igrejas ou do pesado calendário litúrgico, não propõe um vazio como alternativa. Muitas vezes é essa a acusação injustamente feita: a de que o protestantismo se obcecou com a idolatria de uma maneira que eliminou qualquer estética. Pelo contrário, o protestantismo sugere uma nova estética que, sendo casada com a palavra e desconfiada da imagem, traz novas metáforas e alegorias que ganham forma fundamentalmente a partir do discurso. Ou seja, aquilo que se ouve, se escreve e se canta pode prometer o que aquilo que se vê não consegue. Podemos dizer que o protestantismo volta a sensualizar a palavra, esquecida que estava nos labirintos visuais medievais. Peter Matheson diz que a Reforma não foi uma série de protestos em forma de lista de compras, mas “a coreografia para uma nova dança”. A estética protestante é fazer da palavra uma santidade que ultrapassa as convenções estabelecidas.

Trecho extraído e adaptado da obra “Cuidado com o Alemão: Três dentadas que Martinho Lutero dá à nossa época“, de Tiago Cavaco, publicado por Vida Nova: São Paulo, 2017, pp. 169-176. Publicado com permissão.

Tiago Cavaco é formado em Ciências da Comunicação na Universidade Nova de Lisboa e pastor da Igreja da Lapa. Trabalhou dez anos em televisão, colabora com a revista Ler e mantém desde 2003 o blog Voz do Deserto. Casado com Ana Rute e pai de Maria, Marta, Joaquim e Caleb, é autor de "Ter Fé na Cidade, "Seis Sermões Contra a Preguiça", "Cuidado com o Alemão" e "Milagres no Coração" publicados por Vida Nova.
Depois de quinhentos anos da Reforma, Martinho Lutero ainda é uma figura impactante para a igreja cristã. Este livro é uma prova de sua relevância para nossa época, sobretudo para a igreja. O Reformador, com seus dentes afiados, dá três dentadas que são marcantes para onosso contexto atual:

• A primeira chama-se “Maldade”. Nela o Reformador diz que somos piores do que pensamos.

• A segunda chama-se “Meninada”. Nela o Reformador dá um exemplo de educação dos filhos.

• A terceira chama-se “Música”. Nela o Reformador corrige-nos o ritmo.

É só quando Lutero nos ofende que aprendemos alguma coisa com ele. Este livro não é um tratamento objetivo da personagem histórica. É uma apologia de Lutero e só cumprirá seu propósito se incomodar o leitor.

Publicado por Vida Nova.

3 Comments

  1. Carolina Henkels Rosa disse:

    só acho estranho citar Lewis Carrow como pastor protestante, tendo em vista que ele reconhecidamente se afastou da fé cristã, se dedicando aos estudos do espiritismo e ocultismo. Além de que ele é conhecido por sua estranha relação com crianças, beirando a pedofilia.

  2. Henrique Silva disse:

    achei a idéia central do texto bacana. Talvez o autor tenha tido uma intenção que eu não pude captar, mas senti falta de alguma imparcialidade. Percebo uma relação de amor-e-ódio entre o protestantismo e a cultura moderna, uma espécie de pai e filho que não se entendem, mas que estão condenados eternamente ao parentesco… Mas, talvez eu esteja errado.

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