A interpretação bíblica na perspectiva da teologia contextual até o início do século 21 | Hélder Cardin

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Brian McLaren

O contexto pós-moderno

Apesar de estarmos vivendo este período da história, o qual é relativamente recente, já nos é possível a identificação e compreensão de alguns fundamentos da pós-modernidade e como estes pressupostos influenciam a leitura e interpretação da Palavra de Deus, como, por exemplo:

Características e impactos sobre a hermenêutica bíblica

1. Relativização da verdade. Tendo em vista que a verdade depende do contexto sociocultural-religioso-sexual em que é formulada, pode-se dizer que ela só se torna válida dentro do contexto ao qual está vinculada. Assim, a verdade assimilada em determinado contexto não serve para absolutamente mais ninguém, muito menos se enquadra em qualquer outro contexto que não seja aquele em que foi proposta. Logo, na mentalidade pós-moderna, uma interpretação é válida exclusivamente para quem a fez. Não é possível, então, dizer que determinada interpretação esteja errada, pois todas são igualmente válidas.

De acordo com essa concepção, portanto, não existe um sentido único no texto bíblico. Deste modo, o sentido original é inacessível devido à distância cultural, cronológica e linguística e à inexistência do contexto original. Assim, a cada nova leitura de um mesmo texto, uma nova interpretação torna-se possível e até necessária. Essa é a chamada pluralidade hermenêutica.

2. “Colagem”. É a percepção da vida, da realidade e da teologia sob o prisma de um grande mosaico. Usam-se conceitos de várias fontes, formatos e desdobramentos, que podem até ser mutuamente excludentes em alguns casos, mas que, ao serem dispostos em uma grande imagem, coexistem sem muitos conflitos.

Uma obra teológica que expressa bem esse pensamento mosaico é Uma ortodoxia generosa, de Brian McLaren. Em seu livro, ele se propõe a responder à seguinte questão: que tipo de cristão eu sou? A resposta, esboçada no sumário, é muito sugestiva:

  • Missional
  • Evangélico
  • Protestante
  • Liberal / Conservador
  • Místico / Poético
  • Bíblico
  • Carismático / Contemplativo
  • Fundamentalista / Calvinista
  • (Ana)batista / Anglicano
  • Metodista
  • Católico
  • Verde
  • Encarnacional
  • Deprimido, mas esperançoso
  • Emergente
  • Inacabado[1]

Em outras palavras, ele é tudo e nada ao mesmo tempo. O autor empresta um pouco de cada perspectiva teológica, conforme lhe interessa, adaptando esses conceitos à sua própria percepção. O problema é que existem elementos altamente incoerentes na interação entre essas teologias ou conceitos. No entanto, sob a perspectiva de uma pluralidade de verdades, esse não seria um problema real.

A meu ver, essa característica da colagem é fruto do desconstrucionismo proposto por Jacques Derrida.

3. Supervalorização dos pressupostos. Tendo em vista que não é possível fazer uma pesquisa, análise ou leitura de uma realidade ou conceito de forma totalmente neutra ou isenta de preconceitos e/ou pressupostos, cada pessoa analisa o que está à sua volta de acordo com o que pensa/crê, o que torna válidas, em certa medida, todas as conclusões a que pessoas distintas chegam.

Assim, toda a bagagem religiosa, socioeconômica, política e sexual que faz parte da história e da construção de quem o indivíduo ou grupo é precisa ser levada em conta quando esse indivíduo ou grupo interage com o mundo à sua volta.

O problema ocorre quando esses pressupostos são supervalorizados, tornando-se não apenas válidos, mas fundamentais para a percepção e produção do sentido de determinada realidade ou conceito — e isso é especialmente complicado quando se trata da interação com um texto religioso como a Bíblia.

Surge dessa forma a chamada leitura sincrônica da Bíblia, que é a interpretação baseada na compreensão do texto a partir da interação deste com seu leitor, no exato momento em que o leitor lê o texto e é “lido” por ele. Trata-se de uma interpretação preocupada apenas em entender o texto a partir da interação deste com o leitor e vice-versa.

Essa proposta surge com Ferdinand de Saussure (1857-1913), linguista suíço, e alcança sua forma mais elaborada em Gadamer.[2]

4. Defesa do inclusivismo. Segundo essa concepção, admite-se a convivência amigável entre visões diferentes e opostas, visto que devem coexistir justamente por partilharem de um mesmo ambiente ou contexto. Esse é um desdobramento da relativização da verdade e, portanto, do pluralismo hermenêutico.

Um exemplo pode ser visto nas novas traduções bíblicas que têm surgido nas duas últimas décadas. Algumas delas retraduzem conceitos e termos ligados ao gênero masculino a fim de tornarem essas versões mais amplas em sua representação. Expressões que retratam Deus como Pai são substituídas para Pai/Mãe. Jesus como o filho de Deus é retraduzido para ‘a criança de Deus’, com vista a demonstrar certa neutralidade na contemplação de ambos os gêneros, masculino e feminino.[3]

Em termos teológicos, possivelmente uma das maiores tendências inclusivistas é o chamado universalismo ou inclusivismo soteriológico. Em entrevista à revista Veja, Rob Bell, pastor e teólogo norte-americano, disse:

Para mim, é incompreensível um cristão que não considera a salvação universal como a melhor saída, a melhor história. Para mim, acreditar nisso é um dever de qualquer pessoa boa, decente, com um coração no peito. […] Se estamos levando a sério a mensagem de Jesus sobre o amor de Deus por todos nós, a salvação universal deve ser o ponto de partida. […] O Deus sobre o qual Jesus falou não seria capaz de ferir alguém.[4]

5. Desconexão com o transcendente. Tendo em vista o processo histórico de rejeição ao sobrenatural e transcendente, a história e a realidade têm sido interpretadas exclusivamente pela ótica natural e material. A esse processo chamo de dessobrenaturalização, tanto da história e da realidade quanto dos textos sagrados. Em outras palavras, nesse processo a Bíblia não passa de uma literatura qualquer, que em nada difere das demais, exceto pelo fato de tratar de questões religiosas.

Por essa causa, conceitos bíblicos ortodoxos e intimamente ligados ao espiritual são retraduzidos, a fim de se acomodarem às novas demandas da sociedade e à espiritualidade pós-moderna. É o caso, por exemplo, da conceituação que McLaren dá à palavra bíblica salvação. Para ele, na redefinição da palavra salvação, ela não estaria ligada apenas ao sacrifício de Cristo em nosso lugar para o perdão de nossos pecados. Ele questiona o fato de esse termo ser quase exclusivamente relacionado com a salvação do inferno ou com a vida eterna após a morte, quando na verdade ele pode ter outros sentidos, como “resgatar, curar, tirar do problema”.

Sugerindo novas definições, o autor propõe que a palavra “salvar” pode ser usada em referência a qualquer problema que ela abarque: doença, perseguição, guerras, pobreza, algum mal ou perigo.[5]

A influência de Hans-Georg Gadamer

Hans-Georg Gadamer foi um filósofo alemão (1900-2002) que tem sido considerado um dos nomes mais proeminentes da hermenêutica filosófica do século 20. Sua principal obra, Verdade e método, comporta a essência de seu pensamento, que veio a ser chamado de hermenêutica dialética.

Para Gadamer, os métodos hermenêuticos são sempre determinados pela época em que existem, sendo produto de períodos específicos da História. Por isso, a hermenêutica deveria buscar entender o que possibilita o conhecimento, já que a verdade é sempre relativa e subjetiva. Assim, a hermenêutica estaria intimamente ligada à epistemologia.

Estas são algumas de suas ideias:[6]

1. Pressupostos

  • Não podemos nos livrar de nossos pressupostos por meio do uso de métodos, pois a objetividade não consegue se sobressair diante das variantes históricas e da subjetividade.
  • As pressuposições são a chave para a compreensão de qualquer texto.
  • O entendimento é dependente das circunstâncias históricas, dos interesses e pressupostos do intérprete.
  • Os pressupostos vêm do leitor, e não do texto, cujo sentido é sempre indeterminado.

2. Intenção autoral

  • O texto separado do seu autor possui existência própria.
  • O sentido de um texto é encontrado através do diálogo com o texto presente. Por isso, a intenção do autor não é decisiva nem necessária.
  • O sentido de um texto sempre vai além daquele pretendido por seu autor, já que a compreensão de um texto não consiste em reproduzir o sentido do autor, mas em produzir um novo sentido.

3. Fusão de horizontes

  • “Horizontes” são os mundos vivos do texto e do intérprete, que se fundem no processo de leitura para produzir uma terceira e nova situação. Dessa fusão vem o entendimento.[7]
  • A hermenêutica de Gadamer move-se do autor e do texto para uma união entre o texto e o leitor, com raízes no presente, e não no passado.

A influência de Gadamer fez-se sentir no surgimento da chamada reader response (resposta do leitor), que enfatiza a relação recíproca entre o leitor e o texto, negando, assim, a autonomia do texto ou o prevalecimento do propósito autoral. Há diversas variações dessa proposta, mas todas leem o texto a partir de uma ótica ideológica ou política. Por esse motivo, os leitores bíblicos que utilizam essa abordagem hermenêutica são chamados de “leitores ideológicos”.

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Comentando esse viés ideológico da hermenêutica contextual, Carson conclui que “as abordagens hermenêuticas mais elogiadas hoje em dia não habilitam qualquer pessoa a ouvir uma palavra segura da parte de Deus: na verdade, elas se opõem assertivamente a essa eventualidade. Estão intimamente aliadas a compromissos ideológicos nos quais o único absoluto é a linguagem em si. Apesar das muitas coisas que temos de aprender com esses desenvolvimentos hermenêuticos, não devemos adorar em seu santuário”.[8] Não se pode deixar de ressaltar que esse método hermenêutico é um desdobramento sociocultural-contextual-racial-sexista da hermenêutica filosófica proposta por Gadamer.

As vertentes principais da reader response são:

  • Teologia da libertação e a leitura bíblica sob a ótica do pobre.
  • Hermenêutica feminista.
  • Teologia negra ou afrodescendente ou afro-brasileira.
  • Teologia asiática e indígena.
  • Hermenêutica homoafetiva.
  • Hermenêutica pós-colonialista.

Essas vertentes são chamadas de teologias ou hermenêuticas contextuais, pois enfatizam o contexto social, cultural e econômico no qual o evangelho, em suas doutrinas teológicas gerais e específicas, é aplicado na prática. Segundo Kurian,

a teologia contextual sustenta que, na Encarnação, Deus contextualizou o evangelho para a raça humana e que esse processo precisa ser desenvolvido diante das várias divisões geográficas, raciais e de gênero do humano, sem destruir a universalidade da mensagem de Cristo. Teólogos da libertação usaram a contextualização extensivamente, argumentando que, uma vez que a Escritura é cultural e historicamente condicionada, sua mensagem é relativa e situacional. E mais, eles sustentam que contextualização é um meio de alinhar verdade e prática, pensamento e ação, e que toda teologia autêntica deve ser participativa.[9]

Na concepção de João Batista Libânio, um de seus proponentes:

toda teologia é contextual, por ser palavra humana situada em determinado tempo e lugar. A teologia bíblico-cristã é ainda por outro título contextual ao fazer do mundo, assumido definitivamente no mistério da Encarnação, matéria interna do próprio pensar a fé. Nem sempre a teologia atendeu à sua natureza contextual, pensando-se como abstrata e universalmente. […] Até a modernidade, as perguntas que dela se levantavam vinham antes da relação entre suas verdades num esforço de “analogia fidei” do que do contexto sociopolítico cultural. O contexto começa a preocupar a teologia quando se lhe tornou fonte de questionamentos. Surgem questões que a razão científica, a razão histórica, a razão iluminista, as experiências significativas das pessoas levantam a uma teologia baseada fundamentalmente na “tradição”, nas “auctoritates”. O contexto da modernidade torna-se fonte contínua de perguntas que a teologia moderna intenta responder. Perguntas de fora do ambiente da fé, mas feitas à fé.[10]

Assim, a teologia contextual, mais preocupada com a práxis do que com os fundamentos escriturísticos da verdade, acaba por impor uma agenda ideológica ao texto bíblico, fazendo com que esse texto atenda mais aos interesses do leitor/intérprete do que aos interesses do Deus que revelou tais verdades.

Paul Ricouer e a hermenêutica da suspeita

Paul Ricouer (1913-2005), filósofo francês protestante, afirmou que os textos da religião usam uma máscara para ocultar outros interesses não declarados, embora impregnados no texto. Advogando um “divórcio” entre o texto e seu autor, ele afirmava que se deve suspeitar desses escritos, para descobrirmos a realidade por detrás deles e, assim, compreendermos seu verdadeiro propósito.

Ricouer levou a teoria de Gadamer um passo adiante, argumentando que a interpretação é simbólica ou metafórica em seu núcleo e ocorre mais em frente ao texto (como está endereçado ao destinatário) que por detrás desse texto (na reconstrução do sentido histórico). Por isso,

um novo mundo é criado pelo texto quando este se engaja ao leitor. Tanto para Gadamer quanto para Ricouer, o problema do “distanciamento” (distância entre o texto originalmente escrito e atualmente lido) demanda uma “hermenêutica de suspeita”, que conta com as ambiguidades da linguagem e as capacidades da mente humana de autoengano. Com isso, a ênfase hermenêutica deslocou-se de uma apropriação do sentido “intencionado” do autor para uma interação presente com o texto, agora visto como autônomo do significado pretendido pelo autor.[11]

__________________

[1] Brian McLaren, Uma ortodoxia generosa (Brasília: A Palavra, 2007), Sumário.

[2] A abordagem oposta à sincrônica é a diacrônica, que é a compreensão do sentido de um texto desde sua origem até os dias de hoje. Isso não significa que no decorrer da história tal texto tenha adquirido novos sentidos, mas que, tendo em vista seu sentido original, ele foi aplicado de forma distinta em momentos posteriores à sua escrita.

[3] Estes são alguns exemplos dessas versões: The Inclusive New Testament (1994), The New Testament and Psalms: An Inclusive Version (1995), The Holy Bible: New International Version. Inclusive Language Edition (NIVI — 1996) e The Bible in a More Just Language (2006 — versão em alemão).

[4] Entrevista “Rob Bell — Quem falou em céu e inferno?”, Revista Veja, n. 2297, 28 nov. 2012, disponível em: http://veja.abril.com.br/acervodigital/home.aspx?cod=JNHOCRENOOO, acesso em: 10 mar. 2014.

[5] Brian McLaren, Uma ortodoxia generosa (Brasília: A Palavra, 2007), p. 101ss.

[6] Os três tópicos a seguir foram baseados em: Augustus Nicodemus Lopes, A Bíblia e seus intérpretes: uma breve história da interpretação (São Paulo: Cultura Cristã, 2004).

[7] “Gadamer argumentou que o ato de chegar-ao-entendimento não destrava o significado passado de um texto, mas estabelece uma dialética entre leitor e texto. Naquilo que Gadamer chama de ‘fusão de horizontes’, o leitor entra no processo histórico da tradição e une-se com o mundo-de-pensamentos do texto. O texto, tendo sido desanexado do autor, é aberto para novos relacionamentos. O leitor não está recriando a situação passada do autor ‘por raciocinar de volta ao passado’, mas está entrando em um relacionamento com o texto no qual ambos, texto e leitor, interrogam um ao outro.” (G. F. Hawthorne; R. P. Martin; D. G. Reid, orgs., Dictionary of Paul and his letters [Downers Grove: InterVarsity, 1993]) [edição em português: Dicionário de Paulo e suas cartas, 2. ed. (São Paulo: Vida Nova/Paulus/Loyola, 2008)].

[8] D. A. Carson, “Hermeneutics: a brief assessment of some recent trends”, Themelios 5, n. 2, January (1980): 12.

[9] George Thomas Kurian, Nelsons new Christian dictionary: the authoritative resource on the Christian world (Nashville: Thomas Nelson, 2001).

[10] João Batista Libânio, Teologia da libertação, disponível em: http://www.jblibanio.com.br/modules/smartsection/item.php?itemid=71, acesso em: 3 set. 2013. João Batista Libânio, falecido em 2014, era um padre jesuíta, tido como uma das vozes mais ativas em prol da Teologia da Libertação e da Teologia Contextual.

[11] G. F. Hawthorne; R. P. Martin; D. G. Reid, orgs., Dictionary of Paul and his letters (Downers Grove: InterVarsity, 1993).

Trecho extraído da obra “Hermenêutica“, de Hélder Cardin, publicada por Vida Nova: São Paulo, 2017, pp. 48-54. Publicado com permissão.
Hélder Cardin é mestre em Teologia, reitor do Seminário Bíblico Palavra da Vida e coordenador do Departamento de Educação Cristã, onde também é professor e orientador. É pastor auxiliar na Igreja Evangélica Batista Nova Aliança em Ribeirão Preto e presbítero na Igreja Evangélica em Maracanã, SP.
A hermenêutica bíblica concentra-se nos vários princípios que devem permanecer firmes na mente do leitor e diante de seus olhos no momento em que estuda as Escrituras. Uma correta hermenêutica nos auxiliará a examinar o texto bíblico, buscando compreendê-lo e aplicá-lo de forma correta e adequada à vida cristã, seja em que âmbito for.

Este volume do Curso Vida Nova de Teologia Básica, Hermenêutica, fornece respostas a perguntas como estas:

- Como a Bíblia foi interpretada desde os primeiros séculos da era cristã até os dias de hoje?
- Quais são os primeiros conceitos e fundamentos que devem nortear todo o processo interpretativo das Escrituras Sagradas?
- Quais são os princípios gerais da hermenêutica que servem de base para o trabalho com os textos?
- Quais são os desafios da aplicação prática das Escrituras?

Publicado por Vida Nova.

3 Comments

  1. Dimas disse:

    Excelente artigo. Parabéns.

  2. Jesse SALVINO CARDOSO disse:

    O artigo iluminou o uso da hermeneutica na filosofia, e ao mesmo tempo abriu o perigo do uso pernicioso do contexto em teologia, obrigado pastor Hélder Cardin por isso, e por essa visão.
    Continue escrevendo artigos dessa linha, para novos esclarecimentos e leituras possíveis

  3. Jesse SALVINO CARDOSO disse:

    A leitura do artigo proposto me levou a refletir sobre o assunto que exige um pouco mais da minha formação e leitura de Bíblia, porém com certo cuidado.

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