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Blaise Pascal (1623-1662)

No livro X das Confissões, Agostinho confrontou o pensamento de Anaxímenes, contemporâneo de Tales de Mileto, negando que a própria natureza seja o princípio causador de todas as coisas. Em suas palavras,

Interroguei a mole do universo acerca do meu Deus e ela respondeu-me: “Não sou eu, mas foi ele mesmo que me fez”. Interroguei a terra e ela disse: “Não sou eu”; e todas as coisas que nela existem responderam-me o mesmo. Interroguei o mar, e os abismos, e os seres vivos que rastejam, e eles responderam-me: “Não somos o teu Deus; procura acima de nós”. Interroguei as brisas que sopram, e o ar todo com seus habitantes disse-me: “Anaxímenes está enganado; eu não sou Deus”. Interroguei o céu, o sol, a lua, as estrelas, e dizem-me: “Nós também não somos o Deus que tu procuras”. E disse a todas as coisas que rodeiam as portas da minha carne: “Falai-me do meu Deus, já que não sois vós, dizei-me alguma coisa a seu respeito”. E elas exclamaram, com voz forte: “Foi Ele que nos fez”. Contemplá-las era a minha pergunta e a resposta delas era a sua beleza (Confissões, X.6,9).[1]

Ou seja, a natureza não é capaz de nos dizer quem Deus é. Essa incapacidade se deve à circunstância de que a natureza é apenas um vestígio do ato criador de Deus. Assim como as pegadas de uma pessoa não revelam quem a pessoa é, mas apenas que uma pessoa deixou sua pegada, a criação também não revela suficientemente quem Deus é, mas apenas que há Deus e que a beleza é sua marca indelével. Assim, para que Deus seja conhecido suficientemente bem, é necessário que haja outra revelação diferente da revelação natural. A revelação que falta é aquela que os teólogos chamam de revelação especial, isto é, a revelação de Deus através de Jesus, o Cristo. A propósito, Alister McGrath, professor de teologia histórica na Universidade de Oxford, sugere que há duas declarações do Novo Testamento que não podemos perder de vista. Uma delas é a declaração de que Cristo é “o resplendor da glória de Deus e a expressão exata de seu ser” (Hb 1.3); a outra é a declaração de que Cristo é “a imagem do Deus invisível” (Cl 1.15). Com essas duas passagens, McGrath quer evidenciar o caráter pessoal da revelação de Deus, contrastando, assim, a pessoalidade de Cristo com a impessoalidade da criação. Ou seja, Cristo, uma pessoa de carne e osso, é a máxima revelação de quem Deus é. Ele não é um vestígio; ele é a própria imagem de Deus.[2] Nas palavras de Lutero,

Deus não quer ser conhecido a não ser por intermédio de Cristo; nem pode ele ser conhecido de qualquer outro modo. Cristo é o descendente prometido a Abraão; nele, Deus cumpriu todas as suas promessas. Portanto, somente Cristo é o meio, a vida e o espelho pelo qual vemos Deus e conhecemos sua vontade. Por meio de Cristo, Deus declara seu favor e misericórdia para conosco. Em Cristo, vemos que Deus não é um mestre e um juiz irado, mas, sim, um pai gracioso e bondoso, que nos abençoa, isto é, que nos salva da lei, do pecado, da morte, e de todo o mal, e nos oferece a justiça e a vida eterna mediante Cristo. Este é um conhecimento certo e verdadeiro de Deus; uma persuasão divina que não falha, mas retrata Deus mesmo numa forma específica, à parte da qual não há nenhum Deus.[3]

O conhecimento natural de Deus carece, portanto, da graça: sem a graça, o conhecimento que temos de Deus jamais será aperfeiçoado; sem a graça, o conhecimento natural de Deus produz falsos deuses. Por exemplo, a partir da contemplação da natureza, Aristóteles chegou ao conhecimento de Deus como causa do universo, porém diante do Deus de Aristóteles ninguém se prostra em temor e tremor. Quando diante do Deus de Aristóteles, não estamos diante do supremo Criador, mas apenas diante de um motor, o “Primeiro Motor Imóvel”: a “Causa Primeira” dos seres, que move todas as coisas, mas não é movido por nada (Metafisica, Λ 8, 1073a24).[4] A propósito, “Causa Primeira” é o que Martin Heidegger chama de “o nome adequado para Deus na filosofia”. No entanto, como argumenta o filósofo alemão, “A este Deus não pode o homem nem orar, nem sacrificar. Diante da Causa Primeira, o homem não pode nem cair de joelhos por temor, nem pode, diante deste Deus, tocar música e dançar”.[5] Você jamais encontrará um filósofo, em sã consciência, de joelhos, com as mãos juntas e os olhos marejados, orando assim: “Primeiro Motor Imóvel que estás nos céus, santificado seja o vosso nome…”. Como certa vez disse o então cardeal Joseph Ratzinger,

a “teologia natural” não tem religião, mas somente divindade. Certamente não pode existir nenhuma religião, porque ao seu deus (fogo, números, átomos) não pode ser dirigida a palavra em termos religiosos. Assim, a religio — termo que designa essencialmente o culto — e a realidade, o conhecimento racional do real, configuram-se como duas esferas separadas, uma ao lado da outra. […] Somente o verdadeiro Deus que, através do pensamento, podemos reconhecer na natureza é objeto de oração. Porém, é mais do que a natureza: precede-a, pois a natureza é a sua criatura. A esta separação entre natureza e Deus, acrescenta-se uma segunda descoberta, ainda mais decisiva: tínhamos constatado que o deus, a natureza, a alma do mundo ou qualquer outra coisa não podia receber nossas orações; não era um “deus religioso”.[6]

Eis o máximo que o homem pode conhecer a partir da natureza: Deus como Causa Primeira. Mas isso é verdadeiro? É suficiente? O Criador é, de fato, um Primeiro Motor Imóvel? Considero bastante engenhoso o argumento kalam,[7] principalmente quando ele é apresentado e defendido por William L. Craig. O argumento foi pela primeira vez elaborado por um filósofo muçulmano do século 12, chamado Al-Ghazali.[8] O argumento é razoavelmente simples de entender. Vejamos.

Tudo o que começa a existir tem uma causa.

O universo começou a existir.

Logo, o universo tem uma causa.

O argumento é, de fato, excelente, mas, se não lermos João 1.1-14 e Colossenses 1.15-20, como saberemos que a “causa” do universo é Jesus Cristo? É incrível como o argumento kalam é eficiente para mostrar que a crença na existência de uma Causa Primeira é plausível. Mas como sei que esta causa é Jesus Cristo? Por isso, Blaise Pascal — diga-se de passagem, um jansenista — negava que o Deus dos filósofos e sábios fosse o Deus de Abraão, Isaque e Jacó. Para quem não sabe como Pascal chegou a essa convicção, a história é a seguinte: na segunda-feira, 23 de novembro de 1654, entre dez e meia e meia-noite e meia, Pascal teve uma experiência inesquecível com o Deus da Bíblia. A experiência foi tão marcante a ponto de ele escrever um memorial que iniciava com as seguintes palavras: “Deus de Abraão, Deus de Isaque, Deus de Jacó, não dos filósofos e dos sábios”. O curioso é que esse memorial foi descoberto apenas poucos dias após a sua morte. Segundo as anotações do pe. Guerrier, escritas em 1732,

Poucos dias após a morte do sr. Pascal, um serviçal da casa notou, por mero acaso, que no forro do casaco do defunto havia algo que parecia mais espesso do que o resto e, tendo descosturado essa parte para ver o que era, encontrou um pequeno manuscrito dobrado e escrito do próprio punho do sr. Pascal e, nesse manuscrito, um papel escrito do mesmo punho: um era a cópia fiel do outro. Essas peças foram logo levadas às mãos da sra. Pérrier, que as mostrou a vários de seus amigos particulares. Todos convieram que não se podia duvidar de que esse manuscrito, escrito com tanto cuidado e com caracteres tão notáveis, fosse uma espécie de memorial que ele guardava muito cuidadosamente para conservar a lembrança de uma coisa que queria ter sempre presente, diante dos olhos e na mente, pois que há oito anos vinha tomando o cuidado de costurá-lo e descosturá-lo à medida que trocava de casaco.[9]

Assim, nessa anotação tão íntima, escrita tão somente para si mesmo, Pascal expressou sua recusa do Deus dos filósofos. Para ele, o conhecimento de Deus independente de Jesus Cristo é inútil, e, dependendo do contexto, pode ser até prejudicial, uma vez que favorece apenas a vaidade e a soberba. Em suas palavras, “É não somente impossível, mas também inútil conhecer a Deus sem Jesus Cristo. […] O conhecimento de Deus sem o da própria miséria faz o orgulho; o conhecimento da própria miséria sem o de Deus faz o desespero; o conhecimento de Jesus Cristo faz o meio-termo porque aí encontramos tanto Deus como a nossa miséria”.[10] Pascal reconhece que o conhecimento natural de Deus é claro, porém está certo de que é um conhecimento insuficiente. Nunca saberemos que “o Deus que se revela na natureza” é Jesus Cristo, o Senhor do universo, o Criador dos céus e da terra, a não ser lendo as Escrituras. Portanto, todo projeto de teologia natural, isto é, toda proposta de um conhecimento natural de Deus que seja independente da revelação em Cristo, jamais alcançará um conhecimento verdadeiro e suficiente de Deus. Ao recusar o Deus dos filósofos, Pascal não está recusando o conhecimento natural de Deus, mas, na verdade, toda e qualquer tentativa de chegar ao conhecimento verdadeiro e suficiente de Deus independentemente da revelação especial.

Leia também  Mythopoeia e teodiceia: o problema do mal em 'O Silmarillion' | Pedro Marchi

________________

[1] Agostinho de Hipona, Confissões (Lisboa: INCM, 2004), p. 449.

[2] Alister McGrath, Paixão pela verdade (São Paulo: Shedd, 2007), p. 32.

[3] Martin Luthers Werke: Kritische Gesamtausgabe (Weimar, Böhlau, 1911), vol. 40, 602.18-603.13, 607.19-609.14, citado em Alister McGrath, Paixão pela verdade, p. 33.

[4] Aristóteles, Metafisica (São Paulo: Loyola, 2002), vol. II, p. 569.

[5] Martin Heidegger, Que e isto, a filosofia? Identidade e diferença (Petrópolis: Vozes, 2006), p. 75.

[6] Joseph Ratzinger, “Cristianismo: a vitória da inteligência no mundo das religiões”, in: Ser cristão na era pagã (Campinas: Ecclesia, 2015), vol. II, p. 16, 19.

[7] Palavra árabe que significa “palavra” ou “discurso”.

[8] William L. Craig, Em guarda: defenda a fé cristã com razão e precisão (São Paulo: Vida Nova, 2011), p. 80-113; Norman Geisler, Enciclopédia de apologética: respostas aos críticos da fé cristã (São Paulo: Vida, 1999), p. 469-72.

[9] Cf. Blaise Pascal, Pensamentos (São Paulo: Martins Fontes, 2005), p. 360-70.

[10] Ibidem, p. 76.

Trecho extraído da obra “Inteligência Humilhada“, de Jonas Madureira, publicada por Vida Nova: São Paulo, 2017, pp. 86-91. Publicado com permissão.

Jonas Madureira é bacharel em teologia pelo Betel Brasileiro e pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, bacharel e mestre em filosofia pela PUC-SP e doutor em filosofia pela USP e Universidade de Colônia (Alemanha). É editor-chefe de Edições Vida Nova, professor de Teologia Sistemática, Filosofia e Hermenêutica no Seminário Martin Bucer e autor dos livros "Inteligência humilhada" e "Filosofia", volume do Curso Vida Nova de Teologia Básica. É também pastor na Igreja Batista da Palavra, em São Paulo.
Inteligência humilhada é fruto de uma cuidadosa reflexão sobre como se relacionam o conhecimento de Deus e os limites da razão humana. Além disso, é o resgate de uma tradição do pensamento cristão que sempre se recusou a reduzir o debate entre fé e razão nos termos do racionalismo ou do fideísmo. A finalidade do conceito de “inteligência humilhada” é despertar o interesse por uma razão que ora e uma fé que pensa.

Seguindo o conselho de João de Salisbúria, Jonas Madureira subiu nos ombros de cinco gigantes da tradição cristã: Agostinho de Hipona, Anselmo da Cantuária, João Calvino, Blaise Pascal e Herman Dooyeweerd. Todos eles serviram de ponto de partida e fundamentação do conceito. Ao longo deste livro, essas cinco vozes, sobretudo a de Agostinho, são ouvidas nos mais diversos assuntos: teologia propriamente dita, revelação natural, problema do mal, gramática da antropologia bíblica, formação de um teólogo entre outros.

Publicado por Vida Nova.

2 Comments

  1. Jose Luiz Pereira disse:

    Sim Cristo é a salvação , indubitavelmente , mas a teologia natural , essa tem poder acusatório , Paulo chama de indesculpáveis , os que não tiveram uma percepção natural de Deus via natureza , seria temerário um anti-intelectualismo de Deus a posteriori , sabemos hoje por que fomos contemplados por Deus em nascer numa época em que a revelação escrita já estava pronta . Mas os que tiveram azar de nascer antes de Moisés e os apóstolos , ou antes de Jesus que é a palavra , ainda que insuficiente como foi dito , um minimo vislumbre ontológico de Deus , já não seria grande demais , a teologia natural tira o homem da loucura descrita nos salmos , e se ele afirma há Deus , não seria um grande progresso onde a revelação escrita não chegou . Tenho temor em afirmar tal ineficácia da teologia natural , pois os céus declaram a glória de Deus , e ademais , “Porquanto o que de Deus se pode conhecer neles se manifesta, porque Deus lho manifestou.Porque as suas coisas invisíveis, desde a criação do mundo, tanto o seu eterno poder, como a sua divindade, se entendem, e claramente se vêem pelas coisas que estão criadas, para que eles fiquem inescusáveis; Porquanto, tendo conhecido a Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças, antes em seus discursos se desvaneceram, e o seu coração insensato se obscureceu.Romanos 1:19-21” . Não seria num primeiro momento o conhecimento natural , ou teologia natural , um caminho para a teologia escriturística , essa que revela o Cristo e o próprio Deus com todos os seus atritutos,

  2. Fernando Martinez disse:

    Texto excelente! Até mesmo o AT tem limitações com relação ao conhecimento pleno do nosso Senhor Jesus Cristo, que dirá a revelação natural.

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