A iPhonização da nossa cosmovisão e de nossas liturgias: a visão de tecnologia de James K. A. Smith | Luiz Adriano Borges

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Um dos pontos principais na elaboração da visão de liturgias culturais de James K. A. Smith é a tecnologia. Sua visão desse elemento é riquíssima. Em seu capítulo 3 de “Imaginando o reino”, em que trata da importância da narrativa para a formação de imaginários, ele discute acerca da maneira como “a tecnologia permite rituais de interação e nos convida a praticá-los” (p. 168).

Antes de mais nada, devemos lembrar o que Smith afirma ao longo de toda a sua trilogia, no sentido de que boa parte do que fazemos não é fruto de intenção consciente, “mas sim resultado de uma disposição habitual adquirida”. O hábito é extremamente importante, e muitas vezes somos moldados sem perceber por práticas culturais que consideramos inofensivas. Há muitos “evangelhos” concorrentes no mundo, mas nem todos nos conduzem ao reino de Deus.

Smith é taxativo:

“graças a um vasto repertório de liturgias seculares, somos silenciosamente assimilados à cidade terrena de amores desordenados, governada pelo amor próprio pela busca de dominação. Desse modo, caminhamos a passos trôpegos para a igreja ou para o estudo bíblico e nos tranquilizamos dizendo a nós mesmos que nos dedicamos ‘ao templo do Senhor, templo do Senhor, templo do Senhor’ (Jr 7.4), sem nos darmos conta de que passamos o resto da semana fazendo pão para ídolos (Jr 7.18)” (p. 167).

Não percebemos o quanto as liturgias diárias são disciplinas pedagógicas, formadoras. Assim, devemos atentar para o fato de que “toda tecnologia corresponde a um modo de prática corporal”. Essa afirmação é central na visão de tecnologia de James Smith e precisamos nos debruçar sobre ela.

Nesse segundo volume de sua trilogia, Smith vai se utilizar bastante de conceitos de dois autores principais, quais sejam, Pierre Bourdieu (a questão de habitus) e Maurice Merleau-Ponty (fenomenologia do corpo). Para Smith, a tecnologia permite rituais de interação (corpo) e nos convida a praticá-los (habitus). Quando me utilizo de um smartphone exerço um comportamento físico específico: toco no touchscreen, me posiciono de certa maneira etc. Esses “modos” de usar são o que Smith denomina de “micropráticas” que acabam por ter macroefeitos: para o autor “são formações disciplinares que passam a reconfigurar nossa relação com o mundo mais amplo – na verdade, elas passam a fazer o mundo” (p. 168).

E ele continua, numa pegada bem heideggeriana:

“Os rituais materiais de simplesmente manusear um iPhone e de dominá-lo estão carregados de um imaginário social implícito. Habituar-se a um iPhone consiste em tratar implicitamente o mundo como algo ‘disponível’ para mim e ao meu dispor – e constituir o mundo como ‘disponível’ para mim, é permitir que seja selecionado, classificado, escaneado, explorado e desfrutado” (p. 168-169).

A forma como usamos o celular acaba formatando a maneira como nos relacionamos com o mundo. Pessoas, relacionamentos e objetos estão disponíveis a todo momento. Então não importa muito o conteúdo trazido pelos celulares, uma vez que nossa interação com os aparelhos já constituem uma pedagogia sutil, um microtreinamento. Então, se queremos compreender o que a tecnologia faz conosco, devemos ir além de simplesmente analisar redes sociais e desligar as notificações, porque o próprio meio tecnológico, os celulares, é muito mais formador de hábitos do que o próprio conteúdo deles. O meio é a própria mensagem, uma mensagem formadora de hábitos. Grandes companhias como Google, Apple, Facebook e Amazon, ganham com o tempo que você gasta em seus aplicativos, então eles procuram transformar os usuários(!) em grandes adoradores na igreja cibernética. E como eles fazem isso? Nos transformando em seres que se relacionam através das telas. Eles sabem que somos seres litúrgicos que precisam de narrativas para viver; a despeito dos pós-modernistas, eles sabem da importância das grandes narrativas e, portanto, tratam de construir cada vez mais gadgets para nos prender às telas de nossos smartphones: desde calculadora, agenda, bússola até controle inteligente de nossa casa. Com esses dispositivos, as grandes companhias tecnológicas objetivam formar uma cosmovisão em que a tecnologia ocupe o centro e que você não se desconecte nunca. Os smartwatches estão aí para monitorar e nos dizer se tivemos uma boa noite de sono.

É a tudo isso que James Smith denomina de uma relação iphonizada com o mundo. E devemos estar atentos, porque essa busca por inculcar em nós uma certa cosmovisão aponta para a não neutralidade de nossos aparatos tecnológicos. Não adianta você compartilhar no Facebook que não permite que seus dados sejam roubados e utilizados, porque eles seriam de propriedade sua; no momento em que você adentrou naquela rede, você concordou com os padrões daquela comunidade (esqueceu de ler os termos e condições?). Acabamos esquecendo que nada é neutro no universo. Como diz C. S. Lewis: “Não existe um ponto neutro no universo: cada centímetro quadrado, cada fração de segundo, é reivindicado por Deus e contestado por Satanás.” (“Reflexões Cristãs”, p. 71).

Os produtos culturais que estão à nossa volta são impregnados das intenções de seus criadores, que trazem uma definição específica do que é uma boa vida. Devemos questionar se a visão dos grandes CEOs para o que é uma boa vida é a nossa também. Não é jogar fora e destruir a tecnologia, mas é usá-la criticamente. Muitas vezes nossas tecnologias têm um papel deformador daquilo que mais prezamos.

Veja por exemplo a utilização de redes sociais como o Instagram e o Facebook: elas forçam hábitos de autoexibição que se parece com o vício da vanglória. Mas toda rede social parece enaltecer um pecado em específico.

Assim, o espaço do lar é invadido pelas mídias sociais; levamos os celulares em toda parte, no banheiro, na cozinha, na sala, na mesa de jantar. Dizemos que não conseguimos ler por falta de concentração, mas, quando alguém nos interpela quando estamos no celular, nem percebemos, tamanho o foco. É doentio. Gastamos horas diariamente nas redes, mas lemos muito pouco. Durante as refeições o celular é companhia constante e, ao invés de conversa e comunhão, cada um está em seu mundo iphonizado. Mais até do que o perigo da Inteligência Artificial, deveríamos temer a tecnologia que já está em nossos bolsos e que está roubando nossas almas.

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Smith diz que o universo das mídias sociais é um pan-ótico generalizado. Ninguém mais escapa da exposição numa era em busca por autenticidade (Charles Taylor). Ficamos a todo momento querendo compartilhar o que estamos vivendo, em busca do melhor ângulo e de demonstrar o quanto somos felizes e realizados. Mas o que antes era relegado aos mais próximos, expomos ao mundo. E a disputa por aceitação e firmação nunca termina, o que causa ansiedade e depressão.

Assim, devemos estar cientes de que

“a própria natureza das mídias sociais incentiva determinada ontologia social; ela vem com a base de um imaginário social, e habitar o mundo do Facebook é jogar de acordo com suas regras” (…) E à medida que habitamos esses mundos virtuais – em que clicamos nosso caminho percorrendo os ambientes, atualizando constantemente nosso ‘status’, sempre checando o que outros estão fazendo, obcecados como nosso feed, documentando as curtidas que ganhamos para que outros as vejam – somos paulatinamente e de modo velado incorporados a um corpo como entidade coletiva com uma própria visão do florescer humano: conexões rasas em troca de autogratificações instantâneas e autocongratulações. E tudo isso acontece justamente porque não pensamos sobre o assunto. (p. 174).

Brutal! Precisamos falar sobre isso em nossas igrejas, em nossas casas, refletir e mudar, porque o estrago já vem sendo produzido. É só olharmos para as taxas de depressão e infelicidade relacionadas ao tempo de uso de telas (veja Jean M. Twenge,  “iGen”) e a maneira como nossas mentes estão ficando mais superficiais (ver Nicholas Carr, “A geração superficial”). Se não refletirmos no assunto, as próximas gerações sofrerão enormemente; até mesmo as liturgias eclesiásticas já têm sido afetadas pelas tecnologias, com pregações cada vez mais no formato “TED-talks” ou até mesmo somente cultos online. Não estou falando somente no contexto de pandemia, que é algo excepcional, mas sim de pessoas que não mais frequentam cultos por causa de sua liturgia retrógrada.

Precisamos colocar a tecnologia em seu devido lugar. Como o filósofo Albert Borgmann diz, devemos dar mais ênfase a uma “cultura da palavra e a cultura da mesa”. Com isso ele quer recuperar as práticas de conversação, de leitura e do cozinhar (e podemos dizer também a da liturgia cristã) como remédio para os mal-estares da hipermodernidade. As pessoas não irão deixar o paradigma do dispositivo, a transformação de tudo em um produto pronto a ser consumido, se não encontrarem um paradigma melhor. Assim, o filósofo aponta alguns elementos do cristianismo para se pensar a natureza humana numa cultura tecnológica; não de abandono da tecnologia, mas do rompimento do paradigma do dispositivo para um modo comunitário e benevolente de uso da tecnologia, passando pela prática de atividades focais. Agindo assim, segundo ele, estaremos retirando o foco da tecnologia, mudando o enquadramento com que enxergamos a realidade. (Luiz Adriano Borges, Albert Borgman, IN: Jelson Oliveira (org.) Filosofia da tecnologia).

O que acontece em nossa era é que trocamos a liturgia de oração, de leitura da Bíblia, de reflexão, da cultura da mesa e comunhão, pela liturgia das redes sociais. E não nos enganemos, essas liturgias também são formativas, elas são construtoras de mundos e constituem identidades.

Pelo contrário, “o culto cristão nos convida a uma ontologia social muito diferente por meio de um conjunto de rituais diferentes – uma contraliturgia. Enquanto os rituais tecnológicos (…) reforçam um imaginário social em que eu sou o centro do universo, me relacionando com outros somente como um público para a minha exibição, o culto cristão é uma prática intencionalmente descentralizadora, que nos chama para fora de nós mesmos e para ingressar na verdadeira vida em Deus.” (p. 175).

Assim, para James Smith as novas tecnologias como smartphones e redes sociais são fundamentais para se pensar em questões de formação de imaginários, uma vez que elas introduzem uma certa narrativa do que é a boa vida – uma narrativa que bate de frente com o cristianismo, uma vez que esse prega o relacionamento pessoal, presencial, corporal e a desvinculação de status. As narrativas hipermodernas focam em autenticidade e distanciamento, educando nosso corpo e nossa mente para estar conectados o tempo todo. Por isso nosso corpo é fundamental na liturgia cristã, porque nossa imaginação é educada pelas nossas práticas. A tecnologia tende a contar uma história de sucesso baseado em caracteres de exibição: quanto mais curtidas e amizades virtuais, mais bem-sucedida uma pessoa será. Sabemos que não é bem assim. Precisamos ter relacionamentos firmados em Cristo e isso perpassa pelas liturgias diárias, que formam nosso imaginário. São as micropráticas (checar o celular ou ler a Palavra ao acordar) que moldam nossas imaginações. Sem perceber, estamos ou pensando em tirar uma foto ou curtir o momento de comunhão.

Que a nossa cosmovisão seja reformada por Cristo e não pelas Big Techs!

Luiz Adriano Borges é professor de história na UTFPR-Toledo, lecionando sobre história da técnica, tecnologia e sociedade, filosofia, sociedade e política. Sua área de pesquisa centra-se na História e Filosofia da Tecnologia e da Ciência. Seus projetos mais recentes são: “A visão cristã da tecnologia” e “Esperança em Tempos de guerra. Ciência, tecnologia e sociedade em Tolkien, Huxley, Lewis e Orwell (1892-1973)".
Uma Teologia Litúrgica da Cultura

Como se dá a adoração? Exatamente de que maneira a formação litúrgica nos molda? No segundo volume da trilogia Liturgias Culturais, James K. A. Smith expande e aprofunda o argumento desenvolvido em Desejando o reino acerca da relação entre as liturgias seculares e a adoração cristã. Nesta continuação, o autor busca formular o que chama de “filosofia da ação cristã” e nos ajuda a entender de que forma a liturgia e o ensino cristão devem não apenas instigar nosso intelecto, mas moldar nossos hábitos.

Publicado por Vida Nova.

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